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‘Macunaíma’: um soco tropicalista contra a Ditadura Militar

‘Macunaíma’, um soco tropicalista contra a Ditadura Militar e uma crítica ao consumismo e o capitalismo

Obra de Joaquim Pedro de Andrade é considerada um dos melhores filmes do cinema nacional

Por Ben Hur Nogueira/Mídia Ninja

“No fundo da mata virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente”.

A terceira fase do cinema novo foi indubitavelmente sua fase mais influenciada pelo tropicalismo. A fase experimental já não era o objetivo dos cineastas, ela já havia ficado pra trás. A atmosfera política na América do sul e os problemas sociais ocultados pela mídia nacional se tornaram os protagonistas desta fase decerto. Não que os cineastas haviam abdicado do experimentalismo na linguagem cinematográfica, mas de certo modo, o tratamento não convencional da linguagem cinematográfica em meio ao caos político para trazer metáforas cobertas de referências sociais e ao mesmo tempo uma provocação aos militares, era o objetivo dos cineastas brasileiros daquela época que compunham o cinema novo.

Glauber Rocha focava em seu magnum opus, “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” que lhe obteria o prêmio de melhor direção no festival de Cannes em 1969, uma película que referenciava o folclore nacional e atacava o imperialismo militar de maneira sútil através de sua própria cinematografia, provida por Affonso Beato, cara que já-já falaremos.

Walter Lima Jr. lançaria um sci-fi tropicalista que falava sobre um país sul-americano pós-terceira guerra mundial e as andanças de uma família neste meio que eventualmente ganharia um prêmio especial do júri no festival de Berlim em 1969 cujo o nome seria iconicamente “Brasil ano 2000”.

E outrossim, naquele mesmo período, um cineasta já notório por seu linguajar cinematográfico se desafiava ao adaptar o magnum opus do escritor Mário de Andrade escrito durante o modernismo, uma vanguarda artística que buscava inovar o conceito cultural brasileiro através de múltiplas formas, ora na arte déco, ora no cinema com a obra-prima “Limite” de Mário Peixoto e ora na própria literatura onde Mário havia escrito no prazo de 1 semana acuradamente um livro que parafraseava o comportamento do capitalismo nos anos 1920 e como a industrialização teria uma atitude malevolente no êxodo rural. Esse livro cujo título era Macunaíma seria 40 anos mais tarde o grande desafio do cineasta Joaquim Pedro de Andrade tendo torturadores e uma censura ante seu projeto. O filme tinha vários desafios, incluindo uma ditadura. Macunaíma tinha tudo pra ser mais um projeto censurado que não viria à luz do dia, mas Macunaíma deu muito certo se tornando um dos maiores filmes latino-americanos da história e um soco na barriga da própria ditadura que não compreendia sua genialidade na sua própria crítica ao sistema governamental que o Brasil passava.

Macunaíma é uma obra que deve ser tanto lida quanto assistida, tanto o livro quanto o filme são projetos necessários para se entender o Brasil em um escopo amplamente multi-cultural e regional. Temas como o racismo, êxodo rural, capitalismo, sexualidade, guerra de classes e inacreditavelmente a tortura são apenas um dos temas enfatizados na obra. Macunaíma é o tipo de obra atemporal que caso daqui 100 anos for achado, será lida com a mesma intensidade que foi lida pela elite intelectual brasileira nos anos 1930, pelos cineastas do cinema novo nos anos 1960 e por mim no ensino médio por volta de 2019.

Macunaíma é o retrato de um Brasil e do brasileiro, o filme por si próprio é uma obra que condensa vários gêneros cinematográficos simultaneamente como a chanchada, o neo realismo e um gênero chamado mockdocumentary ou pseudo-documentário que explora principalmente nas cenas de comícios populares e de êxodo rural. O filme traz ainda em sua trilha sonora uma curiosa miscelânia de trilhas sonoras que concernem música erudita, música popular e canções da jovem guarda que na época estavam em seu ápice cultural. Isso traz um elemento que moderniza a estória ao mesmo tempo que a mantém em sua base histórica e traz um sentimento de nostalgia e modernização ao seu roteiro.

A sinopse oficial concerne Macunaíma, um herói que nasceu preto e eventualmente torna-se branco que após a morte repentina da matriarca da família vai junto de seus irmãos para a Cidade Grande, onde ele enfrenta Venceslau Pietro Pietra, uma figura que representa o capitalismo e a falsa sensação de prosperidade, e depois se aventura em uma odisseia em busca da pedra muiraquitã dada por Ci, seu amor.

Joaquim Pedro era o tipo de diretor que focaliza muito o folclore nacional para compor suas obras, um exemplo disso dialoga com o filme predecessor de Macunaíma “O padre e a moça” que se tratava de uma adaptação de um poema de Carlos Drummond de Andrade, onde temos o antológico Paulo José que viria interpretar a versão branca de Macunaíma, interpretando um padre que abdica de sua função religiosa para viver um amor proibido. Diferentemente de Macunaíma, temos mais aqui um diálogo maior com o desenvolvimento do personagem enquanto em Macunaíma temos um desenvolvimento industrial mais notório da sociedade que cerca o personagem.

Joaquim sabia bem quando mostrar seus clímaces e como executá-los, Joaquim era sapiente em termos de mostrar personagens tendo conflitos pessoais e através de um trabalho impetuoso da direção de fotografia, sabia mostrar bem como a instabilidade dos momentos que tornaria os personagens mais emocionalmente tensos, tanto em “Macunaíma” como em “O padre e a Moça” vimos isso em várias cenas. Joaquim sabia como articular o ambiente e a estória contada, mas o que mais tornou seu trabalho ímpar no cinema brasileiro foi em capturar com essência a hipocrisia de uma sociedade que jurava ser impecável, coisa que vemos massivamente em sua carreira cinematográfica.

O filme Macunaíma se inicia com os créditos iniciais com dois tópicos que são excepcionais para a compreensão do filme: um fundo colorido maximizando cores tropicais e a canção “Marcha aos heróis do Brasil” de Villa Lobos que logo enfatizam uma sátira que o filme propõe à sua sinopse, uma sátira que brinca com o patriotismo dos militares da época e com a jornada tomada pelos personagens principais do filme: Macunaíma e seus dois irmãos Maanape e Jiguê, um que representa a vivência e o outro que representa a força.

A fotografia desta película é de Affonso Beato e neste filme ele une à vanguarda tropicalista para trazer um elemento cinematográfico até então inusual no cinema brasileiro até o fim dos anos 1960: o cinema colorido. Não existiria, no meu humilde ponto de vista, a revolução estética da terceira fase do cinema novo sem o cinema colorido, aqui temos um estabelecimento único da tropicália como fator crucial para inspiração da obra. A maneira que o filme explora as cores realça o misticismo do folclore nacional e dos próprios personagens mostra como a Tropicália não foi apenas uma vanguarda cultural, mas uma resposta contra toda opressão que era causada nos porões do DOI-CODI. A tropicália veio para reafirmar que sempre a cultura será a maior inimiga da opressão.

Logo depois dos créditos temos um corte para o nascimento de Macunaíma que nasce em uma maloca no fundo da mata virgem e em seguida somos apresentados para seu cotidiano, onde desde cedo Macunaíma se demonstra peralta e sempre suas traquinagens têm como ênfase se apropriar das boas ações dos outros.

Depois de perder a matriarca da família, Macunaíma junto de seus irmãos vai para a cidade grande onde existem promessas de uma vida melhor para estes, durante o caminho, contudo, Macunaíma se transforma em um homem branco após se aproximar de uma fonte de água fresca. Neste momento temos uma sequência onde “Sob uma cascata” de Sylvio Caldas é tocado, onde segundo um crítico norte-americano Richard Stam (autor do livro Brazilian cinema): “é um segmento onde temos uma piada que crítica toda a valorização da branquitude e o desprezo pela negritude em um âmbito brasileiro” – Richard Stam no programa norte-americano Cinema then, cinema now em 1989.

No dado momento que Macunaíma se torna branco, automaticamente todos os privilégios sociais brasileiros são lhe entregues gratuitamente e tanto a película quanto o livro fazem um deboche desta dicotomia societal.
Logo depois de se tornar branco, Macunaíma e seus irmãos chegam na cidade grande onde passam pelo êxodo rural e enfrentam um choque realidade nunca visto por nenhum. É neste momento, onde temos um contraste societal dado pelo roteiro bem elaborado por Joaquim Pedro de Andrade que vemos uma agilidade do roteiro de transpor uma visão mais documental sobre Macunaíma e seus irmãos chegando na cidade e lidando com o choque cultural e econômico. Uma cena onde isso fica mais clara é uma cena onde ocorre um comício popular em uma praça e tem uma líder reacionário reclamando de problemas populares, quando Macunaíma (que estava por perto) resolve interferir no argumento do líder, vemos as diferenças culturais que ambos personagens discrepam um do outro: enquanto o líder ideológico reacionário se preocupa com o fantasma do comunismo na América do Sul, Macunaíma por sua vez interpreta problemas de sua ambientação como problemas a serem solucionados.

Durante sua vivência na cidade grande, Macunaíma se apaixona pela guerrilheira Ci (vivida pela Dina Staf que era casada com Paulo José na vida real). Um fator curioso sobre Ci é que originalmente ela era uma guerreira do mato por quem Macunaíma vive um romance breve logo no início do livro, aqui no filme, temos uma substituição que remetia a ditadura militar e ela passa a ser uma guerrilheira que combate militares. Ambos vivem um romance mas o romance é atrapalhado pela morte de Ci, que parte e leva consigo seu precioso amuleto da sorte: o muiraquitã.

O muiraquitã tem um significado simbólico para a estória (tanto na película quanto no livro) pois aqui temos uma pedra capaz de dar ao teu dono, prosperidade suprema e curiosamente, logo após a morte de Ci, a pedra vai parar nas mãos do Venceslau Pietro Pietra, um rico empresário que tem sua fortuna aumentada logo após obter tal pedra.

São várias tentativas de nosso herói Macunaíma até recuperar a pedra preciosa de Pietro Pietra em uma das melhores sequências do filme onde Macunaíma empurra Pietro Pietra em uma piscina derrotando o vilão que representa o arquétipo do capitalismo e recupera seu amuleto precioso.

Depois de recuperar seu amuleto, Macunaíma retorna ao cenário do começo do filme com seus irmãos (manos como narrador sempre enfatiza) com produtos consumistas (liquidificadores, violão, televisores) criticando também o falso sensacionalismo moral produzido pelo governo militar brasileiro sobre o que viria ser nos anos posteriores o suposto milagre econômico brasileiro.

Ao retornar, logo é abandonado pelos seus manos e prestes a morrer, Macunaíma se vê na beira de um rio vestido com um casaco de general e é atraído por Iara (sereia da cultura popular brasileira) e ao se jogar no rio, deixando o seu amuleto muiraquitã pra trás, é comido por Iara, e enquanto seu casaco de general flutua, vemos um sangue cercar lentamente a superfície do rio, encerrando o filme.

O final da película é uma crítica certeira à tortura causada pelos generais brasileiros aos opositores da ditadura. O fato que Macunaíma veste um casaco de general e em seguida temos uma sequência onde este casaco é cercado de sangue, traz debates que o filme já havia trazido preteritamente sobre tortura e seus perpetuadores. Macunaíma é um marco do cinema nacional por uma miríade de razões, mas a principal é seu fator histórico na época que foi lançado, que torna o seu roteiro tão reminiscente da época vivida quanto o livro foi lançado.

Enquanto havia um avanço tecnológico ensurdecedor no início dos anos 1930, tínhamos um avanço industrial (propagandista) durante o período militar que trazia um sentimento efemerista de mudança de patamar social mesmo que na verdade, existiam projetos medíocres de urbanização governamental que trouxeram como resultado anos posteriores catástrofes ambientais e casos de corrupção oriunda dos militares nunca revelados totalmente. Outrossim, um dos fatores que a película busca materializar é a ideia de êxodo rural onde temos Joaquim Pedro de Andrade dando ênfase à grandeza das metrópoles ao mesmo tempo que as oportunidades são expostas nas mais horrendas sensações para os migrantes que são mandados para trabalhos braçais e com pouca remuneração.

O capitalismo neste filme surge como um pano de fundo minimalista onde o materialismo é tido como um escapismo aos personagens principais sendo o exemplo mais viável, a cena final da película onde vemos Macunaíma retornar pra casa com vários objetos materiais. Aqui, a película deixa ironicamente um deboche de como a sociedade capitalista se comporta, o que mais vale é o bem, nunca a pessoa.

Macunaíma é um filme sobre uma persona sem caráter e logo de cara no começo vemos que o personagem principal não é bom nem ruim, não é feio nem bonito, não é o mais inteligente mas tem o poder da adaptação que é a maior das inteligências. Macunaíma é um filme que lida com o cenário nacional da época da ditadura de maneira madura e cômica, coisa que os cineastas do cinema novo sabiam bem como fazer. Quiçá por sua genialidade, quiçá por serem tão adaptáveis como Macunaíma.

Macunaíma é uma obra-prima do cinema nacional que deve ser assistido, ponderado e pensado. Macunaíma é indubitavelmente um marco do cinema latino-americano.

“Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são”.

Fonte: Mídia Ninja Capa: Reprodução


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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