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Socó-Boca-D’água

Socó-boca-d’água

Socó-boca-d’água meio que espicha seu pra trás, como se quisesse conversar de costas; alonga o pescoço esgalgo, arregala o olho vermelho, e vê dos treze lados…

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Tem fino ouvido de barata, esse pássaro. Não boceja nunca. Cisma até com a sombra das borboletas. E avisa os desde ontem.

Sempre alarmado, em cima do susto, como um galo que está viajando em canoa bêbada, não para de vigiar destinos e mutucas.

Ninguém tira retratos dele para enfeite. Não entra em jardins. Sonda a hora das e dos grilos subjacentes. E não sabe se casa tem portas.

Se uma lontra ele vê, exorciza. Pula de lado três passos. E para atencioso, esgalgado. Logo advinha o que tem na cabeça da lontra. E detona o alarme. Parece que sopra no uma avena entupida de areia. Diante de tanto barulho, esse d’água se manda assustado.

O socó-boca-d’água é puro de corixo. Pantaneiro escarrado. Sabe onde mora o peixe desde quando por aqui era mar de Xaraés. E atrai os rubafos com ceva de falenas.

Por cima dos camalotes, disfarçados, os socós-boca-d’água conversam como inocentes lavadeiras. Parecem a mãe dos peixes.

Súbito mergulha um. E aparece com o peixe no bico, de atravessado. O olho vermelho com lágrimas de água.

Engole sem guspe o peixe. O longo pescoço engrossa. Arregala muito o olho. Naquela comprida estrada que é o seu pescoço, a gente vê o peixe descendo. Vai agora salivado por uma gosma cinzenta.

Organiza depois um canto rachado para limpar a goela.

Desse pássaro ninguém sabe muito. Ouço que mora na gravanha – ou no gravanha. Sabendo ninguém o que seja gravanha.

A palavra é bonita e selvagem. Não está registrada nos léxicos. Ouço nela um rumor de espinheiro com água. Tem tudo para ser ninho e altar de um socó-boca-d’água.

 

Manuel de BarrosManoel de Barros – – Campo Grande – 13/11/2014, aos 97 anos). pantaneiro, em “ das Pré-Coisas”, 2ª edição, Record, 1997.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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