DILMA DO BRASIL

Dilma do Brasil

As trajetórias pessoal e política – dificilmente dissociáveis – da Dilma são muito expressivas do Brasil contemporâneo, daquele que ela, e tantos de nós, vivemos e continuamos a viver

Por Emir Sader 

Estudante que, como tantos outros, chegou à consciência política na virada da história brasileira da democracia à ditadura, viveu os dilemas de como reagir sem espaço legal, e se integrou à luta clandestina contra a ditadura. Nessa trajetória, conheceu os autores clássicos da esquerda, ao mesmo tempo em que se entregava à militância política.

Como uma das vias possíveis naquela época, Dilma aderiu a organizações que optaram pela prioridade da luta armada. Passou a circular pelo pais, conforme as tarefas se impunham. Numa dessas circunstancias, foi presa.

Caindo nas mãos da ditadura, foi vítima das mais cruéis torturas, diante das quais resistiu com a dignidade que é, ao longo de toda sua vida, uma de suas características essenciais.

Saindo da prisão, encontrou-se com um país em transição, dedicou-se ao estudo da economia na Unicamp, ao mesmo tempo em que redefinia sua forma de inserção no Brasil daquele momento.

Se reintegrou politicamente, aos poucos foi se formando como um quadro competente nos temas de energia, até que assumiu cargos públicos nessa área. O espírito público é um dos outros componentes da trajetória da Dilma.

De repente, foi chamada pelo Lula para ser sua ministra. Sua competência e seriedade a levaram logo a assumir o posto essencial na coordenação do governo do Lula, uma das responsáveis pelo sucesso espetacular do segundo mandato do PT.

Dilma foi assim se projetando para o coração mesmo da experiência política dos governos mais importantes que o Brasil já teve, até aqui.

Foi escolhida pelo Lula para sucedê-lo, venceu as eleições e se tornou a primeira mulher a presidir o Brasil. Aquela jovem e aguerrida militante, que havia ingressado à militância política na resistência à ditadura, conquistou a possibilidade de se tornar presidenta do Brasil no mais importante governo de esquerda que o pais já teve.

Dilma viveu a experiência da Presidência da República num momento difícil e complexo, mas garantiu a extensão e o aprofundamento da característica maior desses governos: a prioridade das políticas sociais.

Na reeleição, enfrentou duros embates, mas se saiu vencedora. Sofreu, a partir daí a maior ofensiva contra um governo constituído, desde aquela contra Getúlio.

Foi vítima de um golpe e tornou-se a referência mais importante, dentro e fora do Brasil, da luta democrática.

Um livro sobre a Dilma contribui para fazer justiça à sua trajetória, embora seja difícil que se possa, com palavras, recompor todo o significado dessa mulher, dirigente, amiga e companheira.

Emir Sader – Sociólogo.  Autor do livro “O Brasil que queremos. ”Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri. Este texto prefacia o livro “Dilma do Brasil”, do  professor Emir Sader.

Dilma imagem dupla brasil de fatoImagem: Brasil de Fato

 

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DILMA ROUSSEFF: “AS MARCAS DA TORTURA SOU EU

Neste 17 de abril de 2021, data em que se completam cinco anos da deposição – por golpe – da presidenta Dilma Rousseff, publicamos excertos de seus depoimentos sobre as torturas que sofreu nos porões da ditadura, para que nunca mais aconteça, nem ditadura, nem tortura, nem golpes que derrubem uma presidenta coração valente, honesta e decente, da presidência do Brasil.

Por Dilma Rousseff 

Fui interrogada dentro da Operação Bandeirantes (Oban) por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Ângelo Pezzuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga.

Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 69 e isso era no início de 70. Desconhecia as tentativas de fuga de Pezzuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira. Talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata (…)

Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque […] Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina.

Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em São Paulo usaram pouco esse ‘método’. No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito (…)

Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (…), foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam (…)

Minha arcada girou para o lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu. […] Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz [capitão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São Paulo] completou o serviço com um soco, arrancando o dente (…)

A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro (…)

O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da vida.”

Dilma Rousseff – presa política, torturada pela ditadura militar, ex-presidenta do Brasil. Excertos de relato feito em 2001 ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh) de Minas Gerais e de depoimentos e entrevistas diversas, registradas pela mídia nacional. Dilma foi presa em São Paulo no dia 16 de janeiro de 1970. Condenada em primeira instância a seis anos e um mês de prisão, e teve os direitos políticos cassados por dez anos. Depois, conseguiu redução da pena junto ao Superior Tribunal Militar (STM) e deixou a prisão no final de 1972. Excertos compilados por Zezé Weiss. 


 

 
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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