ADOECEU. Tá tudo tão triste.

ADOECEU. Tá tudo tão triste.

*(Fernando Tenório)

Estava conversando com um paciente que é militar sobre o isolamento social e as dificuldades de quem – como ele – mora sozinho. Lá pelas tantas, perguntei ao homem como estava fazendo para manter contato com os amigos e ele respondeu:

– Não tenho tido contato com meus amigos.

– Mas é importante manter alguma relação com as pessoas próximas, manter essa solidão em todos os âmbitos pode não fazer bem – retruquei.

– Aí que mora a minha questão, pois eu já não os reconheço mais. Não sei se são tão próximos.

– Como assim?

– Adoeceram de Bolsonaro, cara. Não sei se você votou nesse homem, mas ele entrou na cabeça das pessoas feito doença. Lá no virou uma coisa estranha. Ele parece ser um familiar das pessoas. Elas o defendem com unhas e dentes. O que ele fala vira verdade de forma instantânea.

O rapaz continuou falando sobre as dificuldades de estar em um meio no qual não se reconhece, afirmando que evita dar seus posicionamentos no ambiente militar:

– A minha é o silêncio. Não pode falar de política nas forças armadas, no entanto se for para falar bem do Bolsonaro, pode. Então lá eu não me pronuncio. Eu reconheço quem pensa parecido comigo pelo silêncio. Quem cala não consente nesse caso. Quem cala não foi infectado essa doença.

– E você trata isso como doença por quê?

– Porque como em algumas mentais não há argumento lógico que dê conta. Eu tentei conversar com amigos, parentes e todos ficam agressivos quando confrontados com as contradições. Parece um transe coletivo.

Continuamos conversar e eu falei que ele deveria ter outros amigos além do trabalho. Foi quando o militar sorriu laconicamente e disse:

– Estou cercado por todos os lados. Meus amigos de adolescência foram feitos na igreja evangélica que eu frequentava desde a . Quer dizer, que eu ainda frequento. Todos doentes de Bolsonaro também.

– E como se deu isso?

– O pastor de lá, sempre foi um cara do bem, e assumiu o voto no atual presidente e foi reproduzindo nos grupos, postando coisas que abalavam a nossa fé. Foi adoecendo e adoecendo outros. Ficou duro, rígido, odioso e beligerante. Fez arminha com a mão no culto.

– Sério?

– Sério. Cada vez ele inflamava uma parcela da igreja com as notícias falsas. Eram tantas que cada pessoa ou grupo ia se identificando com uma. Não demorou para que a simpatia ao Bolsonaro fosse menor do que o ódio a quem se dizia progressista, de , feminista… Muita gente votou por ódio e isso não dá em boa coisa. Eu entrei nesse lugal de ser odiado por ser “esquerdista”, simplesmente por não ter contraído essa “doença”.

– E você se posicionou?

– Eu tentei e em alguns grupos trouxe informações verdadeiras conflitando com as do pastor, mas logo fui retirado da liderança da banda da igreja e excluído de alguns grupos. Ninguém me procurou. Senti o peso do que é ter um pastor contra você. Fui sendo evitado pelas pessoas, meus amigos começaram a me ver como um perigo.

– Mas você ainda frequenta?

– Não sei dizer direito. Hoje vou mais pela força do hábito e pela culpa. Desde quando uma das salas foi liberada para um grupo sobre terraplanismo pudesse debater, vi que ali não era o lugar de que eu idealizei a vida toda. Eu fiquei decepcionado não com Deus, mas com o que fazem em nome dele. Aí silenciei e não participo mais da coletividade que era o que me dava a noção de pertencimento. Eu vou, oro sozinho, e volto pra casa.

Tentei fugir daquele discurso duro e que não deixava margem para apontamentos e provoquei:

– Seus pais frequentam essa igreja também. Você os encontra? E sua família também adoeceu de Bolsonaro?

– Essa é a minha maior tristeza. Meu pai adoeceu e levou minha mãe junto.

– Como foi isso?

– Meu pai era meu maior orgulho. Começou a vida como engraxate e foi para vida militar. Sujeito boa praça que chegava aqui nos botecos no subúrbio e era amado. Torcedor do Bangu, fazia uma fé no bicho, tinha papo sobre tudo. Era da igreja, mas sabia fazer críticas e vivia feliz.

– Era?

– Sim. Ele adoeceu de Bolsonaro em 2018 e virou o avesso do que era. Ficou triste, com uma linguagem toda estereotipada de “esquerdalha”, “globolixo”, “volta AI-5”. Virou um zumbi e não questiona nenhuma conduta do cara. Compartilha tudo que chega contra a esquerda, PT, … Não importa se é verdade, ele já vai postando ou compartilhando sem nenhuma crítica. Eu não consigo mais conversar com ele. Esse é o único assunto. Perdeu alguns amigos e só vive nos grupos bolsonaristas de Whatsapp e virou um ditador em casa. Foi por isso que fui morar sozinho.

– E sua mãe?

– Era uma senhora bondosa. Gostava muito de ir à igreja e fazer caridades. Todo gostava dela, porém virou aquelas coroas que vai de verde e amarelo para Orla de Copacabana pedir a volta da ditadura militar. Uma professora que pede a volta da ditadura. Logo ela que sofre com uma em casa…

O paciente seguiu falando que as vezes não reconhecia as pessoas que ele jurava conhecer tão bem. Do nada, começou a chorar e disse:

– Eu só queria meus pais, meus amigos e minha igreja de volta. Eu queria que essa doença passasse de uma vez e a gente pudesse voltar a conversar sobre tudo. Eu queria poder discordar sem me sentir mal ou odiado por isso. Eu queria gritar um gol do Bangu com meu pai, fazer uma feijoada com a minha mãe ou fazer um som com meus amigos. Eu queria trabalhar sem medo de ser perseguido por meu silêncio diante do ufanismo da maioria. Vai demorar, mas estou esperando que eles voltem desse transe.

Tá tudo tão triste.

*Fernando Tenório é psicanalista, adjunto do Dept de Psicologia da PUC.

Fonte: Facebook

[smartslider3 slider=34]

 

 

Deixe seu comentário

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

REVISTA