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Sobre Palavras e Parentes

SOBRE PALAVRAS E PARENTES

Sobre palavras e parentes: Nhe’ẽ porã (palavras-alma)

Existem muitas vozes além das nossas. Muitas vozes. Só vamos escutá-las em silêncio. (Miguel Jorge – Tata Endy)

Nhe’ẽ porã (palavras-).  Conhecendo o valor das palavras, cultivamos o silêncio… Nossos ancestrais nos ensinaram que a terra está sempre nos falando, e que devemos ficar em silêncio para escutá-la.

Por Daniel Iberê M’Bya

As palavras que percorrem este texto, surgiram de muitas dúvidas e poucas certezas, são palavras andarilhas que percorreram mundos repletos de latifúndios, para encontrar palavras outras, pessoas outras, pensamentos outros, irmanados e diferentes, palavras que se desdobram e, perguntando, caminham.

São palavras de um Guarani M’byá, nos dizeres dos antigos (os xeramói): palavras de um Tapejara (um caminhante) que se ergue e firma o  pé para falar, um Jeguakawa que convida para caminhar nos caminhos deste texto. Nele, iremos a caminhos por onde a gente nem sabe se vai.

Em tempos de memoricídios convida a fazer voltar ao coração, recordar… voltar a algo que não sabemos bem o que é, mas que temos vontade de falar e de continuar falando, algo sobre o que temos vontade de pensar e de continuar pensando.

Antes de tudo é necessário que se diga que os rumos que as palavras tomaram nesta “pele de papel”, como nos diz Davi Kopenawa, em seu livro A Queda do Céu, estão profundamente marcados pelos diálogos que assumi com meus parentes Francisco Apurinã e Francisco Tucano, e com xe rú ( meu pai) Tata Endy, sobre os textos que discutimos na , principalmente aqueles referentes ao que a Antropologia tinha a dizer sobre nós e, em muitos momentos, a despeito de nós, .

Conversas que se deram não apenas nos ambientes acadêmicos mas principalmente naqueles momentos em que as palavras tem mais tempo para tomar assento, para se mostrar, aqueles tempos em que podemos sentar, sorver um mate na cuia, passar , ou simplesmente ouvir e abraçar os silêncios. Sem transferir qualquer responsabilidade pelas palavras aqui expressas, deixo registrada minha dívida e minha gratidão.

Outra Palavra é Possível, afirma Bartolomeu Meliá. Ao discorrer sobre o saber Guarani, escreve: “O Guarani busca a perfeição de seu ser na perfeição do seu dizer. Nós somos a história de nossas palavras. Tu és tuas palavras, eu sou nossas palavras. Che ko ñandeva.

Potencialmente, cada guarani é um profeta – e um poeta –, segundo o grau que alcance sua experiência religiosa.” E foi Anita Ekman (In. POPYGUÁ, Timóteo da Verá Tupã. Yvyrupá – A Terra Uma Só. EKMAN, Anita (org.) São Paulo, SP: Hedra, 2017) quem disse que “espírito” e “palavra” são sinônimos na língua Guarani M’byá.

Nhe’ẽ significa ao mesmo tempo “falar”, “vozes”, “alma”. Nhe’ẽ porã, as “belas palavras” ou o “bom espírito”. Traduzir o espírito em palavras é um desafio comum ao poeta. Porém, para um Guarani, a tradução de suas “palavras-almas” para a é um desafio que transcende o literário; é em si um ato político.

As palavras que seguem serão uma tentativa de evidenciar que para os Guarani, termos como: natureza, cultura, humanos e não-humanos, não são necessariamente distintos e separados, além disso, a apropriação destes conceitos é antes de tudo, uma tentativa de tornar compreensivo um mundo que, salvo todos os esforços, não pode e não deve ser reduzido ou incorporado a uma estrutura de pensamento ocidental que se nutre da fantástica atração pelo Um, pelo Poder.

Conhecendo o valor das palavras, cultivamos o silêncio… assim me segredou Tata Endy enquanto me passava rapé ao pé de uma samaúma entre as brasas de uma fogueira. Suas palavras reverberaram em minha mente muitos anos, foi só agora depois de sentir e ouvir o barulho da capital que pude retornar para ouvir mais sobre como nascem as palavras.

As palavras que se seguem são portanto ensinamentos de che Ru (meu pai).

Hoje as ponho no kuatiá (papel) por dois motivos, o primeiro é apenas com o intuito de compartilhar com meu professor Dr. José Jorge um assunto que foi premente em nossos encontros na disciplina Tópicos Especiais em Teoria Antropológica (Encontro dos Saberes e Teorias da Decolonização): o Silêncio – ao ser desafiado a fazer uma comparação do Tao com o pensamento Guarani.

Me senti antes de tudo agradecido pois é algo que muito me instiga, mas, depois de muito refletir, tomei ciência do tamanho do desafio e percebi que este era assunto para a jornada de muitas vidas, de modo que, depois de refletir muito, vi que antes de comparar, deveria me banhar nos rios mais profundos de minha cultura, para só depois poder discutir com serenidade o que permanece quando tudo se esqueceu.

O segundo motivo é que che Ru está trilhando o caminho da antropologia e como só os antigos é que sabem quando e para onde caminhar, resolveu aparecer para me visitar, apareceu em Brasília onde estávamos eu e Linda com uma missão para mim: colocar no papel o que ele queria falar. Mas qual assunto, interroguei. Ao que me respondeu: TERA’O – O Caminho do Nome, A linguagem do silêncio entre os M’byá Guarani. É meu professor, só os antigos é que sabem…

Seguem as palavras que estão tomando assento…

Como linguagem, o universo Guarani guarda no silêncio a extensão da palavra, antes disso, o silêncio conserva o profundo respeito pelas Nhe’ẽ Porã, palavras-alma.

O silêncio é a consagração das palavras necessárias, a sublimação de tudo o que se pode dizer sem a voz humana. Uma permanência do que existe e resiste oculto no ñandereko, o belo modo de ser Guarani.

Tera’o, o caminho do nome, a linguagem do silêncio atravessa o corpo das palavras e as superfícies dos sentidos. Tera’o transcende a palavra falada, e oferece o profundo que nasce na raiz do coração, entrega de amor que brota de um coração e caminha para outro. Ali onde tudo foi dito e já nenhuma palavra é mais necessária.

Esse silêncio, por diversas vezes, foi equivocadamente entendido por gentes outras que aqui chegaram, assenhoreando-se destas terras – como indolência, apatia, vazio, carência.

Dito isso, meu caminhar pede licença para adentrar os universos das palavras e dos silêncios, desde onde se formam, para falar a vossos corações sobre os caminhos percorridos. Sobre os caminhos que percorremos.

Não é tarefa fácil, pois para isso é necessário voltar às antigas, é necessário voltar ao mais profundo de mim, ao mais profundo de nós, Povo Tapejara, e revolver pedras, pedir licença aos espinhos e ouvir as vozes ancestrais.

Ouvir sobre como nascem as nhe’ẽ, as “palavras-alma”, de onde fluem, como se desdobram e no corpo tomam assento. Contam os antigos, os antigos contam, que quando a noite era jovem e as coisas não tinham nome ainda, Nhanderu, nosso pai primeiro, último – último
primeiro, se desdobrou. Ñanderu – aquele que foi alimentado por maino, o “colibri”, da seiva de Jasuká, “mãe de Ñamandu”, mãe de tudo que flui.

Quando o nada era toda a extensão e as coisas de tão novas ainda não haviam, Ñanderu nosso pai, pai primeiro, último primeiro, de grande coração, Ñanderu cujo coração é o sol, tataravô deste sol que vemos, se desdobrou, enraizando seu conhecimento das coisas que ainda não, seu saber que desdobra as coisas, nas nhe’ẽ porã.

Ñanderu pouco a pouco foi se desdobrando: seus pés, pés de Ñanderu, pés enraizados buscando profundidades; suas mãos, mãos de Ñanderu: ramas floridas; seu sopro, sopro originário formando nhe’ẽ porã, suas palavras se pondo de pé, ergueram-se na vazia noite inicial.

Foi Maino, o colibri desdobrado em flor e beijo, quem alimentou Ñanderu tenondé guá, quando cansado. Maino, o pequenino, alimentou Ñanderu, aquele que se desdobrou agigantando-se no infinito para se torar eterno. Jasuká desdobrada em seiva, dava a Maino o alimento de Ñanderu. Jasuká tupã sy retã, Jasuká tenondé guá. Ñaderu sendo o último, sendo o primeiro, veio depois de Jasuká, a fonte de tudo que se desdobra.

Ñanderu ergueu-se. E, havendo-se erguido, com seu saber divino das coisas, saber que desdobra as coisas, o fundamento das palavras ele desdobrou. Desdobrou, desdobrando-se, e fez disso sua própria divindade. O fundamento das palavras é, portanto, Ñanderu. E Ñanderu fez brotar desse fundamento, do fundamento das palavras, ele fez brotar, única, a fonte do Canto Sagrado. E esse fundamento constitui o modo de ser do Povo Tapejara. Por isso, o respeito com o que se diz. Por isso, a importância do que se cala.

Ñanderu, então, desdobrado o fundamento das palavras que deu origem ao Canto Sagrado, procurou quem redissesse esse canto. E, com a força de seu olhar, com seu saber que desdobra as coisas, desdobrou-se em karaí, a quem encarregou da missão de redizer as nhe’ẽ porã.
Ñanderu não queria ficar só. Ñanderu quando da luz que de si se desdobrava viu que o Um era pouco, e que muitos era melhor, do sopro originário tornou-se outros nhe’ẽ que, desdobrados, passaram a habitar o mundo que ainda não.

Ñanderu não querendo ficar só, havendo refletido profundamente, desdobrou-se…nos kuaa-ra-ra vy ma, os “seres trovões de grande coração”. Em continuação da sabedoria contida em sua própria divindade e em virtude de sua sabedoria criadora, antes de existir a terra, em  meio à noite originária, desdobraram-se…

Foi então que desdobrados, surgiram os outros pais e mães primeiros, dos nhe’ẽ, as ‘palavras-alma” que tomam assento em seus numerosos filhos. Foi então que desdobrados surgiram: Jakairá Ru Ete, Jakairá Cy Ete, Karaí Ru E te, Karaí Cy Ete, Tupã Ru Ete, Tupã Cy Ete, Ñamandu Ru Ete, Ñamandu Cy Ete. Ñanderu sendo um era vários e, perguntando, eles e elas faziam o mundo que ainda não, o mundo de mundos vários, infinitos mundos dentro de infinitas partes menores infinitamente diversas. Nhe’ẽ brotando se desdobrando, infinitos se desdobrando.

Depois de ter se tornado nomes, depois de inspirado tudo que se desdobra, depois de se tornado sons, ritmos, essências, letras, palavras do murmúrio dos universos, depois de inspirado os fundamentos da sabedoria criadora, do saber que desdobra as coisas – fizeram morada nos quatro ambá: “lugares de onde fluem os nhe’ẽ, as “palavras-alma” que habitam os corpos que aqui vemos: Karai – Leste; Tupã – Oeste; Ñamandu – Sul; Jakairá –Norte.

Sabendo que a terra criada ywy mbyte, terra das coisas não mortais, se tornara ywy mba’e megua, terra enferma, Ñanderu interrogou os senhores das quatro moradas, sobre quem enviaria seus nhe’ẽ para habitá-la. Consultou então, Karai Ru Ete, em seu ambá, em sua morada, domínio das inúmeras chamas inacessíveis, para saber se ele enviaria seus filhos, os karaí valorosos, os senhores das chamas, à terra enferma. Desse modo, eles cuidariam de todos os que futuramente produzissem o ruído do crepitar das chamas, e a cada primavera floresceriam em fileiras de chamas, como desdobramento de Karai Ru Ete.

Consultou Tupã em seu ambá, em sua morada, o extenso mar e seus ramos e rumos em sua totalidade, para saber se ele enviaria seus filhos, aqueles que inspiram e expiram águas e trovões do frescor divino, à terra enferma. Assim, em morada terrena, os futuros Tupã de grande coração, fluiriam o frescor da fonte originária.

Consultou Jakairá em seu ambá, em sua morada, para saber se ele enviaria seus filhos à terra enferma. Desse modo, a terra seria habitada por aqueles que se manifestam como neblina, substância, brisa, que engendram inspiração por dentro das palavras, os Jakairá de grande coração, senhores da neblina, do vento, das palavras inspiradas em Jakairá Ru Ete.

Ao que os primeiros responderam que seus filhos não deveriam habitar essaywy mba’e megua, esta terra enferma, porque isso lhes traria tristeza no coração, enviar seus filhos para o mundo das coisas que definham. Foi então que Jakairá, conversando, falou: “Meus filhos são nhe’ẽ, verdadeiros, inspirados em de aguyjé, sopros indestrutíveis, e passarão pela terra das coisas que definham com pés descalços e corações transparentes.

Depois de longas conversas todos concordaram em enviar seus filhos, seus nhe’ẽ de suas respectivas moradas, para habitar os corpos deste mundo que definha. Vindo cada um de sua morada, de cada ambá diferente. Quando uma nasce, costumamos dizer que um nhe’ẽ tomouassento, uma palavra indestrutível, habita o corpo. Cabe ao “pajé”, o nhe’ẽ jara, “o senhor das palavras”, descobrir de que morada, de que ambá, veio aquele ser que no corpo tomou assento.

Não apenas os humanos são habitados por nhe’ẽ, mas tudo que existe, tudo que se desdobra, tudo que vibra, tudo que flui… Desse modo, termos como: natureza, cultura, humanos e não-humanos, não nos são termos distintos e separados, além disso, a apropriação destes conceitos é antes de tudo, uma tentativa de tornar compreensivo um mundo que, salvo todos os esforços, não pode e não deve ser reduzido ou incorporado a uma estrutura de pensamento ocidental que se nutre da fantástica atração pelo Um, pelo Poder. Vindo os nhe’ẽ da mesma fonte originária, costumamos dizer que somos parentes.

Esse é o Excerto 1- que a Xapuri publicará, neste espaço, do artigo apresentado ao professor Dr. José Jorge de Carvalho em decorrência de sua disciplina intitulada: Tópicos Especiais em Teoria Antropológica (Encontro dos Saberes e Teorias da Decolonização). Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Nacional de Brasília – UNB no 2o semestre de 2018. Rio Branco, 28 de fevereiro de 2019
Daniel Ibere

Daniel Iberê Guarani M’byá é indígena, filósofo, esposo e pai. Professor na empresa Universidade Federal do Acre – Ufac e UNIMETA Centro Universitário, é Doutor em Antropologia Social pela UnB – Universidade de Brasília. É um colaborador da ALANEG/RIDE – Academia de Letras e Artes do Nordeste Goiano/Rede Integrada de Desenvolvimento do Entorno-DF e da xapuri.info.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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