AMAZÔNIA, RIOS VOADORES E A INTERDEPENDÊNCIA DAS CONDIÇÕES DE VIDA EM RISCO COM O PL 2159/2021
O Congresso Nacional está em vias de aprovar o PL 2159/2021, que desmonta o sistema de licenciamento ambiental brasileiro. Como apontado pelo Ministério Público Federal, o Observatório do Clima, e o Ministério do Meio Ambiente, o texto é inconstitucional e acarretará graves riscos de judicialização dos processos que, em tese, buscaria simplificar. Mas este é o menor dos problemas.
Por Marcos Woortmann, Dulce Maria Pereira, Luciane Moessa, Sérgio Augusto Ribeiro
Caso seja sancionado na forma atual, os impactos deste PL para a integridade dos biomas brasileiros, em especial a Amazônia, poderá impactar de maneira irreversível a estabilidade hídrica, a formação de chuvas e a preservação de rios e mananciais que abastecem todo o Brasil e grande parte da América do Sul, com consequências climáticas, diplomáticas e econômicas graves, no ano que o país sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30).
Apelidado como “PL da Devastação”, o projeto dispensa Estudos de Impacto Ambiental (EIA) para uma série de empreendimentos com reconhecido risco, e faculta a licença por autodeclaração empresarial, ou Licença por Adesão e Compromisso (LAC), ignorando impactos socioambientais cumulativos que poderão agravar danos a locais já impactados. Tal previsão viola os princípios constitucionais e da jurisprudência ambiental, de precaução e prevenção.
Áreas de recarga hídrica, zonas úmidas e matas ciliares estarão sujeitas a ainda maior degradação, o que comprometerá o equilíbrio dos sistemas fluviais e hidrológicos não apenas do Brasil, mas de grande parte do continente sul-americano. Desastres ambientais recentes, como as inundações no Rio Grande do Sul e a seca extrema na Amazônia em 2024, são a face visível de uma crise ambiental que avança ano a ano com o desmatamento.
A aprovação pelo Congresso do PL 2.159/2021 facilitará a repetição de cada vez mais desastres como estes, e o mais grave: aproximará o Brasil de maneira irreversível do ponto de não retorno da Amazônia, algo que tem sido avisado há anos pela mais rigorosa ciência climática mundial. Tal cenário poderá acarretar danos irreparáveis para os sistemas climáticos e hidrológicos não apenas do Brasil, mas de toda da América do Sul.
Jacques Cousteau, oceanógrafo e ambientalista francês, que entre 1982 e 1984 conduziu a maior expedição científica até então à Amazônia, costumava dizer que o ciclo da água e o ciclo da vida são os mesmos, e que “as artérias de água doce da Terra desempenham um papel crucial na saúde do mar. (…) na Amazônia, avaliamos um ambiente dominado por água doce, onde a invasão humana está começando a alterar a delicada teia da vida”. Essa é a teia que hoje está ameaçada pelas decisões do Congresso Nacional.
Os chamados “rios voadores”, correntes atmosféricas de vapor d’água geradas pela evapotranspiração das árvores amazônicas, desempenham papel central no ciclo de chuvas em toda a América do Sul. Estima-se que a Amazônia bombeie cerca de 20 bilhões de toneladas de água por dia para a atmosfera, um volume que supera em 3 bilhões de toneladas tudo o que o rio Amazonas descarrega no Atlântico.
Segundo o climatologista brasileiro Carlos Nobre, “essas veias de umidade são responsáveis por grande parte da estabilidade hídrica não apenas na bacia amazônica, mas também em regiões tão distantes quanto o Sul do Brasil e o Cone Sul”.
Estudos de universidades brasileiras em parceria com a Agência Aerospacial dos Estados Unidos (NASA) indicam que mais de 30% de toda a chuva que cai na Mata Atlântica tem origem nos rios voadores da Amazônia, que abastecem de água algumas das regiões com maior densidade populacional até no Sudeste do país. Até mesmo estados distantes, como o Paraná, recebem 26,4% de sua precipitação anual diretamente dos rios voadores amazônicos.
A despeito da pujança de suas águas, contudo, em 2024 a Amazônia brasileira registrou uma redução de 3,6% na superfície ocupada por rios e lagos em relação à média histórica de 1985 a 2023.
Esse declínio, que durou 7 meses, afetou 63% das sub-bacias que compõem o bioma, e foi causado em função de secas prolongadas, desmatamento e padrões climáticos extremos, conforme relatório do MapBiomas Água. Medições do Porto de Manaus e da Organização Meteorológica Mundial apontaram que, em outubro de 2024, o nível do Rio Negro atingiu seu menor patamar em 112 anos de registros.
No bioma Cerrado, a influência dos rios atmosféricos é igualmente crítica: pesquisas do Instituto Serrapilheira mostram que até 30% da chuva que sustenta as áreas de produção agropecuária do Planalto Central provêm da umidade originada em terras indígenas amazônicas. Contudo, a conjunção do desmatamento com secas prolongadas no Cerrado reduziram em até 50% os dias de chuva em certas regiões, agravando a escassez de água e a vulnerabilidade do agronegócio. Em 2023 e 2024 apenas, este bioma registrou um decréscimo de 28,8% na superfície de água natural (rios, lagoas e brejos) em relação à média histórica entre 1985 e 2024.
Isso representa uma perda de aproximadamente 1,85 milhão de hectares de superfície de água, área equivalente à soma das regiões metropolitanas de São Paulo, João Pessoa, Salvador, Vitória e Campinas. Um estudo da Agência Nacional de Águas revelou que 55,4% dos poços monitorados no Planalto Central apresentavam níveis freáticos abaixo dos leitos fluviais próximos, indicando esgotamento gradual dos aquíferos e risco de desertificação.
Por fim, no Pantanal, maior sistema úmido continental do planeta, a queda foi de 61% da área alagada no período entre 1985 e 2023, passando de 6,8 milhões de hectares (1988) para apenas 3,3 milhões de hectares em 2023 – motivada pelo represamento de afluentes, queimadas e expansão agrícola.
Na América do Sul, as “veias de umidade” amazônicas atravessam nove países: Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Equador, Paraguai, Argentina, até o Uruguai, formando um “sistema circulatório” de vapor, rios, lagos, nascentes e áreas úmidas. O fluxo principal de umidade que parte da Bacia Amazônica segue em direção sudoeste e, ao encontrar os Andes, bifurca-se, com parte contornando as montanhas rumo ao sul do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, enquanto a outra vertente abastece o oeste da Bolívia e do Peru.
Neste sistema hidrológico transnacional, 30 a 50% da chuva da bacia do Prata, que congrega os rios Paraná, Paraguai, e Uruguai, tem origem na evapotranspiração amazônica³, e 50% do vapor que alimenta essa região atravessa fronteiras, saindo do Brasil e entrando no Paraguai e na Argentina, com fluxos que podem exceder 10 bilhões de toneladas de água por dia na estação chuvosa. Além disso, entre 27% e 45 % da precipitação no sudoeste da Bolívia e leste do Peru advêm desse transporte atmosférico.
Na Região Sul do Brasil e no norte da Argentina, essa umidade florestal reduz em até 20% a severidade das secas extremas.
Tais números ressaltam o óbvio: tanto os serviços ambientais dos biomas brasileiros, como o desmatamento e a degradação destes não afetam apenas o que está restrito ao Brasil. Logo, as consequências da aprovação do PL 2159/2021 pelo Congresso Nacional não afetarão apenas os biomas, a economia e a população brasileira, mas colocarão em risco a segurança hídrica de países vizinhos, afetando algo entre 45 e 50 milhões de pessoas no Peru, Bolívia, Paraguai, Uruguai e na região platina da Argentina. Todo o sistema hidrológico, as populações e economias serão irremediavelmente afetados.
Em primeiro lugar, local e cumulativamente, isso se dará pelo aumento do desmatamento e queimadas oriundos da expansão sem licenciamento ambiental do agronegócio, que hoje – com o licenciamento vigente – já é o principal vetor de destruição de florestas e de poluição no Brasil. Em seguida, o processo tenderá a se agravar pela profusão de garimpos e novos empreendimentos industriais, minerários e energéticos de médio potencial poluidor, que não mais terão que remediar ou prevenir seus impactos ambientais, e cujo efeito conjunto será sentido pela população brasileira e dos países vizinhos. Contudo, tais impactos, já agravados pelas mudanças climáticas, serão ainda pequenos se comparados ao potencial disruptivo do colapso do sistema hidrológico amazônico. (…).
Hoje, a Amazônia brasileira já perdeu mais de 18% de sua vegetação original, e cerca de 17% adicionais encontram-se em estágio avançado de degradação (MapBiomas, 2023). Caso o Congresso Nacional aprove o PL 2159/2021, aumentando inexoravelmente o vetor de desmatamento em todos os biomas, o ponto de não retorno da Amazônia será atingido em poucos anos.
É importante entender a dimensão do que isso significa para o século que se abre, e para o continente sul-americano. Todas as relações hidrológicas acima ilustradas, da Amazônia aos Andes, do Rio Grande do Sul ao sul da Bahia, toda a região Sudeste e Centro-Oeste serão irremediavelmente afetadas pela redução drástica de chuvas, perda de nascentes, secas prolongadas, aumento do calor extremo e queimadas. O abastecimento de água para animais, a agricultura de exportação, a geração de energia hidrelétrica, e, claro, o abastecimento humano, em poucas décadas estarão na linha direta de impacto do que for decidido nas próximas semanas pelo Congresso Nacional.
Se o “ponto de não retorno” da Amazônia for cruzado, os modelos climáticos apontam para a degradação irreversível de 50 a 70% de toda a metade sul da Amazônia, o que reduzirá a floresta a uma vegetação empobrecida, quente e sujeita a incêndios, do Atlântico aos Andes. No Brasil, especialmente nos estados do Maranhão, Pará, Tocantins, Mato Grosso, Rondônia e Acre, esse processo, previsto para ocorrer em poucas décadas, poderá reduzir a evapotranspiração total da floresta em até 40%.
O colapso deste sistema continental, diretamente ameaçado pelo PL 2159/2021, significará reduzir de maneira irreversível entre 30% e 50% do vapor d’água que abastece nove países na América do Sul, o que poderá reduzir em um terço as chuvas na região do Prata, afetando a bacia hidrográfica que responde por quase 60% da energia hidrelétrica do país, onde está situada a segunda maior represa do mundo, a binacional Itaipu. Essa redução de chuvas poderá ampliar em até 60 dias o período crítico de seca na Região Sul do Brasil e norte da Argentina.
Por fim, a vazão média dos principais rios amazônicos poderá cair em até 20% até 2050, afetando outros 27% da geração de energia hidrelétrica do país, alterando deltas e estuários costeiros, e colocando em risco imediato a segurança hídrica, energética e alimentar de mais de 50 milhões de pessoas, entre brasileiros e nossos vizinhos.
Marcos Woortmann – Cientista político e Ambientalista. Diretor adjunto do Instituto Democracia e Sustentabilidade.
Dulce Maria Pereira – Professora Pesquisadora da UFOP e Presidenta do Instituto Democracia e Sustentabilidade.
Luciane Moessa – Advogada. Diretora Executiva e Técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).
Sérgio Augusto Ribeiro – Ambientalista. Diretor Executivo do Centro Internacional de Água e Transdisciplinaridade (CIRAT).
Fonte: Excerto de matéria publicada no Le Monde Diplomatique Brasil. Veja a íntegra da matéria em Diplomatique.






