É possível perder-se no caminho do sagrado indígena?

É possível perder-se no caminho do ? – 

Certo dia, eu estava no escritório quando a secretária anunciou que uma senhora gostaria de falar comigo. Perguntei o assunto, mas ela não soube informar, então pedi que a trouxesse à sala onde eu a atenderia. Nisso, entrou uma jovem senhora, não mais que em seus quarenta anos, bem arrumada, perfumada e com um ar de dignidade que não conseguia disfarçar certo nervosismo ou urgência no assunto que gostaria de tratar comigo.

Após as saudações cordiais de praxe, coloquei-me à sua disposição para  atendê-la da melhor maneira possível, dependendo do assunto que fosse tratar, caso estivesse em minha alçada e conhecimento. Olhando furtivamente para o lado, a senhora inclinou-se em minha direção e, num quase sussurro,  disse que tinha um assunto muito sério a denunciar, pois era algo de extrema urgência e importância.

Já preocupado com o nervosismo da senhora, pedi licença para chamar um colega, a fim de que pudesse acompanhar a conversa, protocolo que costumo adotar quando me deparo com situações que necessitem de registro pormenorizado do que vai ser tratado. Chegando o esperado colega, comuniquei-a que poderia, enfim, fazer sua denúncia e, pegando meu bloco de anotações, preparei-me para anotar.

Novamente inclinando-se, a senhora olhou para meu colega, depois diretamente nos meus olhos e disse: “Preciso denunciar algo grave. É um assunto urgente que precisa de uma atenção… eu preciso que vocês me ajudem… preciso que vocês me ajudem a equalizar a força quântica do universo!!!

!!!

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– “Como é?” – Perguntei, achando que talvez tivesse ouvido errado, já olhando com o “rabo do olho” para o meu colega, que calmamente cofiava a longa barba que lhe dava uma característica bem exótica.

– “O universo está com a energia quântica desequilibrada e preciso que vocês a consertem!” – Respondeu-me minha interlocutora, com ar grave e voz firme.

Fiquei meio desnorteado, sem saber muito o que dizer ou que movimento fazer. Olhei para meu colega, que fez uma pequena careta a indicar que eu estava diante de uma pessoa louca. No entanto, não me senti bem com o pensamento de simplesmente dispensar a senhora, indicando-lhe candidamente a direção da porta, e exortando-a a buscar ajuda médica.

Ao contrário, empertiguei-me e preparando o bloco de anotações pedi que ela me contasse o porquê de estar pedindo ajuda. Nesse momento senti um ar de alívio tomar   conta de suas feições e sua postura ficou mais relaxada.

Então, dando início ao seu relato ela disse , sua idade e de onde vinha. Em seguida, relatou que um ano antes estava em São Paulo e costumava participar de rituais xamânicos, buscando encontrar respostas para sua vida espiritual. Nisso, certo dia, deparou-se com um cartaz informando sobre a realização de uma “rodada de medicinas, cantos e cipó”, com um grande “pajé” do povo “tal”*, onde a “doação” para participar era de R$ 200,00.

Interessada, prontamente ligou para o número indicado no cartaz e, no dia assinalado para o tal ritual, se fez presente. Chegando lá conheceu o “pajé”, achando-o jovem demais para ser um pajé, pensou em desistir, mas, já que estava ali, resolveu que iria participar.

Após o tal ritual, o “pajé” mostrou-se muito solícito com ela, convidando-a para participar mais vezes, quando desse pois ela era a “encarnação do espírito” de determinado ser encantado de seu povo**. Pouco depois tiveram um caso que rapidamente se acabou, tendo o “pajé” já se interessado por outra pessoa.

Isso a perturbou muito, mas continuou procurando ir aos rituais, entretanto alguma coisa estava diferente, pois suas visões estavam ficando cada vez mais estranhas, até que um dia ela “entendeu”  tudo: ela viu que era a encarnação do tal ser encantado e que teria uma missão importante. Não vou descrever a tal missão nem os detalhes de sua visão, até porque o contexto em que me disse isso não me possibilita dar publicidade e, também, por achar que isso é algo particular dela.

O resumo da ópera é que ela passou a procurar insistente por este “pajé”, que, por sua vez, passou a evitá-la, até que um dia ela foi informada que ele havia ido embora de São Paulo e falou que iria buscar medicinas e fazer uns trabalhos no Juruá acreano.

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Ela viu nisso um sinal, de que deveria largar tudo em São Paulo e ir atrás dessa figura, pois acreditava que poderia ajudá-lo em seus trabalhos e, também, que no Juruá ela poderia finalmente ter forças para dar cabo de sua “missão”.

Com muito sacrifício ela chegou em Cruzeiro do Sul e, com a mesma dificuldade ela descobriu onde estava o “xamã” e, procurando-o, toda feliz em tê-lo achado foi prontamente rechaçada pelo mesmo. Isso a perturbou muito. Afastou-se dele, e procurou descobrir o que aconteceu.

Algum tempo depois iniciou uns trabalhos com outras pessoas, em pequenos rituais na cidade e, nestes trabalhos, ela descobriu que ela havia “invertido” totalmente o seu equilíbrio espiritual e que precisava fazer um tratamento especial para ficar boa.

Então, passado um tempo, ela sentiu que já estava “melhor” o suficiente para ir embora, mas precisava deixar essa “missão” como alerta, pois ela não teria como equilibrar essa “energia quântica”. Assim, ela procurou-nos, tanto para pedir ajuda quanto para alertar sobre esta pessoa que se dizia pajé.

Após sua narrativa, fiz algumas perguntas no intuito de saber mais sobre este xamã de araque e com a descrição do mesmo, rapidamente descobri sua identidade, até porque já vinha observando, de longe, notícias sobre ele. Meu colega, ainda cofiando sua longa barba mostrava-se bastante interessado na estranha narrativa.

Finalizando a entrevista, e após fechar meu bloco de anotações, ofereci um café e perguntei se podia ajudar em algo mais, sendo que, quanto ao pedido que ela havia registrado, eu não poderia fazer muito além de orientá-la a procurar se tratar e, já que estava se preparando para ir embora, dei-lhe alguns emails, onde ela poderia enviar suas denúncias.

Nitidamente aliviada e com um ar mais leve, ela se despediu e graciosamente saiu da sala. Da janela eu e meu colega a espiamos saindo do prédio e encontrando-se com um jovem rapaz na saída. Dias depois descobri ser o seu filho.

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Passei um tempo, depois da entrevista, observando pela cidade tanto ela quanto o jovem. Com este tive umas duas conversas e o achei muito agradável. Tocava flauta doce e vendia chocolate, a fim de juntar recursos para irem embora. Em nossas conversas não entrei nos detalhes do que sua me contou, mas busquei saber mais sobre ela e sobre ele. O que ouvi me deixou bastante consternado.

Dentro do possível, passei um alerta para todas as comunidades, para que tivessem cuidado com o tal “pajé”, evitando fornecer o chá sagrado ou medicinas para ele, bem como evitasse participar das viagens que este promovia tanto no território nacional quanto em nosso país vizinho que, assim como o Juruá, fornece medicinas, espaço e “pajés” para realização de trabalhos diversos.

Por cerca de mais uns três meses comprei muito chocolate do rapazinho, bem como vi a senhora andando pela cidade, sentada na praça, comprando coisas no supermercado. Até que um dia eles sumiram.

O tempo passou devagar no Juruá nos três anos que dividiram a estranha narrativa acima… o rio encheu, secou, encheu muito e secou outro tanto…

A tarde estava fresca, apesar do sol não ter dado trégua na última semana do mês marciano de 2017. O Juruá fazia jus à alcunha que recebera no início do século XX, quando era conhecido como o “Atlântico Juruá”.  Os ribeirinhos e pescadores que passavam logo abaixo da principal da cidade, que liga a cidade aos seus dois distritos, tomaram um susto ao ver uma jovem se jogando nas águas turbulentas que  se fazia no momento. Prontamente acudiram a jovem que claramente estava tentando pôr termo à sua existência.

Mas, antes do desenrolar da história, volto alguns dias antes da funesta tentativa, num dia nublado do mês marciano, quando me encontrava dando um suporte mais qualificado num determinado processo e, na ocasião, a autoridade à qual me reportava no momento, foi informada de que tinham umas pessoas na recepção buscando informações sobre uma italiana que, na noite anterior, havia se dirigido ao órgão em busca de informações e ajuda. Não sei bem porquê, mas o assunto me interessou, e pedi para acompanhar a situação.

Encontramos um jovem casal na recepção, que nos reportaram estarem em busca de uma jovem, de italiana, que havia chegado ao Juruá, proveniente do Peru, em busca de fazer trabalhos espirituais e, que ao fazer amizade com eles, se deslocaram a uma determinada comunidade de ribeirinhos onde se realizam trabalhos de , a mesma “surtou” antes mesmo do ritual e se evadiu do lugar, de maneira agressiva.

O casal a encontrou no dia seguinte, já sem documentos e com marcas no corpo, especificamente marcas de aplicação de kambô. Esta, visivelmente perturbada, disse que havia ido a uma aldeia e tomado as vacinas, dezesseis no total. Eles então a levaram ao hospital para tomar soro e a deixaram lá, quando retornaram, ela havia fugido. Então, buscaram por ajuda pois haviam conseguido contato via facebook com a família da mesma e estes viriam em sua ajuda, em breve.

Foram feitas perguntas aos dois, por parte da autoridade e eu, pedindo licença, perguntei a respeito do kambô, pois que me disseram achar que ela tinha ido a uma aldeia, coisa que refleti com eles não ser possível por motivos óbvios: distância e o suposto tempo que a encontraram no dia seguinte, além, é claro que nenhum seria louco de aplicar dezesseis vacinas em alguém que, conforme o casal havia me informado, nunca tinha tomado tal medicina.

No decorrer da busca de informações, soubemos que a mesma já havia sido recolhida pela Polícia Militar e, após verificação de sua situação de permanência no país, a liberaram. Desde então a mesma estava desaparecida.

Após orientarmos o casal, bem como, de minha parte, registrar a conversa para verificação posteriori sobre as aplicações do kambô e o que motivou a vinda dela para o Juruá, voltamos à atividade que estávamos pelejando anteriormente e que era igualmente intrigante. No entanto, após sair à cidade, fui à busca de mais informações, a história toda me intrigava. Não descobri muito.

No dia seguinte, conversando com o grande amigo, o jornalista Leandro Altherman, o qual conhece e escreve muito sobre os mistérios de nossa floresta, seus povos e sua medicina, trocamos percepções sobre a situação, e ele me disse desconfiar que tal surto e o que se desenrolou poderia ser um abandono de alguma dieta. Ficamos nesse papo um pouco mais até que, direcionamos a conversa para outros assuntos.

Dois dias depois ao acessar os jornais locais me deparo com a notícia da tentativa de suicídio da estranha personagem desta história. Tendo, felizmente, fracassado em seu intento mortal, foi encaminhada para o hospital psiquiátrico onde aguardaria a chegada de sua família, que já se encontrava em trânsito para o .

Que considerações posso refletir após narrar estas duas histórias? Elas tem algo em comum? É possível “perder-se” no caminho do sagrado? Convido você, leitor/a e, principalmente aqueles e aquelas que comumente leem meus textos a tirarem suas próprias conclusões.

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ANOTE AÍ:

Jairo Xapuri 1
Jairo Lima –  Escritor e indigenista acreano, publica seus textos, semanalmente, em seu blog www.cronicasindigenitas.blogspot.com.br   e, por gentileza de Jairo, também  aqui no nosso site da xapuri.info.
* Por respeito aos verdadeiros curadores e pajés não cito o povo ao qual o tal xamã dizia pertencer;
** Por respeito aos verdadeiros encantos sagrados não citei sobre qual espírito se referia a narrativa.

*** Todas as imagens do texto são  obras de artistas , membros do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU), tendo como criador do grupo e principal expoente do mesmo o grande txana Isaías Sales Ibã Huni Kuin. É possível saber mais sobre este grupo através da página do mesmo.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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