Cristiane Pereira dos Santos: Militância entrelaçada com a luta dos movimentos sociais

Cristiane Pereira dos Santos: Militância entrelaçada com a luta dos movimentos sociais

Por: Zezé Weiss – 

Houve um tempo no Distrito Federal em que a chamada Expansão de Samambaia, onde é hoje a Quadra 600 da Cidade de Samambaia, era só lama, barraco, pobreza, e mais nada. Foi lá, na segunda metade da década de 1990,  que a jovem Cristiane Pereira dos Santos, menina de classe média nascida (em 1977) e criada no Cruzeiro, cidade tradicional de Brasília, entrelaçou seu destino com a dos .

Muito católica, Cris apaixonou-se pelos ventos libertários das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), tornou-se freira franciscana, organizou uma comunidade e foi fazer trabalho social na Expansão de Samambaia. Como condição para essa mudança radical de vida o pai, comerciante de lotes e carros na cidade goiana de Luziânia, exigiu apenas que os estudos não fossem interrompidos.

Foi assim que Irmã Cristiane, estudante do elitizado curso de  jornalismo na de Brasília (UnB), passou a frequentar as aulas vestida com seu hábito nos dois anos (1998 e 1999) em que concluiu o curso e permaneceu no Convento. Na UnB, teve muita vontade mas não conseguiu militar no movimento estudantil, atividade àquele tempo  incompatível com a vida religiosa.

Bullying por sua condição obviamente distinta ela diz que, se sofreu, não percebeu, mas bronca da comunidade Cris conta que levou: “Colegas meus estavam numa onda de estudar o “estranho”, o diferente, a condição do não-pertencimento, e vieram pra Samambaia, com suas câmeras de lentes grandes, fotografaram meus vizinhos, fotografaram as crianças, o pessoal não gostou, não gostou mesmo. E eles reclamaram comigo que  foi um incômodo danado aquele diferente invadindo o seu espaço.”

Já na UnB, eles acharam aquele modo de  vida muito “estranho”. Cris foi pra cima: “Estranho é vocês ficarem de sunga em suas festas do Lago Sul. Lá na comunidade ninguém anda de sunga no meio dos outros. Estranho é vocês fazerem um monte de comida e ninguém comer. A gente faz muita comida, mas é pra todo mundo, e quando sobra a gente chama mais gente.” E completa: Imagina, as pessoas me tratando como se eu fosse estranha, quando os estranhos eram eles.”

Daquele mundo de estranhezas Cris se distanciou total depois da formatura, em 1999. Pra começar, a jornalista encontrou seu primeiro emprego no gabinete de um deputado do Partido dos , o Paulo Tadeu. “Aquele emprego, eu a-m-a-va! Ali, eu aprendi muita coisa revolucionária. Conheci a história de Marighela, e conheci o próprio Lula. Mas como jornalista durei pouco. Descobri o pensamento de esquerda, a complexidade das lutas do movimento popular, e optei por virar militante, acima de tudo militante.”

Em 2000, Cristiane Pereira dos Santos filiou-se ao PT. Com  a militância partidária, veio a decisão de sair do Convento. Como não tinha ainda feito seus votos perpétuos, só saiu. “O agito da militância não combinava nada com a da vida religiosa. Era o tempo do Plebiscito da Dívida Externa, tínhamos que recorrer milhares de assinaturas, e eu entrei na organização do 1º Grito dos Excluídos, não tinha hora de voltar pra casa,” explica Cris.

Logo depois, Cris foi apresentada e se apaixonou pela ideia da Central de Movimentos Populares, a CMP, uma espécie de CUT de várias lutas sociais, da saúde aos catadores de , aos movimentos de moradia, à economia solidária. Foi a partir da CMP, onde está há mais de 15 anos, que a militante Cristiane teve a oportunidade de trabalhar com o professor Paul Singer na construção dos grupos autogestionários de produção.

O jeito de fazer isso foi criar um núcleo de economia solidária dentro da CMP. Foi a partir desse núcleo que Cris conseguiu organizar grupos de produção dentro dos CAPS, que são centros de atendimento psicossocial das secretarias de saúde. “É um espaço único e especial porque muitas das pessoas que passam por terapia ocupacional nos CAPS não se adaptam aos padrões do emprego formal, com hora de entrar e sair, com cartão de ponto, mas com um pouco de carinho e incentivo podem encontrar um outro jeito de trabalhar.”

Com Cris, os grupos de produção foram se multiplicando nos CAPS do Paranoá, da Samambaia. “A organização da produção acabou virando a militância do meu coração porque sem trabalho as pessoas ficam muito vulneráveis… Muito difícil construir a noção de dignidade, de busca de direitos, de igualdade  se elas não têm trabalho. Então, conseguir organizá-las sob a uma perspectiva da autogestão cooperativa, sem patrão, e da repartição justa de lucros, me apaixona.”

 

Uma coisa vai levando à outra e, depois de muita reflexão, a CMP resolveu entrar no campo de uma defesa mais organizada da habitação popular. Foi criada a AMORA, e Cris entrou de cabeça na luta por moradia, especialmente para os catadores e catadoras de lixo do Distrito Federal, outra luta com a qual está envolvida há anos.

“Se não tivessem os catadores a gente não estava reciclando nada.  Aqui no Distrito Federal geramos uma enorme produção de resíduos. Se isso for aterrado sem reciclagem, os aterros sanitários terão uma vida útil muito curta. O Aterro que foi recém-inaugurado em Samambaia, por exemplo, não vai durar nem três anos. Sem os catadores, em breve Brasília pode voltar a ter um dos maiores lixões a céu aberto da América Latina, como era no Lixão da Estrutural até bem pouco tempo.”

Na AMORA, Cris ajuda a organizar a luta para fazer valer a lei criada no governo Agnelo Queiroz garantindo que em 100% dos projetos habitacionais do DF, 20% das moradias devem ser alocadas para a população em situação de vulnerabilidade social, como os moradores e moradoras de rua, e os catadores e catadoras.

Mas a AMORA quer mais: quer também organizar projetos autogestionários de moradia popular, dentro da linha entidades do Minha Casa, Minha Vida. “Esse é o caminho, porque juntando a comunidade e as entidades que estão lá, junto dela, podemos adaptar os projetos sociais de moradia às necessidades de cada família, podemos organizar um processo coletivo de cuidado não só com a casa, também com o e com toda a vida familiar e comunitária,” completa Cris.

Mesmo com toda essa riqueza de militância, Cris ainda arruma energia para ocupar boa parte do seu tempo como Secretária de Mobilização Social do PT-DF, onde ela tem a consciência que entrou não exatamente por seus 20 anos de organização comunitária, mas  sobretudo  graças à política interna de equidade de gênero do PT, que exige que metade dos cargos de direção sejam destinados para as mulheres.

Não que no PT seja uma perfeição, mas Cris admite que foi no PT que ela começou a compreender melhor a questão de gênero, a discriminação contra as mulheres: “Olhando pra trás, eu vejo que sempre houve muita discriminação em minha vida, mas eu não sentia porque ia dando um jeito, cotovelando, arrombando portas, fazendo o que tinha que ser feito.”  Se enfrentou dificuldades no PT? Claro que sim, mas tento fazer de cada limão uma limonada, tento fazer um trabalho diferenciado, e vou ocupando cada centímetro de cada espaço, porque esse é meu papel como mulher.”

O esforço parece estar gerando mudanças de comportamento, e resultados. Para Jacy Afonso, secretário de Organização do PT, a militância orgânica de Cris aproximou mais o PT com os movimentos sociais, abriu espaços de novas parcerias e protagonismos, e organizou a casa. “Com a Cris, muita coisa que era feita na Secretaria de Organização foi descentralizada, ganhou vida própria. O Movimento Lula Livre, por exemplo, tornou-se muito maior porque tem uma secretária de Mobilização diretamente envolvida, colocando o bloco na rua.”

E foi assim, com afinco, firmeza, muita personalidade, e a força da luta das mulheres do PTDF que essa menina filha de corretor de imóveis e mãe cozinheira, aliás vinda de uma família de cozinheiros, o irmão tem uma carrocinha de cachorro-quente, uma irmã conduz seu próprio food truck, a outra irmã é nutricionista em uma franquia de alimentos, acabou virando suplente do candidato a Senador Marcelo Neves, nas de 2018, em um processo que Cris considera um avanço, mas longe do ideal.

“Nessas eleições as mulheres do PTDF, sob a coordenação da Secretária de Mulheres, Andreza Xavier,  conseguiram romper a barreira de entrar na chapa majoritária, não somente pela decisão partidária de investir na equidade de gênero, mas principalmente por nossa capacidade de resistência. Queríamos o que nos é de direito, a divisão equitativa dos cargos, não as suplências. Conseguimos lançar a vice-governadora de Júlio Miragaya, Cláudia Farinha, e três mulheres na suplência das chapas dos dois senadores: Cris Pereira dos Santos e Iolanda Rocha, com Marcelo Neves e Olga Freitas, com Wasny de Roure.”

Suficiente? “Claro que não, mas essa foi a composição possível.  A gente alargou  o processo e ampliou os espaços de participação das mulheres petistas nas instâncias e campanhas do Partido. Estou segura de que 2022 não será a mesma coisa, não dá nem pra cogitar algo semelhante. jeito que os homens petistas vão tratar as mulheres daqui pra frente será diferente, muito diferente. É como diz, de forma muito didática nossa companheira Cláudia Farinha: ou os homens do PT se ajustam a essa nova realidade, ou serão atropelados. A gente existe, a gente milita, a gente é companheira, e não aceita nada mais, nada menos do que espaços iguais, literalmente iguais, na militância, nas direções e nas campanhas partidárias.”

Oxalá, Cris, oxalá!

Cris Pereira 3

ANOTE AÍ:

Fotos: Acervo Cris Pereira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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