Procura
Fechar esta caixa de pesquisa.
A AGONIA DO RIO DOCE

A AGONIA DO RIO DOCE

A agonia do Rio Doce

Dos rios brasileiros, o São Francisco e o Doce, dois vizinhos mineiros, foram os que mais apanharam dos colonizadores que por aqui aportaram há cinco séculos.

Por Jaime Sautchuck

Mas estavam vivos, pelo menos. Agora, com o frio soterramento do de tantas histórias pelos rejeitos da mineração, nos restam como herança alguns ensinamentos sobre o desenvolvimento que queremos.

A exploração mineral é uma atividade econômica que pode conviver, em determinadas circunstâncias, com a preservação do e da qualidade de vida nas regiões onde ocorrer. No caso de Mariana, contudo, ficou claro que o desenvolvimento proposto pela mineradora Samarco, que ali explora minério de ferro, nada tem de sustentável, por mais flexível que possa ser esse conceito.

O rompimento de duas barragens de resíduos minerais contaminados, com a morte de trinta pessoas e outros danos gigantescos não alterou a vida apenas de dezenas de municípios mineiros e capixabas banhados pelo Rio Doce. A lama percorreu os mais de 600 km daquele curso d’água e chegou ao Oceano Atlântico, numa região considerada santuário ecológico, de grande importância à pesquisa e proteção da vida marinha.

A gravidade do estrago que está ocorrendo gerou um comunicado da Organização das Nações Unidas (ONU), criticando as medidas adotadas pela empresa mineradora na contenção da densa lama que desceu o rio e entrou mar adentro. Porta-vozes da entidade nos campos de meio ambiente, produtos tóxicos e direitos humanos classificaram as tentativas de refreio de fracas, demoradas e ineficientes. E sobrou também para o governo brasileiro, por não impor mais rigor nessas ações.

DESPREPARO

Desde o primeiro dia, quando o lodaçal atingiu o rio Gualaxo do Norte e a área urbana da vila de Bento Rodrigues, o distrito de Mariana mais próximo, ficou claro que sequer um plano de emergência a empresa tinha. A comunidade foi avisada por ela própria, quase aos gritos, e teve a de o impacto avassalador ter ocorrido durante o dia. Os mortos poderiam ter sido centenas. E a localidade foi arrasada por completo.

Em várias outras vilas, a enxurrada de lama cobriu e destruiu tudo. Habitações, escolas, lojas comerciais e igrejas não poderão ser reconstruídas nos mesmos locais, pois o terreno mudou completamente e ninguém sabe prever ao certo como vai ficar com o passar do tempo. A mortandade de peixes, que foi enorme, seria uma maneira de avaliar o impacto, mas, certamente, toda a flora e a fauna das áreas assoladas nunca mais serão as mesmas, caso reapareçam.

de universidades e centros de pesquisa brasileiros e de outros países podem até discordar em alguns pontos específicos, mas todos são unânimes na avaliação de que este foi o maior desastre ambiental já ocorrido no . Aquele ecossistema foi abalado com uma gravidade tal que se tornou impossível qualquer prognóstico do que vai ocorrer, a começar pelo assoreamento do Rio Doce e o sumiço de nascentes que o alimentavam.

As cidades da região cortada pelo Doce sempre dependeram do rio até como via de locomoção, mas principalmente como fonte de água potável. Após a avalanche de lama, porém, a aparência do rio deixou de ser atraente até mesmo pra lavar roupas ou carros, quanto mais pra ser bebida. E os exames dos mais diversos órgãos de , nas três esferas de poder, tampouco recomendam o uso.

Em muitos casos, há evidências de que os metais e produtos usados na purificação do minério, que fazem parte desse lodo, tenham afetado o lençol freático, pois a água de poços e cisternas também mudou. Há, de qualquer forma, de que, com o tempo e com tratamento mais apurado, seja possível voltar a usar normalmente aquele líquido.

As comunidades ribeirinhas, que tinham no peixe uma fonte de alimento, porém, estão desesperançadas com a devastação geral ocorrida. Entre esses moradores estão várias comunidades de índios da etnia Krenak, que habitam aquela região desde antes da chegada dos portugueses ao território que veio a ser o Brasil.

A AGONIA DO RIO DOCE

OCEANO ATLÂNTICO

Quando a pororoca ao contrário chegou ao oceano, mais visível aos olhos do mundo inteiro, a incompetência foi ainda mais gritante. Uma empresa contratada pela mineradora esticou cordões infláveis de isolamento, normalmente eficientes na contenção de petróleo, por exemplo, que fica na superfície. Descobriram, então, que a lama é mais densa e afunda, de modo que o sistema não funciona.

A AGONIA DO RIO DOCE

Assim, as ilhas na costa do Espírito Santo, conhecidas pela variedade de espécies marinhas que abrigam, foram atingidas em cheio. E mesmo no continente, na área do Tamar, destinada à proteção de tartarugas marinhas. As tartarugas depositam seus ovos na areia das praias, em áreas que as equipes do Ibama e até de voluntários os protegem contra predadores. Mas, da lama trazida de volta pela maré, ninguém consegue proteger.

Tampouco a empresa mineradora tem demonstrado qualquer possibilidade de medir a extensão do estrago mar adentro. Este trabalho se transformou, em verdade, na primeira grande tarefa do recém-adquirido navio oceanográfico da Marinha Brasileira. É um completo e moderno laboratório flutuante, que está entre os mais avançados do mundo. Mas, de todo jeito, o que seus pesquisadores podem fazer é medir os efeitos do lamaçal que avança pelo mar, pois não podem contê-lo.

MULTAS E MITIGAÇÃO

A empresa Samarco tem sua sede no Canadá, mas é subsidiária da brasileira Vale (ex-Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, quando era estatal) e da anglo-australiana BHP. Ela já recebeu multas pesadas do Ibama e de outros órgãos governamentais e se comprometeu a depositar R$ 1 bilhão em uma conta que será gerida por um conselho composto por representantes das prefeituras das cidades atingidas, dos governos estadual e federal, do Ministério Público, entre outros.

Por mais vultosos que pareçam os recursos, eles não irão repor o habitat destruído, especialmente o Rio Doce, já dado por muitos especialistas como morto. Servirão apenas como mitigação, uma compensação pelo mal praticado. Pagar por danos causados, construir novas aglomerações urbanas e financiar as tentativas de recuperação das áreas degradas são algumas das destinações a serem dadas a esse dinheiro.

Mas, isso tudo com muitas idas e vindas, com interferência da Justiça e até de organismos internacionais. A Samarco chegou até mesmo a tentar repartir sua responsabilidade no episódio com o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), subordinado ao Ministério de Minas e Energia. No entanto, o órgão é responsável por fiscalizar o cumprimento das normas que regem o setor, nada tendo a ver com a execução da atividade de mineração. E à mineradora, cabe conhecer e respeitar a lei.

A AGONIA DO RIO DOCE

Aliás, o episódio chamou a atenção do País ao projeto de um novo Código de Mineração, que está tramitando no e que tem a marca das empresas mineradoras. Evidência maior disso é o fato de que, dos deputados que tratam do tema, 17 tiveram suas campanhas eleitorais financiadas por essas empresas, inclusive as de Mariana.

Um desses parlamentares é o próprio relator do projeto, deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), o que ele confirma. Assim, a nova norma geral do setor está ficando bem pior que o Código em vigor, que é de 1967. Ao retirar seus artigos 119 e 133, por exemplo, desqualifica mananciais e áreas de proteção ambiental e afirma que, em terras onde houver minérios, a prioridade será minerar.

Ou seja, mantém e até aprofunda alguns conceitos que predominam no setor mineral brasileiro, que passam longe de qualquer desenvolvimento que se possa chamar de sustentável, como é o caso da mina da Samarco. Há décadas, a única relação que a empresa mantém com o meio ambiente de Mariana é a de empregar trabalhadores da região. A qualidade de vida dessa gente, como se vê, é outra .

Fotos: Jardim da Penha Online, Leonardo Merçon, Elvira Nascimento – Revista Caminhos Gerais

Deixe seu comentário

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

posts relacionados

REVISTA

[instagram-feed]