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Os caminhos das cidades -

OS CAMINHOS DAS CIDADES

Os caminhos das cidades 

É fácil notar que as cidades de melhor qualidade de vida no mundo desenvolvem suas políticas de mobilidade centradas nas pessoas

Estas linhas foram escritas enquanto eu viajava de ônibus e trem no percurso entre Vancouver (Canadá), Seatle (EUA) e Portland (EUA), cidades bem resolvidas que tangem a porção noroeste do continente americano, banhada pelo oceano pacífico.

No primeiro trecho, ocupei o assento 10 do confortável ônibus; no segundo, o assento 37 do carro 9, do igualmente confortável, pontual e moderno trem. Dois distintos modais que integram o sistema AMTRAK, empresa estatal americana gerenciada por uma corporação sem fins lucrativos que opera cerca de 500 destinos no Canadá e há mais de 40 anos, com pleno êxito operacional no transporte de passageiros.

O sistema permite a milhares de cidadãos (35 milhões/ano) cumprirem seus destinos com eficiência e rigor por seus 34 mil quilômetros distribuídos em rede entre as cidades desses países – todas inseridas no contexto ferroviário interestadual, cujas linhas integram-se aos seus modais urbanos que operam a partir de belas e padronizadas estações.

Sistemas e serviços de transporte humano e infraestruturas ferroviárias semelhantes vivenciei noutros países, como República Tcheca, Alemanha, Itália, Portugal, Holanda, Dinamarca… Enfim, localidades cujas gestões historicamente prezam a qualidade de vida de suas populações, a começar pelos aspectos urbanísticos mais simples que melhoram sua autoestima e o seu jeito decente de ir e vir.

Há um traço comum entre essas cidades do hemisfério norte: seu privilegia as pessoas no uso e ocupação do solo, e os governos investem pesado no financiamento dos sistemas e realizam permanentes na expansão e manutenção da infraestrutura urbana.

Especialmente a partir da crise mundial do , no início da década de 1970, essas nações buscaram alternativa à matriz rodoviária que predominava até então em suas políticas de mobilidade.

A começar da Holanda, dezenas de cidades europeias ampliaram os investimentos em transporte sobre trilhos, ciclovias, hidrovias e transporte coletivo sobre rodas, penalizando assim a opção individual de deslocamento por meio de automóveis.

Fizeram mais: ao mesmo tempo em que aprofundaram a restrição ao uso do carro em seus complexos viários, imputaram aos optantes deste modal pesadas taxas, que ajudam a financiar seus sistemas de mobilidade. É bem-vinda a aquisição de carros nesses países, mas seu uso é caro, restringido e útil ao priorizado . Simples e objetivo assim!

OS CAMINHOS DAS CIDADES
Foto: Reprodução/Internet

Por outro lado, convém anotar que todos esses sistemas são deficitários do ponto de vista financeiro, mas altamente lucrativos em ganhos de qualidade de vida, inclusão social e economia popular.

As tarifas são subsidiadas pelos governos, que por sua vez ganham com saúde e segurança públicas, turismo e qualidade ambiental.

A própria AMTRAK coleciona déficit financeiro anual da ordem de um bilhão de dólares/ano para se manter atrativa e funcionando.

São economias transversais que retroalimentam o funcionamento orgânico e estratégico das cidades.

Então, por que raios os caminhos construídos por aqui, na América Latina, por exemplo, não possuem a mesma desenvoltura e qualidade que os caminhos de lá?

Por que nesses países de histórias acidentadas e ocorrências de enfrentamento de pestes, guerras continentais, intempéries e frequentes catástrofes naturais as políticas urbanas são bem mais evoluídas que as nossas, e o senso coletivo prevalece sobre o individual?

Por que as populações dessas diversas nações desfrutam de excelentes serviços de transporte público, quando as tecnologias e conceitos disponíveis são os mesmos conhecidos por aqui?

Por que me sinto realizado e feliz nas andanças pelos caminhos europeus e norte-americanos e quando por aqui chego enfrento o colapso da angústia, por não desfrutar do mesmo conforto e eficiência?

Respostas a estas questões passam necessariamente pelo ambiente político e consequentemente pela abrangência das escolhas sobre que tipo de cidade e de caminhos queremos para nossas populações.

Se examinarmos a linha ascendente sobre a qual se desenvolveram as iniciativas que ainda hoje garantem a boa urbanidade daqueles povos, veremos que seus gestores não economizaram esforços para garantir ao seu cidadão comum o direito à cidade, o caráter inclusivo e o bem-estar social que devem necessariamente prevalecer em cada caminho construído.

Norteiam suas decisões o universal conceito de que os espaços urbanos devem ser desenvolvidos para que as pessoas os vivenciem, para que não sejam meros territórios de passagem. Esta é a razão das cidades, e não é o que temos por aqui, mesmo sendo os brasileiros providos das melhores legislações a respeito. Falta, portanto, a atitude!

Lamentavelmente, a linha que define a qualidade da mobilidade nos espaços urbanos e nas estradas brasileiras mantém-se descendente, pois as escolhas das sucessivas governanças nesse quesito continuam submetidas à cega obediência ao modal individual motorizado de transportes, em detrimento do coletivo e dos humanizados (bicicletas e a pé).

Salvo uma ou outra heroica exceção, a tendência é que os velhos paradigmas continuem a prevalecer e a merecer deferência, acometendo os caminhos que levam e trazem nossas populações em seus espaços de mobilidade. Essa perversa lógica aprofunda o curioso dilema da crise que, como preconiza o teólogo Leonardo Boff, pode ser a oportunidade da purificação, a base necessária para definirmos novos caminhos.

antenor-pinheiro


Jornalista, Coordenador da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) Regional Centro-Oeste.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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