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MANAZINHA E A VINGANÇA DAS FORMIGAS

MANAZINHA E A VINGANÇA DAS FORMIGAS

Pisa maneiro, 

pisa ligeiro,

quem não pode com a formiga, 

não assanha o formigueiro! Juvenal Lopes e Dilson Dória – 1967 

Por Bessa Freire

Este seria o título do documentário do cineasta Djalma Limongi Batista que, se vivo fosse, filmaria a história protagonizada por sua irmã Edith, repleta de cenas tragicômicas de embates com formigas. Nós, que o admiramos, psicografamos o roteiro post-mortemincluímos Regina Duarte no elenco, não como atriz, que ela deixou de ser, se algum dia foi, mas como dublê da Manazinha.

Tudo começou com uma mensagem de voz enviada pela minha amiga Edith, precedida de incontida e sonora gargalhada:

– Menino, há vinte dias dei uma de Manazinha, não adiantou ter eu conhecido quase o mundo todo e convivido com os amigos super descolados do Djalma, a Manazinha baixou em mim. Sabe o que é Manazinha? (mais risos).

Abro aqui um parêntese, antes de detalhar o roteiro, para seguir o conselho da mãe da socióloga Angelina Peralva, dona Nádia, que sempre impetrava um habeas-corpus narrativo com convincente justificativa da conversa fiada, espontânea e prazerosa, no preâmbulo de suas histórias:   

Vou jogar conversa fora, enquanto o arroz termina de cozinhar.

O AMAZONÊS

Jogo, então, conversa fora para advertir que “Manazinha não nomeia aqui laços de parentesco entre irmãos, nada a ver com a “norma padrão” ou a dita “norma culta” da língua portuguesa, cujo prescritivismo exacerbado desconsidera a “norma manazinha”, que reflete a variante do português falado no Amazonas.

Em Amazonês, Manazinha tem duplo sentido, dependendo do contexto. Pode manifestar carinho e afeto a qualquer pessoa independente do parentesco.

Um amazonense sensível diria à Marielle Franco:

– Manazinha, admiro tua coragem, gosto muito de ti.

Ou pode também ter o sentido de ingênua, lesa, otária, usada para chamar a atenção de alguém que fez merda:

– Só mesmo uma manazinha como tu para votar em dois Coisos: no Bozo, que sufocou Manaus na epidemia de Covid e debochou da gente, e no Wilson Amazon Cream Cracker, que comprou ventilador em adega de vinho e bolachas de R$ 38 milhões para a merenda escolar.

Pronto. O arroz agora já cozinhou. Agora, preciso apagar o fogo e me concentrar no enredo. Passo a palavra à Edith, que não se sente morando em lugar nenhum, porque vive na ponte aérea São Paulo-Amazonas. Nos seus longos retornos a Manaus, se hospeda com suas duas irmãs ali na rua Ramos Ferreira, ao lado do Instituto de Educação (IEA), “na casa do meu coração”, que guarda lembranças da infância. Aconteceu agora no último dia do ano:  

Menino, enquanto eu dormia a sesta, ouvi sons imprecisos e inquietantes na biblioteca do papai, ainda hoje conservada. Levantei e fui ver: um cordão de formigas sedentas de leitura farfalhavam nas prateleiras dos livros.

A CASA TOMADA 

Edith correu para a cozinha, outro cordão de formigas subia pelo fogão, pela geladeira e pela pia, sassaricando, requebrando a bunda e movendo as antenas. Seguiu o cordão e se assustou: lá no jardim havia muitos formigueiros de boca aberta, com colônias de formigas pretas e marrons que, num trabalho incessante, carregavam folhas para o ninho, exibindo antenas e mandíbulas em suas cabeças.

Com uma pá, Edith cutucou um canteiro de flores e observou que as formigas se movimentavam em subterrâneos, através de um sistema de túneis, que fariam inveja ao Hamas na Faixa de Gaza. Um tamanduá ali encheria a pança com o banquetaço. As outras dependências da casa – ela descobriu – estavam também infestadas:

– Meu Deus do céu. Parece que estou dentro do conto fantástico La Casa Tomada do Júlio Cortázar – pensou, mas em vez de fazer como os personagens de Irene e seu irmão, que no final, com medo, fugiram da residência e jogaram a chave no ralo da calçada, a caboquinha guerreira decidiu sair pra porrada contra o exército de inimigas.

Não foi decisão fácil. Na infância, a nossa heroína tinha simpatia por formigas devido à fábula de La Fontaine A Cigarra e a Formiga, contada pelo velho Djalma. As formigas são retratadas lá como virtuosas, trabalhadoras, com organização social própria, capazes de agir como agentes biológicos no controle de pragas e na aeração do solo. É um crime matar alguém com tais qualidades.

Mas Mark Twain mostra o outro lado, que elimina qualquer sentimento de culpa. 

A SAÚVA NO BRASIL 

No seu livro Um vagabundo no estrangeiro, o escritor americano acha “um exagero falar de inteligência das formigas e de seus exércitos disciplinados, como se elas fossem capazes até mesmo de discutir religião”. Bem-humorado, ele garante que elas são “mentirosas, hipócritas e fingem que trabalham só para enganar os naturalistas e os biólogos, que anotam tudo em seus cadernos de notas. Basta o pesquisador virar as costas que elas, ociosas, vão assitir disfarçadamente o show das cigarras”.   

Edith confessou ter começado a suspeitar que formigas danificam colheitas no campo e invadem edifícios nas cidades, ao escutar a marchinha de carnaval de Alvarenga e Ranchinho: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”, composta a partir de uma frase do viajante francês do séc. XIX, Auguste Saint- Hilaire.

Quando acompanhou de perto o trabalho de seu irmão e viu como artistas e cineastas ralam, ficou claro para ela a caretice das formigas que sacanearam a arte da cigarra. Entendeu que quem canta e faz cinema ou teatro está trabalhando, como fez em sua vida inteira o genial Teixeira de Manaus, falecido no dia 18 de fevereiro, depois de nos alegrar nos beiradões do Amazonas com seu sax e sua flauta:

– Abra a sua porta, deixe meu sax entrar. 

Essa lembrança fortaleceu sua decisão. Escolheu as armas:

– Vou jogar água fervendo nos formigueiros.

A GUERRA

casa tomada
Foto: Divulgação

Dito e feito. Foi para o jardim com uma panela de água fervendo. Mas na hora em que se abaixou para despejar o seu conteúdo, uma formiga zarolha, maior do que uma saúva, com cara de “falsa tucandeira” ou “tocandira” dos rituais dos Sateré-Mawé, enfiou o ferrão no calcanhar dela, que estava de sandália. Foi uma picada dolorosa. Devolvemos a palavra a Edith:

Aí a água quente caiu na minha mão e queimou feio. Joguei a panela longe, mas a água fervente voltou e caiu no meu rosto, pegou minha testa, meu couro cabeludo e triscou meu olho, foi a vingança das formigas. Menino, foi uma dor enorme, com a cara em brasa tive de correr pro Pronto Socorro, a sorte é que o Hospital Público 28 de agosto tem um setor de queimadura, me lambuzaram toda com pomada, antibiótico, soro gelado o tempo todo.

Ela concluiu:

Baixou a Manazinha aqui, foi leseira mesmo, subestimei a agressividade do inimigo. Enfim, estou quase boa, o problema é que persiste ainda a sequela no couro cabeludo. Resultado: a Caboquinha aqui não pode sair de casa pra nada, nem botar a cara na janela (rs), sequer pra ver como está o formigueiro.

Formigas tem exército, fazem parte do crime organizado e atentam contra a democracia. Estavam acampadas em frente aos quartéis de Brasília. Bem que o Xandão podia acertar o passo delas e de quem as financiou. No passado, elas expulsaram os moradores da cidade de Velho Airão, de Tefé e de Eirunepé.

A CIGARRA DO COCO

Se Djalma Batista estivesse entre nós, esse poderia ser mais um dos 16 roteiros de filmes que ele deixou prontinhos, entre eles “Rio Máximo das Amazonas” e “O Silêncio dos sinos”, além de um filme inédito sobre a vida de Walmor Chagas. A irmã, que agora leva suas cinzas para jogar no Encontro das Águas, será a atriz principal deste 17º documentário por nós psicografado.  

No entanto, na cena perigosa e arriscada, Edith será substituída por Regina Duarte, sua dublê. A formiga zarolha vai dar a ferrada no mocotó da fazendeira e pecuarista, ex-namoradinha do Brasil e ex-secretária de Cultura do Governo Coiso. Afinal, ela já está mesmo queimada, desde que cantou a música da ditadura: “Pra frente Brasil” na entrevista à jornalista Daniela Lima e bateu continência para o Coiso.

O nosso documentário terminará com os indígenas da APIB – Associação dos Povos Indígenas do Brasil – cantando o toré “Pisa Ligeiro”, imortalizado pelo cantor Jacinto Silva (1933-2001), a “cigarra do coco”. A coreografia será aquela da APIB que, para salvar a Cultura em coma, ocupou o extinto MinC na gestão de Regina Duarte.

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Foto: Reprodução Apib/Midia Ninja

Jose Ribamar BessaJosé Bessa Freire – Professor. Escritor. Cronista em Taquiprati Conselheiro da Revista Xapuri

 
 
 
 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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