Quem é Kalunga sabe. Quem não é Kalunga precisa aprender

Quem é sabe. Quem não é Kalunga precisa aprender

O Kalunga é uma comunidade de negros e negras formada por descendentes de pessoas escravizadas que fugiram do cativeiro e organizaram um quilombo, há muito , num dos lugares mais bonitos do , a Chapada dos Veadeiros, no norte de .

A história do povo Kalunga os mais velhos sabem, porque ouviram de seus pais, que ouviram de seus avós, que ouviram dos avós de seus avós, que eram os seus bisavós e tataravós.

Dizem que ali naquelas serras havia uma mina chamada Boa Vista. Ali os escravos trabalhavam de sol a sol, cavoucando as grupiaras para tirar aqueles montões de cascalho que depois eles lavavam, nos regos que traziam a água dos rios e dos córregos, para separar o ouro.

O era difícil e a dura porque, como era de costume, qualquer pequena falta que o escravo cometia, lá estava o senhor para aplicar-lhe os castigos. Eram presos no tronco pelos pés e pelas mãos. Amarrados no pelourinho, apanhavam com o chicote molhado que lanhava suas costas.  E a palmatória cantava, batendo em suas mãos.

Os mais velhos ouviram até mesmo contar que, quando um escravo fugia e o senhor o pegava de volta, costumava queimar os pés dele com gordura quente, para ele não poder mais fugir. Mas quem segura um escravo que sonha com a própria liberdade? Por isso os escravos, apesar dos castigos, continuavam tentando fugir.

FUGIR, MAS IR PARA ONDE?

Para um lugar bem distante, onde ninguém os pudesse alcançar. E isso era o que não faltava naquelas terras de Goiás. Quem passa hoje pela Chapada dos Veadeiros compreende por que os escravos que fugiam das minas iam se refugiar ali.

A Chapada é um mar de serras e morros cheios de buritis que se estendem até onde a vista alcança. O Território Kalunga é cercado por eles. Serra do Mendes, do Mocambo, Morro da Mangabeira, Serro do Bom Jardim, da Areia, de São Pedro, Moleque, Boa Vista, Contenda, Bom Despacho, Serra do Maquiné, Serra da Ursa.

São encostas íngremes, cheias de pedra. Os caminhozinhos estreitos fazem curvas e sobem cada vez mais, quase perdidos no meio do mato. Depois, do outro lado, os paredões de pedra caem quase a pique nas terras baixas dos vales, como muralhas impossíveis de ultrapassar.

O LUGAR ONDE A LIBERDADE FEZ MORADA

Devagarinho, o povo Kalunga foi se estendendo pelas serras em volta do Rio Paranã, por suas encostas e seus vales, que os moradores chamam de vãos. Como viviam em propriedades mais ou menos isoladas, as famílias se distribuíram com largueza por aquelas terras. Hoje eles ocupam um vasto território que abrange parte de três municípios do Estado de Goiás: Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás.

Nesses territórios, existem quatro núcleos principais da população: a região da Contenda e do Vão do Kalunga, o Vão de Almas, o Vão do Moleque e o antigo Ribeirão dos Negros, depois rebatizado como Ribeirão dos Bois. E é assim que os moradores se identificam, quando se pergunta de onde eles são: do Vão de Almas, da Contenda, do Moleque…

Mas nem sempre eles falam só desses núcleos para dizer onde moram. Falam das pequenas localidades que existem nesses lugares maiores, porque é lá que eles de fato vivem. Falam de lugares que se chamam Riachão, Sucuri, Tinguizal, Saco Grande, Volta do Canto, Olho d´Água, Ema, Taboca, Córrego Fundo, Vermelha, Lagoa, Porcos, Brejão, Fazendinha, Vargem Grande, Engenho, Funil, Capela e mais dezenas de outros nomes.

OS MUITOS NOMES DA MORADA DA LIBERDADE

Mas o que quer dizer Riachão, Boqueirão, Volta do Canto, Córrego Fundo, Olho d´Água, Lagoa, Funil? São nomes que descrevem o jeito dos rios, córregos e riachos, suas curvas, seus remansos, o lugar onde a água brota, onde ela é represada, o lugar onde o rio se estreita, apertado.

E Terra Vermelha, Brejão, Vargem Redonda, Vargem Grande, Pedra, Ouro Fino? São nomes que falam de terra boa e terra ruim para o plantio, das baixadas da beira dos rios, do terreno pedregoso que está sempre presente, do metal valioso que a terra dá.

E o que são esses nomes, Tinguizal, Gameleira, Comprido, Palmeira, Taboca, Bacanal, Limoeiro, Mangabeira? São nomes de plantas da terra, local onde cresce a árvore franzina e forte do Cerrado, nomes das árvores frondosas ou elegantes, do bambuzal e das plantas que dão fruto e são alimento.

E Sucuri, Porcos, Ema, Rio dos Bois, do , Bezerra? São os bichos da terra, a cobra grande, a ave do Cerrado, os bichos da casa que ajudam no trabalho e alimentam a família Kalunga.

Por fim, no que se pensa quando se ouve falar em Mocambo, Fazendinha, Engenho, Capela? Em lugares de moradia, trabalho e oração.

Assim, esses nomes ensinam que a vida do povo Kalunga é inseparável de tudo o que é vivo e contribui para manter a vida na terra, no céu e no ar.

Fonte: Excertos de “Uma História do Povo Kalunga”, Unesco–MEC, 2001. Com títulos e edições de Zezé Weiss.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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