As burlas do capitão xauara: manual para ler bula

As burlas do capitão xauara: manual para ler bula
 

O que é mais difícil digerir: uma pupunha mal cozida, “” de Marx, uma bula de remédio ou os pronunciamentos do Bolsonaro, que são motivos de galhofa e de charges na mídia do mundo inteiro?

Pupunha parece um palavrão pronunciado por um gaguinho. Mas é uma fruta amazônica. Dura. Tem um nome próprio sonoro: pu-pu-nha, que parece o pretérito imperfeito do indicativo de algum derivado do verbo pôr.  Os peruanos deram-lhe outro nome: pijuayo.

Cozida, a pupunha é mais fácil de digerir do que o tijolaço de Marx ou as declarações de Bolsonaro. A prova é que não existe manual ensinando como comer pupunha, mas a deputada Joice Hasselmann (PSL vixe vixe) vive nos dizendo o que seu líder quis dizer.  Já a leitura de “O Capital” tem dezenas de guias. Um deles é “Para ler O Capital” organizado em 1968 pelo filósofo Louis Althusser, com dicas para compreender a obra genial, que faz a radiografia do sistema capitalista.

É mais fácil ler bula de remédio ou “O Capital” do que as burlas do Jair Bolsonaro que quer preservar a fazendo cocô um dia sim e outro não. Isso ficou claro quando há anos uma endoscopia detectou em mim uma úlcera gástrica tratada pelo médico José Augusto Messias que me receitou, na época, dois remédios eficazes: Prepulsid e Losec.

Vide bula

Consultei as bulas para inteirar-me sobre a droga milagrosa. Não entendi bulhufas. Tive, então, uma ideia luminosa: escrever um manual para ler bulas. Serei o Althusser manauara das bulas.

De saída, recomendo duas precauções:

1. A bula e os discursos do Bolsonaro devem ser encarados como gênero literário com estrutura discursiva própria, tal qual um poema, um romance, um conto. É preciso se apropriar de tal estrutura, que está organizada em capítulos:

Composição revela as substâncias químicas. Nas Indicações ficamos sabendo para que tipo de doença serve. As Propriedades mostram como o remédio atua no organismo. Nas Precauções e Advertências, o enfermo é advertido das contraindicações e efeitos colaterais. Por último, a Posologia indica o modo de usar.

2. O leitor tem de compreender o psiquismo do autor da bula, que nunca – nunquinha – escolhe uma palavra de fácil compreensão, se pode arrotar outra difícil. Por que “modo de usar”, quando existe posologia que vem do grego e é grego para os leigos? Já o autor da burla escolhe sempre, sempre, palavras chulas, vulgares e até obscenas especialmente quando agride a realidade, a ciência e os cientistas.

 

O esfíncter

Como a linguagem da bula é esotérica, desaconselhamos buscar o Aurélio, pois as palavras das bulas não são dicionarizáveis. O nosso modesto método de leitura pretende superar este problema, aplicando três regras básicas:

  1. Fixar-se no que você entende.
  2. Vasculhar a memória.
  3. Buscar exemplos da vida real.

Tomemos o exemplo do Prepulsid, composto de celulose microcristalina, polivinilpirrolidona, sílica coloidal amorfa, estearato de magnésio 20, metilparabeno, propilparabeno  e – ôpa! – aroma de cereja e água purificada. Portanto, se algum curioso lhe pergunta, responda:

– Estou tomando remédio à base de aroma de cereja e água purificada.

Para que serve o Prepulsid? Ora, é muito simples. No que se refere à motilidade gastrintestinal, aumenta a atividade peristáltica do esôfago e o tônus do esfíncter inferior, prevê o refluxo gastroesofágico e facilita o conduto esofágico dos alimentos.

Sacou? Não? A regra 2 recomenda recorrer à memória pessoal. Quando a vovó Filó caiu doente e fazia xixi e cocô sem querer, ouvi tia Dedé falar a minha mãe, em tom grave e voz baixa:

– Tadinha! Ela perdeu o controle dos esfíncteres.

Taí, os esfíncteres controlam o grau de amplitude do orifício e, portanto, o trânsito do cocô e do xixi, seja contraindo-se, seja relaxando-se. Saquei, portanto, que o Prepulsid deixa os esfíncteres pisca-piscando.

Muito bem, vamos agora ao capítulo que mais interessa aos hipocondríacos: os efeitos colaterais e as reações adversas.

Borborigmo

Espanha%20Holanda%20ItaliaNão quero assustar, mas devo dizer que a aceleração do peristaltismo gastrintestinal pode provocar cólicas abdominais, borborigmo, obstipação, diarreia, cefaleia, convulsões e – pasmem – reações extrapiramidais. Por isso, mulher grávida não pode tomar Prepulsid, nem durante o período de lactação, devendo-se evitar seu uso com neonatos prematuros. Estamos entendidos?

Este capítulo exige tradução séria e a aplicação das três regras. Peristaltismo, como nos ensinou o mestre Vicente Schetini no Colégio de Aparecida, está relacionado aos esfíncteres da tia Dedé, digo, já definidos pela tia Dedé. Ora, se o movimento peristáltico se acelera, provoca dor intensa no abdome, sentida antes mesmo de tomar o remédio, só por influência da leitura da bula. São as cólicas abdominais. Cólica é cólica. Abdome é a parte do que contém os órgãos digestivos e urinários.

Quem evita as cólicas, do borborigmo não escapa. O nome onomatopeico diz tudo. Borborigmo é aquele barulho, aquele rugido produzido no abdome pelo deslocamento de gases em meio de líquidos do tubo gastrointestinal, som noturno e muito familiar para quem viaja em barco-recreio, dormindo em rede. Bolsonaro diria que borborigmo é um peido comunista metido à besta que perdeu o passaporte e não pode viajar. De protesto, ele fica fazendo glu-glu-glu na barriga da gente como faz a gentalha esquerdopata argentina.

O Prepulsid pode causar também obstipação e diarreia. Obstipação é o que o Poder Judiciário fez com o processo do Queiroz e do Flávio Bolsonaro: trancou. Ou o que o Bolsonaro quer fazer nomeando um amigo Superintendente da Polícia Federal. Na linguagem corrente é uma reles e mixuruca prisão de ventre, só de ventre, porque as outras prisões não atingem a família e os amigos. E a diarreia? Bem, diarreia todo mundo sabe o que é: aquilo que o Bolsonaro faz quando abre a boca. Até para justificar invasão de fala em “cocozinho petrificado”.

A bula é mais ameaçadora ainda: o Prepulsid pode produzir cefaleia, que traduzido ao popular é a dor de cabeça do tipo que The Intercept Brasil causa no ex-juiz e no procurador Deltan Delagnol, quando reproduz os diálogos criminosos que ambos mantiveram no WhatsApp.

Extrapiramidal

Finalmente a lactação e as reações extrapiramidais. Lactação é o que Queiroz e Flávio Bolsonaro fizeram nas tetas da Assembleia Legislativa do Rio. E reações extrapiramidais? A piramidal já é phoda. Extrapiramidal, nem falar, deixa em pandarecos o sistema nervoso central. Neguinho começa a fazer movimentos involuntários, com espasmos dos músculos da cabeça, olho revirado, pra fora. É o que o ministro Abraão Weintraub sente toda vez que se defronta com estudantes ou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles diante do ex-diretor do Inpe, Ricardo Galvão.

Espero que o método seja útil aos leitores. Ou será que terei os problemas de Althusser? Segundo o cineasta Jean-Luc Godard, o texto de Althusser para facilitar a leitura de Marx acabou sendo tão hermético quanto “O Capital”. Por isso, um sindicalista, personagem de Godard, aparece em um de seus filmes lendo um terceiro intitulado: “Como ler o livro de Althusser Para Ler o Capital”. É um manual para orientar a leitura de outro manual.

Sabe de uma coisa? Já que toda bula tem algo de burla e considerando o discurso de Bolsonaro na quarta (14) no aeroporto de Parnaíba – “Vamos acabar com o cocô no Brasil. O cocô é essa raça de corrupto e comunista“-  é melhor chamar o presidente e encarregá-lo de redigir, daqui pra frente, todas as bulas de remédio. Assim, a cagada é grande, mas pelo menos todo mundo entende, com exceção dos pobres coitados que continuam gritando “”, “mito”. Que o digam as que nessa semana organizaram uma marcha em Brasília contra a atual política nociva aos índios.

Fonte: Taquiprati

Nota da Redação Xapuri: O nome do presidente no título original foi substituído pela definição que ao grande líder Davi Kopenawa faz do mandadátrio em questão: xauara. Para os Yanomami, xauara é uma pessoa que tem o pensamento doente. Da mesma forma, em vez do uso da montagem de charges publicado pelo professor José Bessa em seu blog, optamos por esta foto do Adriano Machado/Reuters representando a tragédia do fogo na Amazônia.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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