A lenda do carro

A LENDA DO CARRO CAÍDO

A lenda do carro caído 

O negro vinha da Aldeia Velha, servindo de carreiro. O carro tinha muito sebo com carvão nas rodas e chiava como frigideira. Aquilo não se acaba nunca.

Sua incelência já reparou os ouvidos da gente quando está com as maleitas? Pois, tal e qual.

O carreiro era meu charapim: acudia pelo nome de João, como eu.

Deitou-se nas tábuas, enquanto os bois andavam para diante, como as archatas merejando suor que nem macaxeira encruada.

Levavam um sino para a Capela de Extremoz. Na vila era povo como abelha, esperando o brônzio para ser batizado logo.

João de vez em quando acordava e catucava a boiada com a vara de ferrão:

– Eh, Guabiraba, eh, Rompe-Ferro, eh, Manezinho!

Era lua cheia.

Sua incelência já viu uma moeda de ouro dentro de uma bacia de flandres? Assim estava a Lua lá em cima.

João encarou o céu como onça ou gato-do-mato.

Pegou no sono, o carro andando…

Mas a boiada começou a fracatear, e ele quando acordava, zás! – tome ferroada!

Os bois tomaram coragem à força. Ele cantou uma toada da terra dos negros, triste, triste, como quem está se despedindo.

Os bois parece que gostaram e seguraram o passo.

Então ele pegou de novo no sono.

Quando acordou, os bois estavam de novo parados.

– Diabo! E tornou a emendá-los com o ferrão.

A coruja rasgou mortalha. João não adivinhou, mas a coruja era Deus que lhe estava dizendo que naquela hora e carregando um sino para a casa de Nosso Senhor não se devia falar no Maldito.

Gritou outra vez!

– Diabo!

O canhoto então gritou do inferno:

– Quem é que está me chamando?

João a modo que ouviu e ficou arrepiado. Assobiou para enganar o medo; tornou a cantar a toada, numa voz de cortar o coração, como quem está se despedindo.

Pegou ainda no sono uma vez. Se a luz da Lua escorrendo do céu era que nem dormideira!

Quando acordou – aquilo só mandando! – a boiada estava de pé.

– Diabo!

O Maldito rosnou-lhe ao ouvido:

– Cá está ele!

E arrastou o carro para dentro da lagoa com o pobre do negro, os bois e tudo. Ele nem teve tempo de chamar por Nossa Senhora, que talvez lhe desse socorro.

Mas ainda está vivo debaixo d´água, carreando.

Sua incelência já passou por aqui depois da primeira cantada do galo no tempo da Quaresma? Quando passar, faça reparo: – canta o carreiro, chia o carro, toca o sino e a boiada geme…

Luís da Câmara Cascudo (1888–1986) – Folclorista. Em “Lendas Brasileiras”, Ediouro, 2.000.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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