O racismo, o mérito e as cotas em Santa Catarina
O racismo é burrice, mas o mais burro não é o racista. É o que pensa que o racismo não existe. (Gabriel Pensador)
Por Geraldo Lopes de Souza Júnior/TaQuiPraTi
Há cenas banais que, sem pedir licença, desnudam o país inteiro diante dos nossos olhos, como a ocorrida numa dessas manhãs comuns aqui em Manaus.
Um posto de gasolina ao amanhecer, um caminho rotineiro, um gesto automático. E, de repente, a desigualdade deixa de ser estatística e ganha rosto, idade, cor e horário. Percebi como o destino costuma ser decidido muito antes de alguém escolher para onde vai.
Eram 7h da manhã. A cidade ainda bocejava, e eu levava minha filha para a Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Aula cedo, café apressado, aquele silêncio típico de quem ainda não decidiu se acordou ou se foi acordado. Parei para abastecer. Coisa rápida, pensei. Como quase tudo que faço, estava do lado confortável da mangueira que abastecia.

E sabes quem me atendeu, caboco? Foi uma mocinha negra, bonita, muito jovem. Jovem demais para aquele horário. Jovem o bastante para ter idade próxima à da minha filha. E aí a cabeça, insubordinada como sempre, fez o que não devia: pensou.
Minha filha seguia para a sala de aula. A outra segurava a mangueira de combustível. Uma ia aprender teoria e buscar uma profissão; a outra já labutava e lidava, sem escolha, com a prática diária de se manter em pé. Não era pena. Nem curiosidade. Era aquele incômodo que chega sem pedir licença e não vai embora fácil.
O posto ficava num bairro nobre. Casas grandes, carros caros, gente que não pergunta o preço do litro. Difícil imaginar que aquela jovem morasse ali.
Mais difícil ainda imaginar que, algum dia, estivesse do outro lado, escolhendo entre aditivada ou comum. Fiquei pensando a que horas ela teria saído de casa para estar ali às 7h. Quem a acordou: um despertador ou a vida.
Enquanto o tanque enchia, a frase apareceu sozinha, sem esforço: privilégios de poucos, ralação de muitos. E eu ali, abastecendo, contribuindo para o fluxo normal das coisas, esse sistema eficiente e perverso que funciona perfeitamente — desde que cada um permaneça exatamente onde sempre esteve.
Santa Catarina na contramão
Nessa mesma semana, li sobre o fim das cotas raciais nas universidades estaduais de Santa Catarina. A Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei que proíbe cotas raciais e agora aguarda a sanção do governador Jorginho Mello (PL).
Tudo muito civilizado, claro. Racismo, ali, foi tratado como assunto superado — provavelmente resolvido entre um cafezinho institucional e outro, no conforto de quem nunca precisou provar nada além do próprio sobrenome.
E vejam só, o Projeto de Lei nº 753/2025, apresentado pelo deputado Alex Brasil, também do PL (vixe, vixe!), exclui as cotas raciais das reservas de vagas, mantendo apenas critérios socioeconômicos, para pessoas com deficiência e egressos de escolas públicas.
A mensagem é clara: raça agora é detalhe. Quase um acessório incômodo que alguém esqueceu de avisar que ainda existe.
Disseram que agora bastaria renda. Que raça divide. Que tudo deveria ser neutro. Que devíamos apagar da nossa história os quatro séculos de escravidão. Sempre achei curiosa essa pressa pela neutralidade quando ela começa a funcionar para quem nunca precisou dela.
Falam como se o racismo tivesse entrado em recesso, talvez férias coletivas. Como se a cor da pele não atravessasse currículos, entrevistas, olhares enviesados e abordagens policiais cheias de “procedimentos padrão”. Como se duas pessoas com o mesmo salário largassem do mesmo ponto numa corrida que, curiosamente, alguns começaram séculos antes.
A história brasileira nunca foi neutra. Durante cerca de quatro séculos o Estado organizou sua economia, sua política e sua moral em torno da escravidão. Pessoas negras não foram apenas exploradas; foram oficialmente impedidas de existir como sujeitos de direito.
Quando a escravidão acabou, em 1888, não houve integração, escola, terra ou trabalho digno. Houve silêncio. E o silêncio, como sabemos, é uma política pública muito eficiente.
Enquanto ex-escravizados eram largados à própria sorte — essa entidade abstrata que nunca aparece para ajudar — o país financiava imigração europeia, distribuía terras indígenas e abria portas aos imigrantes. A universidade pública, que hoje se diz neutra, nasceu branca, urbana e elitizada. Não foi acaso. Foi planejamento. Com metas e tudo.
As cotas raciais surgem muito depois — tarde demais, imperfeitas, limitadas — como tentativa de corrigir um erro histórico que jamais foi corrigido. Não são prêmio. Não são favor. São uma reparação mínima. Não abaixam o teto; tentam, com muito esforço, nivelar o chão que sempre foi inclinado.
Quando dizem que agora “basta renda”, ignoram algo evidente fora dos plenários: renda não explica tudo. Dois jovens com o mesmo salário não enfrentam o mesmo mundo se um deles carrega na pele um estigma construído ao longo de séculos.
A cor atravessa a porta da entrevista, a abordagem policial, o julgamento silencioso no corredor. Atravessa, inclusive, a expectativa de futuro — esse luxo invisível.
Dizer que raça divide é confortável para quem sempre esteve do lado inteiro da divisão. O que divide não é a política de inclusão. O que divide é um país que insiste em chamar de igualdade aquilo que sempre foi vantagem histórica.
Quem segue e quem fica
A mocinha passou meu cartão e desejou bom dia. Minha filha mexia no celular, alheia a tudo aquilo, seguindo o protocolo de uma jovem de 20 anos. Dei partida. Saímos.
Fiquei pensando que o debate não mora nos plenários nem nos editoriais. Mora ali, naquele posto, às 7h da manhã. Mora na distância silenciosa entre duas jovens da mesma idade, vivendo manhãs que não se tocam.
No trânsito lento a caminho da universidade, minha filha quebrou o silêncio. Olhava pela janela, como quem vê sem olhar direito.
— Pai, às vezes eu acho estranho quando dizem que é tudo mérito — disse, sem me encarar. — Parece que todo mundo acha que a vida é uma corrida justa. Mas nem todo mundo larga do mesmo lugar. Tem gente que começa quando a prova já está pela metade.
Não respondi. Algumas coisas não pedem resposta. A universidade aparecia ao fundo, grande, concreta, quase óbvia para nós dois.
E pensei que, enquanto uns seguem a vida tentando chegar à largada, outros passam as manhãs abastecendo o movimento dos demais. Como diz o sociólogo Anibal Quijano, a colonização e a escravidão formalmente acabaram, mas a colonialidade continua fomentada na cabeça das pessoas pelos aparelhos ideológicos de Estado: escola, mídia, família.

Zumbi dos Palmares – Imagem: Reprodução/Internet
Imagem de Capa e demais imagens internas – Fonte: TaQuiPraTi





