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A agonia do Rio Doce

Dos rios brasileiros, o São Francisco e o Doce, dois vizinhos mineiros, foram os que mais apanharam dos colonizadores que por aqui aportaram há cinco séculos. Mas estavam vivos, pelo menos. Agora, com o frio soterramento do Rio Doce de tantas histórias pelos rejeitos da mineração, nos restam como herança alguns ensinamentos sobre o desenvolvimento que queremos.

A exploração mineral é uma atividade econômica que pode conviver, em determinadas circunstâncias, com a preservação do meio ambiente e da qualidade de vida nas regiões onde ocorrer. No caso de Mariana, contudo, ficou claro que o desenvolvimento proposto pela mineradora Samarco, que ali explora minério de ferro, nada tem de sustentável, por mais flexível que possa ser esse conceito.

O rompimento de duas barragens de resíduos minerais contaminados, com a morte de trinta pessoas e outros danos gigantescos não alterou a vida apenas de dezenas de municípios mineiros e capixabas banhados pelo Rio Doce. A lama percorreu os mais de 600 km daquele curso d’água e chegou ao Oceano Atlântico, numa região considerada santuário ecológico, de grande importância à pesquisa e proteção da vida marinha.

A gravidade do estrago que está ocorrendo gerou um comunicado da Organização das Nações Unidas (ONU), criticando as medidas adotadas pela empresa mineradora na contenção da densa lama que desceu o rio e entrou mar adentro. Porta-vozes da entidade nos campos de meio ambiente, produtos tóxicos e direitos humanos classificaram as tentativas de refreio de fracas, demoradas e ineficientes. E sobrou também para o governo brasileiro, por não impor mais rigor nessas ações.

DESPREPARO

Desde o primeiro dia, quando o lodaçal atingiu o rio Gualaxo do Norte e a área urbana da vila de Bento Rodrigues, o distrito de Mariana mais próximo, ficou claro que sequer um plano de emergência a empresa tinha. A comunidade foi avisada por ela própria, quase aos gritos, e teve a sorte de o impacto avassalador ter ocorrido durante o dia. Os mortos poderiam ter sido centenas. E a localidade foi arrasada por completo.

Em várias outras vilas, a enxurrada de lama cobriu e destruiu tudo. Habitações, escolas, lojas comerciais e igrejas não poderão ser reconstruídas nos mesmos locais, pois o terreno mudou completamente e ninguém sabe prever ao certo como vai ficar com o passar do tempo. A mortandade de peixes, que foi enorme, seria uma maneira de avaliar o impacto, mas, certamente, toda a flora e a fauna das áreas assoladas nunca mais serão as mesmas, caso reapareçam.

Cientistas de universidades e centros de pesquisa brasileiros e de outros países podem até discordar em alguns pontos específicos, mas todos são unânimes na avaliação de que este foi o maior desastre ambiental já ocorrido no Brasil. Aquele ecossistema foi abalado com uma gravidade tal que se tornou impossível qualquer prognóstico do que vai ocorrer, a começar pelo assoreamento do Rio Doce e o sumiço de nascentes que o alimentavam.

As cidades da região cortada pelo Doce sempre dependeram do rio até como via de locomoção, mas principalmente como fonte de água potável. Após a avalanche de lama, porém, a aparência do rio deixou de ser atraente até mesmo pra lavar roupas ou carros, quanto mais pra ser bebida. E os exames dos mais diversos órgãos de saneamento, nas três esferas de poder, tampouco recomendam o uso.

Em muitos casos, há evidências de que os metais e produtos usados na purificação do minério, que fazem parte desse lodo, tenham afetado o lençol freático, pois a água de poços e cisternas também mudou. Há, de qualquer forma, esperança de que, com o tempo e com tratamento mais apurado, seja possível voltar a usar normalmente aquele líquido.

As comunidades ribeirinhas, que tinham no peixe uma fonte de alimento, porém, estão desesperançadas com a devastação geral ocorrida. Entre esses moradores estão várias comunidades de índios da etnia Krenak, que habitam aquela região desde antes da chegada dos portugueses ao território que veio a ser o Brasil.

OCEANO ATLÂNTICO

Quando a pororoca ao contrário chegou ao oceano, mais visível aos olhos do mundo inteiro, a incompetência foi ainda mais gritante. Uma empresa contratada pela mineradora esticou cordões infláveis de isolamento, normalmente eficientes na contenção de petróleo, por exemplo, que fica na superfície. Descobriram, então, que a lama é mais densa e afunda, de modo que o sistema não funciona.

Assim, as ilhas na costa do Espírito Santo, conhecidas pela variedade de espécies marinhas que abrigam, foram atingidas em cheio. E mesmo no continente, na área do projeto Tamar, destinada à proteção de tartarugas marinhas. As tartarugas depositam seus ovos na areia das praias, em áreas que as equipes do Ibama e até de voluntários os protegem contra predadores. Mas, da lama trazida de volta pela maré, ninguém consegue proteger.

Tampouco a empresa mineradora tem demonstrado qualquer possibilidade de medir a extensão do estrago mar adentro. Este trabalho se transformou, em verdade, na primeira grande tarefa do recém-adquirido navio oceanográfico da Marinha Brasileira. É um completo e moderno laboratório flutuante, que está entre os mais avançados do mundo. Mas, de todo jeito, o que seus pesquisadores podem fazer é medir os efeitos do lamaçal que avança pelo mar, pois não podem contê-lo.

MULTAS E MITIGAÇÃO

A empresa Samarco tem sua sede no Canadá, mas é subsidiária da brasileira Vale (ex-Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, quando era estatal) e da anglo-australiana BHP. Ela já recebeu multas pesadas do Ibama e de outros órgãos governamentais e se comprometeu a depositar R$ 1 bilhão em uma conta que será gerida por um conselho composto por representantes das prefeituras das cidades atingidas, dos governos estadual e federal, do Ministério Público, entre outros.

Por mais vultosos que pareçam os recursos, eles não irão repor o habitat destruído, especialmente o Rio Doce, já dado por muitos especialistas como morto. Servirão apenas como mitigação, uma compensação pelo mal praticado. Pagar por danos causados, construir novas aglomerações urbanas e financiar as tentativas de recuperação das áreas degradas são algumas das destinações a serem dadas a esse dinheiro.

Mas, isso tudo com muitas idas e vindas, com interferência da Justiça e até de organismos internacionais. A Samarco chegou até mesmo a tentar repartir sua responsabilidade no episódio com o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), subordinado ao Ministério de Minas e Energia. No entanto, o órgão é responsável por fiscalizar o cumprimento das normas que regem o setor, nada tendo a ver com a execução da atividade de mineração. E à mineradora, cabe conhecer e respeitar a lei.

Aliás, o episódio chamou a atenção do País ao projeto de um novo Código de Mineração, que está tramitando no Congresso Nacional e que tem a marca das empresas mineradoras. Evidência maior disso é o fato de que, dos deputados que tratam do tema, 17 tiveram suas campanhas eleitorais financiadas por essas empresas, inclusive as de Mariana.

Um desses parlamentares é o próprio relator do projeto, deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), o que ele confirma. Assim, a nova norma geral do setor está ficando bem pior que o Código em vigor, que é de 1967. Ao retirar seus artigos 119 e 133, por exemplo, desqualifica mananciais e áreas de proteção ambiental e afirma que, em terras onde houver minérios, a prioridade será minerar.

Ou seja, mantém e até aprofunda alguns conceitos que predominam no setor mineral brasileiro, que passam longe de qualquer desenvolvimento que se possa chamar de sustentável, como é o caso da mina da Samarco. Há décadas, a única relação que a empresa mantém com o meio ambiente de Mariana é a de empregar trabalhadores da região. A qualidade de vida dessa gente, como se vê, é outra história.

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Fotos: Jardim da Penha Online, Leonardo Merçon, Elvira Nascimento – Revista Caminhos Gerais

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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