Discursos de líderes começam nesta terça-feira 22 e devem refletir as principais disputas globais, além da crise do coronavírus
Mas não é só a crise sanitária que dá o tom da Assembleia neste ano. No aniversário de 75 anos da ONU, o evento vai cumprir o seu papel histórico de reunir vozes sobre os principais conflitos internacionais do presente.
Brasil retorna como um ator global irrelevante
Um ano após um discurso incendiário, o presidente Jair Bolsonaro retorna ao palanque da ONU com o 2º maior número de mortos na pandemia e índices descontrolados de desmatamento e de queimadas.
Para Roberto Santana Santos, doutor em Políticas Públicas e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), de 2019 para cá, a posição de Bolsonaro no cenário internacional mudou para pior, tornando-se um líder ainda mais isolado.
Além do negacionismo da crise sanitária e da gestão ambiental, Santana cita decisões delicadas do Brasil em relação à própria ONU, como a abstenção a uma resolução que condenava a discriminação à mulher, colocando-se ao lado de governos conservadores como o da Arábia Saudita, do Egito e do Paquistão.
O professor avalia que as posições de Bolsonaro são vistas como “esdrúxulas” por outros líderes, em especial ao tornar a política externa brasileira como um “satélite” do governo dos Estados Unidos.
“No início do século XXI, o Brasil tinha uma posição altiva. Grandes discussões internacionais sobre economia, meio ambiente e direitos humanos tinham o Brasil como grande participante. Hoje, é excluído disso”, aponta. “O Brasil que chega à Assembleia completamente fora dos debates, seja por posições nocivas à humanidade, seja porque se apequenou aos norte-americanos. O que parece é que não temos política internacional, o que nos torna um ator irrelevante.”
Trump busca reeleição sem liderança global
Em disputa para renovar o seu mandato, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, teve gestão marcada por posturas hostis a articulações internacionais.
Em 2017, Trump anunciou a retirada dos EUA do Acordo de Paris, firmado em 2015 para reduzir o aquecimento global, com a assinatura de 196 países.
Em 2018, desfez o acordo com o Irã, que envolve Alemanha, China, França, Reino Unido e Rússia, e que tinha o intuito prevenir que o país persa desenvolva armas nucleares.
Em 2019, retirou os EUA de um tratado da ONU sobre a regulação do comércio internacional de armas.
Neste ano, determinou a saída da Casa Branca da Organização Mundial da Saúde (OMS), entidade que lidera lutas globais contra doenças e tinha os Estados Unidos como os principais doadores.
Trump também distribui sanções em larga escala, ou seja, punições econômicas unilaterais contra países que mantêm políticas que desagradam a Casa Branca.
O presidente americano intensificou bloqueios a Cuba e Venezuela, abriu novas sanções contra o Irã, entrou em guerra comercial e tecnológica contra a China e ameaça até os aliados europeus, para sabotar aproximações com os chineses e russos.
Além disso, Trump retomou intervenções agressivas na América Latina, também para frear a presença chinesa e russa na região.
Aos venezuelanos, Washington faz ameaças abertas de ingerência, como quando Trump afirmou ao canal Telemundo que “algo acontecerá” no país, com o envolvimento dos Estados Unidos.
A deposição de Evo Morales na Bolívia também é acusada de golpe com suporte dos EUA, segundo afirmou o próprio ex-presidente, em entrevista a CartaCapital.
Para completar, durante a pandemia, o governo americano foi acusado de reter itens médicos destinados a outros países, prática chamada de “pirataria moderna” por autoridades europeias.
Santana Santos avalia que o presidente retorna à Assembleia Geral como um líder que abdicou da hegemonia global, vide a retirada de acordos, a aplicação de bloqueios econômicos, as intervenções em outros países e as ações corsárias na crise sanitária. Essa prática incentiva a busca por circuitos alternativos de relações, diz o professor.
“Os EUA passam a impor sua dominação, o que é diferente de hegemonia. Quem quer ter hegemonia, obviamente, tem um aparelho coercitivo, mas precisa também produzir consenso e se apresentar como liderança. E eles não se apresentam com a menor vontade em produzir consensos”, diz.
Chavistas se recuperam na Venezuela
No discurso do ano passado, a vice-presidenta da Venezuela, Delcy Rodríguez, centrou suas críticas aos bloqueios dos EUA, ao autoproclamado presidente interino Juan Guaidó e ao sistema capitalista como principal motor da devastação ambiental.
Os mesmos temas foram mantidos neste ano, como mostrou vídeo prévio do presidente Nicolás Maduro exibido pela ONU na sexta-feira 18: “Avançamos nos objetivos de desenvolvimento, apesar dos Estados Unidos”.
A diferença em 2020 é que a Venezuela está diante de eleições que definirão os novos ocupantes das 277 cadeiras do parlamento.
De acordo com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), 107 partidos e organizações estão habilitados a participar das eleições de dezembro, mas a oposição está dividida em um debate sobre disputar ou não o processo.
Em 3 de agosto, 27 legendas anunciaram boicote ao pleito, por considerarem que a votação vai legitimar a “ditadura” de Maduro. É a posição defendida por Guaidó. Por outro lado, o opositor Henrique Capriles critica essa tática e diz que aceitar a eleição é a única forma de derrotar o chavismo.
Para convencer a oposição a participar, Maduro decretou indulto a 110 presos dirigentes da direita venezuelana, um “perdão” a opositores que, segundo o governo, tiveram envolvimento em atos violentos no país. A ideia também é atrair a União Europeia como observadora da votação, para legitimar o processo.
A pressão internacional sobre Maduro, no entanto, voltou a crescer com um relatório de uma missão da ONU que acusa o governo de cometer crimes contra a humanidade, sob uma metodologia criticada pelo chanceler Jorge Arreaza.
Para Santana Santos, ainda assim, o chavismo demonstra recuperação. Ao mesmo tempo, Guaidó sofreu desgaste por não ter conseguido exercer nenhum poder no estado venezuelano, apesar de ser reconhecido por mais de 50 países como presidente encarregado.
“O PSUV, partido do Maduro, pode conquistar mais da metade da Assembleia Nacional, trazendo o poder legislativo de volta às mãos chavistas, que era o único poder que eles não detinham. Porém, será um parlamento bem multifacetado, com uma direita esfacelada e algumas alternativas à esquerda fazendo a sua própria bancada”, diz o professor.
Debutantes latinos: destaques para Bolívia e Argentina
Pelo menos cinco presidentes da América Latina devem falar pela primeira vez na Assembleia: Jeanine Áñez, da Bolívia; Alberto Fernández, da Argentina; Luis Lacalle Pou, do Uruguai; Luis Abinader, da República Dominicana; Chan Santokhi, do Suriname.
No caso de Jeanine Áñez, será possivelmente a única aparição como mandatária da Bolívia, já que não participará das eleições que definirão o novo chefe do Executivo neste ano.
Poderia ser Evo Morales a discursar pelo país, com a reeleição de 2019, mas as acusações de fraude na votação impediram que ele voltasse à presidência.
Como os números provaram que não houve fraude, o processo que beneficiou Áñez vem sendo acusado de golpe de Estado.
Na corrida deste ano, Luis Arce, ex-ministro de Morales, lidera as pesquisas. Mas, para Santana Santos, o favoritismo do progressista não quer dizer que o caos político na Bolívia está próximo do fim.
“Vejo um cenário muito instável, não há nenhuma garantia de que esse pleito realmente acontecerá, com uma possibilidade tão grande do retorno do agrupamento de Evo Morales. E se acontecer, há possibilidade enorme de fraude e de violência para evitar um resultado desagradável às elites”, diz o professor.
“A conjuntura boliviana continuará muito incendiária”, destaca.
Já o argentino Alberto Fernández chega com méritos por ter renegociado 99% da dívida pública que está sob legislação estrangeira. Agora, falta um acordo para quitar 44 bilhões de dólares com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e 2 bilhões de dólares com o Clube de Paris.
Na pandemia, Fernández mostrou comprometimento com a gestão da crise, embora a adoção de longas quarentenas tenha sido rejeitada por parcela da sociedade.
Com um perfil discreto, Fernández se posiciona como um líder progressista que não desafia frontalmente os Estados Unidos, diz Santana Santos.
“Em termos internacionais, Fernández, em seu primeiro ano, se mostrou como uma pessoa muito hábil e um bom articulador, que conseguiu resgatar um pouco da imagem do país no cenário internacional”, avalia.
Colômbia vive massacres na gestão de Iván Duque
Aliado de primeira hora de Washington, o presidente Iván Duque não se mostrou capaz de deter uma sequência de violações de direitos humanos na Colômbia: pelo menos 61 massacres já ocorreram somente em 2020, com 246 pessoas assassinadas, segundo levantamento do Instituto para Desenvolvimento da Paz (Indepaz).
A última chacina deixou quatro mortos a tiros, no domingo 20, na divisa entre os municípios de Mosquera e El Charco, segundo reportou a emissora colombiana Caracol. Outro massacre ocorreu na cidade de Buenos Aires, na mesma data: seis jovens foram assassinados, outras quatro pessoas ficaram feridas.
Apurações indicam atuação de grupos armados organizados no campo, em maioria narcoparamilitares, com objetivos políticos.
O Indepaz registra 971 líderes sociais e defensores dos direitos humanos assassinados desde 2016, quando foi firmado o Acordo de Paz do governo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
O autoritarismo da polícia também é responsável por violar direitos humanos, em especial nos centros urbanos. Em 9 de setembro, agentes agrediram com choques elétricos um homem de 43 anos, Javier Ordóñez, que morreu em seguida. Protestos se levantaram em Bogotá contra a brutalidade do estado, e governo teve que pedir perdão.
Neste mês, o Indepaz encaminhou ao governo seis propostas para reduzir os abusos policiais. Entre elas, está a solicitação de uma visita de uma missão humanitária por parte da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos.
No Oriente Médio, Líbano sofre reflexos de explosão
Não bastasse a pandemia, os libaneses ainda precisam lidar com os efeitos de uma megaexplosão que deixou pelo menos 190 mortos em 4 de agosto.
Segundo informe da ONU, de 7 de agosto, o Líbano é a nação com maior número de refugiados per capita: 1 em cada 6 pessoas deixou seu lugar origem para viver no território libanês. Maior parte veio da Síria e da Palestina. A entidade reporta, no entanto, altas taxas de desemprego, inflação e depreciação monetária.
Doutor em Geografia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e membro do Grupo de Pesquisa Oriente Médio e Magreb, Danny Zahreddine explica que o país vive uma crise há décadas sob um sistema sectário de poderes. A explosão de 2,5 mil toneladas de nitrato de amônio em Beirute revelou um problema de governabilidade no país, diz o professor.
Com as autoridades pressionadas, em especial o grupo Hezbollah, que atua em forças militares e no parlamento, Zahreddine chama a atenção para a tentativa de Emmanuel Macron, da França, em intervir no país para recuperar seu protagonismo em articulações globais. Segundo o professor, Macron tenta influenciar um período de transição e fundação de um novo governo no país.
“França tenta trazer o protagonismo para si, querendo ter mais voz no Oriente Médio. O presidente Macron foi duas vezes ao Líbano em menos de um mês”, lembra o professor. “Com certeza isso vai aparecer nos discursos das Nações Unidas. O representante libanês vai falar sobre a necessidade de reformas, mas na prática a disputa interna no Líbano é violentíssima, porque a mudança do sistema sectário pressupõe virar de cabeça para baixo todo o sistema libanês.”
Palestina rechaça acordo de Israel com Emirados Árabes e Bahrein
A Palestina rejeita veementemente o acordo de paz que Israel firmou com os Emirados Árabes e o Bahrein, em 13 de agosto.
Para explicar por que o tratado é tão caro aos palestinos, Zahreddine lembra que os choques entre os territórios datam de 1948, com a assinatura da Declaração de Independência do Estado de Israel, quando o espaço palestino vem ficando cada vez menor.
Ao longo do tempo, explica o professor, a tentativa palestina foi tornar qualquer iniciativa de paz na região como um problema de âmbito internacional. Na contramão, Israel tenta reduzir a participação de outros países para solucionar a questão de forma bilateral.
Nessa linha, o acordo de paz representa, para a Palestina, uma brecha para Israel transferir as disputas para uma dimensão interna da região.
“Seria muito mais fácil para Israel negociar bilateralmente entre os árabes, do que sofrer uma pressão de todos para a solução do problema palestino”, diz Zahreddine.
Outro elemento que contribui para este acordo é a ascensão do Irã como força contrária aos Estados Unidos. Segundo Zahreddine, a expansão iraniana na Síria, no Líbano e no Iêmen é um fator que pressiona Emirados Árabes, Bahrein e Arábia Saudita a se aproximarem de Israel, com o objetivo de combaterem um inimigo comum.
Contudo, trata-se de um acordo de paz entre países que já são próximos há muito tempo, ressalta o professor.
“Que processo de paz é esse? É um processo de paz para quem não tem guerra, e não entre territórios que vivem o dilema da paz e da guerra”, afirma. “Por isso, os palestinos vão acusar os Emirados Árabes e o Bahrein de feri-los com uma facada pelas costas, porque essa iniciativa deveria envolver todos os árabes.”
Embargos sufocam economia do Irã
País-chave no Oriente Médio, o Irã representa um projeto de hegemonia similar a Rússia e China, ameaçando EUA e Israel na região, explica Zahreddine.
Dessa forma, tornou-se alvo de bloqueios econômicos severos dos americanos. Portanto, o que predomina no discurso iraniano perante a comunidade internacional é a rejeição às sanções da Casa Branca.
“Os embargos econômicos, de armas e de petróleo, são eficazes contra o Irã, pois eles geram crise econômica, desigualdade social, falta de medicamentos e perturbação política”, diz o professor.
É uma tentativa de sufocar a capacidade econômica iraniana, no sentido de diminuir o financiamento das suas forças na Síria, no Líbano e no Iêmen”, destaca..
As eleições dos Estados Unidos podem mudar os rumos dessa estratégia de sufocamento do Irã. Enquanto os democratas, na era Barack Obama, preferiram um acordo para reduzir a produção de armas nucleares no Irã, os republicanos, de Trump, apostam em asfixiar a economia do país, para enfraquecer a influência dos iranianos no Oriente Médio.
“Por outro lado, Rússia e China vão tentar suprir esse impacto que o Irã sofre com a política mais forte dos EUA”, pontua Zahreddine.
Rússia tenta sair na frente com vacina Sputnik V
O presidente Vladimir Putin reaparece na Assembleia das Nações Unidas deste ano, após um hiato desde 2015.
Diego Pautasso, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista na política externa de Rússia e China, crê que Putin pode aproveitar a Assembleia para enfatizar o seu comprometimento com a superação da Covid-19, tendo em vista que o país largou na frente com o desenvolvimento da vacina Sputnik V.
Apesar de não ter eficácia confirmada pela OMS, os resultados preliminares publicados pela revista The Lancet podem indicar a retomada da posição da Rússia na vanguarda tecnológica mundial.
Putin também pode sinalizar uma preocupação de reiniciar relações com os Estados Unidos, porque são altos os gastos que a Rússia tem para lidar com as ofensivas da Casa Branca: o Kremlin dá suporte a países como Venezuela, Síria, Irã, entre outros alvos de Washington.
Uma terceira pauta de Putin pode ser o engajamento na solvência de conflitos internacionais. Vilanizada pela Casa Branca, diz Pautasso, a Rússia na verdade tem se apresentado como pivô na resolução de disputas globais, como no combate ao estado islâmico na guerra na Síria.
Neste momento, um dos focos do Kremlin pode recair sobre os confrontos na Bielorrússia, onde há manifestações contra o governo, mas também a possibilidade de interferência externa para expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos EUA.
“Putin progressivamente vai recolocando a Rússia na ordem mundial, reorganizando a economia, recuperando a capacidade militar que antes estava sucateada, e estendendo os seus interesses para além do seu entorno regional”, comenta o professor. “Dessa forma, Rússia vem obtendo mais prestígio e maior penetração.”
China preenche vácuo deixado por EUA na liderança global
Primeira a sofrer os efeitos do coronavírus, a China adota postura contrária a dos EUA e pede apoio à OMS e ações multilaterais, alinhada às principais bandeiras da Assembleia Geral neste ano.
Em 10 de setembro, o governo de Xi Jinping enviou uma carta à ONU em que pede que sejam rejeitadas “quaisquer tentativas de politização da pandemia”.
Já que os EUA não se mostram dispostos a liderar esse movimento como um “hegemon”, a China é apontada como possível colaboradora para a superação da crise econômica global, conforme já sugeria o jornal espanhol ABC, em reportagem de março: “Um plano Marshall do século XXI”.
Segundo Pautasso, a defesa chinesa pelo multilateralismo, no caso da pandemia, aparece como uma tentativa de se apresentar como liderança, preenchendo um vácuo deixado pelos americanos.
Além disso, de um ponto de vista mais amplo, a defesa do multilateralismo também tem como interesse conter o expansionismo dos Estados Unidos.
“China e Rússia, ao defenderem o sistema ONU, o direito internacional, o multilateralismo, buscam fortalecer mecanismos que, em alguma medida, servem de anteparo à escalada intervencionista dos EUA”, analisa o professor.
Sobre a relação entre Brasil e China, Pautasso examina que Bolsonaro produziu uma descontinuidade que há muito tempo não era vista na diplomacia, desidratando os laços com os BRICS. Porém, mesmo com uma narrativa antichinesa, incompatível com a tradição do Itamaraty, o Brasil segue estabelecendo relações robustas e crescentes com a China, até porque o alinhamento inédito com os EUA não tem muito a oferecer à nossa economia.
“China era destino de 20% das exportações brasileiras e foi para quase 34% em 18 meses. Já os EUA eram 15% e foram para 8,5%. Por mais que haja uma narrativa descontínua e eu diria irresponsável, as relações da China com o Brasil continuam sendo incrementadas, porque a China é a economia mais robusta, é a que mais compra commodities brasileiras e há um circuito de investimentos que não se desfaz facilmente”, analisa.
Fonte: Carta Capital