Socó-boca-d’água
Socó-boca-d’água meio que espicha seu corpo pra trás, como se quisesse conversar de costas; alonga o pescoço esgalgo, arregala o olho vermelho, e vê dos treze lados…
Por Manoel de Barros
Tem fino ouvido de barata, esse pássaro. Não boceja nunca. Cisma até com a sombra das borboletas. E avisa os perigos desde ontem.
Sempre alarmado, em cima do susto, como um galo que está viajando em canoa bêbada, não para de vigiar destinos e mutucas.
Ninguém tira retratos dele para enfeite. Não entra em jardins. Sonda a hora das cobras e dos grilos subjacentes. E não sabe se casa tem portas.
Se uma lontra ele vê, exorciza. Pula de lado três passos. E para atencioso, esgalgado. Logo advinha o que tem na cabeça da lontra. E detona o alarme. Parece que sopra no mundo uma avena entupida de areia. Diante de tanto barulho, esse cachorro d’água se manda assustado.
O socó-boca-d’água é puro de corixo. Pantaneiro escarrado. Sabe onde mora o peixe desde quando por aqui era mar de Xaraés. E atrai os rubafos com ceva de falenas.
Por cima dos camalotes, disfarçados, os socós-boca-d’água conversam como inocentes lavadeiras. Parecem a mãe dos peixes.
Súbito mergulha um. E aparece com o peixe no bico, de atravessado. O olho vermelho com lágrimas de água.
Engole sem guspe o peixe. O longo pescoço engrossa. Arregala muito o olho. Naquela comprida estrada que é o seu pescoço, a gente vê o peixe descendo. Vai agora salivado por uma gosma cinzenta.
Organiza depois um canto rachado para limpar a goela.
Desse pássaro ninguém sabe muito. Ouço que mora na gravanha – ou no gravanha. Sabendo ninguém o que seja gravanha.
A palavra é bonita e selvagem. Não está registrada nos léxicos. Ouço nela um rumor de espinheiro com água. Tem tudo para ser ninho e altar de um socó-boca-d’água.
Manoel de Barros – – Campo Grande – 13/11/2014, aos 97 anos). Poeta pantaneiro, em “Livro das Pré-Coisas”, 2ª edição, Record, 1997.