A Estepe

A Estepe

A Estepe

Os caminhos que a percorre são bem tortuosos, vivemos pautados em padrões estabelecidos, conceitos morais, exigências sociais de comportamento e experiências próprias…

Por Giselle Mathias

Os caminhos que a vida percorre são bem tortuosos, vivemos pautados em padrões estabelecidos, conceitos morais, exigências sociais de comportamento e experiências próprias, que nos tornam o que somos e, que influenciam em nossas relações. Todos temos nossas bagagens, traumas, projeções, medos e anseios.

Reconheço que após o fim do casamento e como ele se deu, me tornei uma pessoa arisca para relacionamentos; a mágoa, a decepção e a percepção do que vivi me trazem o medo do sofrimento, o que me paralisa e talvez me impeça de tentar o novo, de me entregar a possibilidade real das relações. Porém, percebo que não sou a única, talvez homens e estejam com tanto medo do amor que preferem a superficialidade das relações, pois aparentemente o sofrimento e o vazio são menores do que a frustração de um envolvimento verdadeiro e com sentimento.

Não é fácil o fim de uma relação afetiva, principalmente um casamento, mesmo que o sentimento não exista mais. Há muitas expectativas e sonhos gerados e criados, há o conforto de uma rotina, a aparente disponibilidade do outro, a crença de uma estabilidade emocional, de uma vida sem muitos sobressaltos.

Conheci meu Ex-marido na infância, morávamos na mesma rua, erámos vizinhos de casa. Ele foi minha primeira paixão, naquele momento em que passamos a observar o outro não apenas como o amiguinho, o instante que se desperta o primeiro desejo, com ele aconteceu o primeiro beijo na adolescência, mas essa parte acho que falarei mais à frente.

Começarei a falar sobre o fim, quando não reconheci mais em mim o afeto que sentia por ele, nem mesmo o homem que acreditei ter casado, com quem dividi mais da metade da minha vida e tive meus dois filhos. 

O fim foi longo, costumamos postergá-lo, tentamos resgatar o que se sentia, os sonhos e expectativas que foram construídas, pensamos nos filhos, no que os amigos e familiares vão pensar, no medo da incerteza quanto ao . Não tenho dúvidas que foi um dos momentos mais difíceis da minha vida; reconhecer o fim foi doloroso, jamais imaginei que seria possível sofrer tanto e por um tempo tão longo. Ainda hoje carrego em mim as dores, os traumas e as consequências de tantas mágoas causadas; acredito que talvez ele também tenha as suas.

Lembro do meu pai me dizendo que o fim de um casamento é causado pelos dois, mas reconhecer nossos erros e nossas culpas é complicado. Vejo que se talvez tivéssemos tido uma vida de maior parceria, cumplicidade, diálogo e a tentativa de tentar compreender o outro, como se sente, suas construções, pensamentos e crenças seria possível ao menos ter sido um fim menos doloroso.

Tenho a crença na monogamia, na fidelidade; não como um conceito moral ou religioso, mas como uma postura de lealdade ao meu próprio sentimento e ao direito do outro a verdade e, a oportunidade de se construir e decidir sobre a sua vida.

Aprendi que não tenho a obrigação de gostar, amar alguém, assim como ninguém tem essa obrigação para comigo, se não há reciprocidade que cada um siga o seu caminho e lhe seja dada a oportunidade de se refazer e quem sabe encontrar alguém que possa proporcionar, compreender e se ajustar ao que cada pessoa busca para si.

As relações possuem seus altos e baixos, o momento de tédio e o de euforia, a rotina ao mesmo tempo que dá uma estabilidade também desgasta, por isso o esforço para mantê-las é quase hercúleo, porque muitas vezes é mais fácil fingir que nada acontece e simplesmente deixar tudo passar, e a aparência de estabilidade nos reconforta e acomoda.

Não sei se felizmente ou infelizmente não sou assim, amo a verdade, quero viver o que é real, com todas as consequências que isso pode me trazer e digo: as dores são muitas, mas elas me fazem viver; não vivo mais a solidão da ausência de mim, o que me foi insuportável. Ainda carrego o trauma da não existência, da invisibilidade, do silêncio de quem acreditei me amar.

Meu Ex-marido é engenheiro, um homem culto, inteligente, charmoso, mas carrega em si toda a estrutura do macho, do proprietário, guerreiro conquistador de territórios e, não escuta e jamais dará voz a almejada e fecundada por ele.

Desde pequena ouvia de minha “que quem procura acha”, por isso ela me recomendava nunca procurar nada, revirar bolsos de calças, olhar na carteira e hoje vasculhar as mensagens de celular. Assim procedi no meu casamento! Confiava naquele homem, para quem me comportei como sua propriedade, contrariando o que sou e no que acredito. Aguentei todo o vazio do meu ser e do meu existir para viver o “sonho” do amor de infância, da bela história de um romance, daqueles de encontros e desencontros, mas que ao fim o amor vence.

Não foi bem assim. Havia um tempo que já estávamos em e dessa vez ela estava mais aguda, não conseguia mais tentar resgatar, me calar e voltar a me ajustar a ele, sem que houvesse a reciprocidade. Sempre tentava resgatar nossa relação, via vídeos, lia livros, buscava novas posições, comprava fantasias e substâncias para apimentar a relação; essa era uma tática que costumava dar certo, mas depois de quase 20 anos, estava cansada, desgastada.

Naquele momento queria uma iniciativa dele, além da parte sexual, queria o apoio para a retomada da minha carreira, pois havia me dedicado tanto tempo a ele e aos filhos que precisava olhar um pouco para mim, simplesmente, ouvir meu nome e não mais ser denominada como “essa é a minha esposa” ou “mãe”.

Mas nada acontecia e o distanciamento entre nós só aumentava. Em uma das várias noites de insônia, como de costume fui para a sala ver televisão para esperar o sono vir. Estava no escuro só com a luz da tela iluminando a sala, mas de repente um clarão se fez no braço do sofá, era uma mensagem no celular do meu Ex-marido, recebida às 03:00 hs da manhã, enviada pela Estepe. Naquele instante ignorei o que minha mãe havia ensinado e o que nunca tinha feito em todo o meu casamento, foi feito. Abri a tela do celular, fui ao aplicativo de mensagens e acessei a troca entre os personagens.

Li e visualizei tudo o que, finalmente, me libertaria da clausura em que vivia, mas não percebi isso naquela hora, o que senti foi apenas o gosto amargo da traição, do direito cerceado a verdade, das oportunidades perdidas de reconstrução por ser considerada como território, o qual nenhum outro poderia conquistar, mesmo que o guerreiro não mais tivesse interesse em permanecer nele.

Após a descoberta, o confronto. Acordei meu Ex-marido e lhe questionei sobre a traição, o porquê de ter acontecido, pois sempre lhe dissera que não precisávamos ficar juntos por conveniência, que se o amor, o desejo e o querer acabassem não deveríamos mais dar continuidade ao casamento.

Ele assustado me disse que não havia nada entre eles, “era coisa da minha cabeça”, “estava fazendo tempestade em um copo d’água”, “era apenas uma amiga”. Mas eu havia visto todas as fotos, inclusive as de uma viagem que ele tinha me dito que era a trabalho. Quando lhe disse isso o discurso mudou, passou a me dizer que a Estepe nada significava para ele, era só uma aventura, que não a veria mais.

Depois de ouvir todas as frases clichês usadas como desculpa, apenas lhe disse que não poderia mais dar continuidade ao nosso casamento, não viveria uma farsa, estava evidente que não havia mais amor entre nós. Nossa relação já não fazia mais sentido mesmo antes da descoberta, e diante dela não queria mais tentar resgatar o que já estava finalizado, não havia mais sentimento.

Eu queria pensar, avaliar a situação; estava atordoada porque sempre me pautei pela sinceridade na relação.

Após alguns dias de silêncio comuniquei minha decisão: o divórcio. Veio o choro; os pedidos para que eu reconsiderasse. Ele não queria a separação e o mesmo discurso anterior, cheio de desculpas, retornou. Nesse momento lhe pedi que me contasse a história, queria saber como tinha acontecido. Até hoje não sei por que lhe pedi isso, mas achei que precisava saber. Tinha certeza de que todos os meus padrões estavam ali se impondo na necessidade curiosa em saber tudo sobre o que acontecera entre o Ex-marido e a Estepe.

A história começou a ser contada: Nosso namoro tinha tido muitas idas e vindas e em um desses períodos de separação eles se conheceram e o envolvimento aconteceu, mas como sempre era recorrente quando nos encontrávamos, retomamos o namoro e ele se afastava dela. No entanto, me disse que permaneceram em contato, mas cada vez que nos desentendíamos os braços dela lhe serviam de consolo.

Nos casamos! E a dinâmica dos dois permaneceu, até que ela se casou, teve filhos e construiu a sua vida longe dele. O casamento dela terminou antes do meu e quando se separou buscou meu Ex-marido, o qual de início lhe dava apoio e amizade, mas a relação deles foi se aprofundando com o tempo, lhe era confortável ter a disposição aquela que tanto lhe desejava e nada cobrava, enquanto mantinha as aparências com a oficial sob total controle.

Talvez pensem que isso aconteceu porque nossa relação estava desgastada, que eu deixei espaços para que ele buscasse fora de casa o que não tinha dentro, ouvi muito isso quando partilhei com amigas a história. Mas, não era essa a nossa realidade! Não naquele momento. Ele voltou a se envolver com a Estepe em um dos melhores momentos do nosso casamento, ou era o que aparentava, pois estávamos muito unidos, não havia conflitos entre nós e eu me dedicava integralmente a ele e aos filhos. Era o sonho da família perfeita que sempre externara, e vê-lo feliz me deixava alegre, os padrões e sonhos idealizados me faziam acreditar que tudo estava perfeito.

Naquele período me anulava para ser o que esperavam de mim, a esposa e mãe; nada do que sou e o que queira valiam algo, mas havia sido treinada e moldada para viver daquela forma, aceitar e manter a aparência de felicidade, me conformava com aquela situação, cumpria o papel para o qual fui designada sem questioná-lo. Porém, surgiram os primeiros sinais da saudade do meu próprio ser e a solidão instalou-se internamente, apesar de estar casada.

Sufocada pelo modelo da família perfeita que precisava desempenhar e o silêncio imposto quando comecei a questionar sobre meus anseios ou sobre a vontade de retomar minha carreira, me fizeram despertar para o total desconhecimento sobre o homem que partilhava a minha vida. Comecei a definhar, pois percebera que só a minha vida havia sido entregue, não dividíamos, não éramos parceiros, apenas estávamos casados, entregara mais do que recebia; e os dias somente passavam, não contava mais o tempo e meu único desejo era a chegada do fim de cada ano.

Enquanto isso ele continuava a se encontrar com a Estepe, prometia que a separação iria acontecer, que eu era uma péssima esposa e mãe, não aguentava mais passar os dias ao meu lado e finalmente ficariam juntos, tudo conforme o roteiro para mantê-la em sua cela. E o tempo passava, mas a separação não acontecia. Ela começava a se irritar com ele, as desculpas se intensificavam; não suportava mais esperar que ele tomasse a decisão que lhe prometera e decidira pôr um fim, não queria mais esperar.

Assim, ela terminou a relação e após alguns anos, alguns poucos relacionamentos, se viu sozinha novamente e resolveu procurá-lo. Pensou que talvez a separação tivesse acontecido. Ele dizia que não suportava mais o casamento, que era só uma questão de tempo, mas esse já havia passado; provavelmente já estaria separado e só, acreditou que seria a oportunidade que os dois estariam aguardando.

Qual não foi sua surpresa quando o reencontrou e soube que ele permanecia casado.

Apesar da sua decepção, mais uma vez ela decidira se envolver com ele e, o mesmo discurso e, as promessas que o casamento chegaria ao fim e eles finalmente poderiam ficar juntos. Essa situação durou até que eu decidisse encerrar o casamento, não só pela traição, mas porque eu sabia que não o amava mais.

Veio a descoberta, ele me pediu para que ficássemos juntos, não queria o fim, já tínhamos resgatado nosso casamento, poderíamos fazê-lo de novo. Diante dos pedidos, das promessas de mudança, resolvi pensar sobre a proposta que me fazia, pensei nos nossos filhos e em todas as consequências do fim, aquelas que me eram apresentadas.

Confesso que o medo do novo foi se impondo, fiquei insegura. Me diziam que eu deveria perdoar, passar por cima, todos os homens traem, e quanto ao amor, esse, talvez voltasse. Decidi tentar mais uma vez, e por isso permaneci anulada, invisível e silenciada. Afinal, eu decidira manter-me como território conquistado e, assim como a Estepe continuei em minha cela.

A decisão de permanecer me foi cara, mas acreditei que devia a ele e a mim mesma essa última tentativa, mesmo que eu desejasse o fim antes da descoberta da traição. Após o caso ter vindo à tona, ele em um primeiro momento se afastou da Estepe e lhe disse que eu havia descoberto, por esse motivo era preciso que dessem um tempo pois ele não queria a separação.

A Estepe ficou consternada, não acreditava no que estava ouvindo. Ele sempre lhe dissera que não queria mais o casamento, desejava a separação e quando o fim se apresentava para que pudessem ficar juntos, recuava, e mais uma vez lhe pedia paciência. No entanto, pela primeira vez ele dizia a verdade, que não iria se separar.

A reação inicial dela foi se afastar, cobrou os anos que se dedicara a ele, o quanto esperou para se unirem. Depois de alguns dias decidira que iria “lutar” por aquele homem e, diferente de mim, ela o via como “troféu”. Afinal, eu já sabia da existência dela. E assim iniciou-se a minha tortura final. 

Meu Ex-marido passou a receber mensagens e telefonemas constantes dela, pois o sofrimento que passava era insuportável. Eu percebia os contatos, aquilo me angustiava e não conseguia controlar meus impulsos e a raiva pelo quanto me sentia desrespeitada, as brigas que antes eram pontuais se tornaram constantes.

A Estepe passou a me perseguir nas , chegara a criar perfis falsos para me incomodar com mensagens agressivas e ataques pessoais. No início apenas bloquei, mas ela não parava e resolvi contar ao meu Ex-marido o que estava acontecendo, mas sua reação era a de me dizer que eu estava inventando, ficando louca, porque ele já tinha terminado tudo e ela jamais faria isso. Eu não aguentava mais aquela situação.

E mais uma vez contrariei os ensinamentos de minha mãe e acessei as mensagens do celular dele, vi todas as mensagens em que me detratavam, os pedidos para que ela tivesse paciência e aceitasse a nova situação de ser apenas a amante, porque ele não iria se divorciar, segundo ele eu estava instável e os filhos o preocupavam.

Fiquei enfurecida, sim! Fiz o que não deveria, mas não suportava a farsa que vivia.

A decisão que tomei pode causar uma grande controvérsia, mas foi a única coisa que pensei naquele momento e meu impulso foi executá-la, precisava saber o que vivia, queria ter o poder de decisão. Não queria mais que decidissem por mim, que me deixasse em uma situação que eu não havia escolhido.

O Ex-marido se negava a conversar comigo, as mentiras faziam parte constante de suas falas e o me chamar de louca virou uma rotina. A dor, a tortura, a negação da verdade me era tão difícil que em alguns momentos cheguei a crer que realmente estava enlouquecendo. 

Então, liguei para a Estepe!

Precisava da verdade, o que me vinha sendo negado há muito tempo; queria retomar as rédeas da minha vida, e ter a segurança da decisão que deveria tomar, pois estava tão fragilizada que somente saber o que havia acontecido me fortaleceria. Não foi fácil falar com ela, mas foi importante para me reencontrar e me resgatar.

Ela atendeu o telefone e me identifiquei, pedi que não desligasse, desejava entender o que acontecera e porque ainda estávamos naquela situação. Não sei se me surpreendi com a nossa conversa, mas com certeza me incomodou muito. Ela o protegia, dizia que não tinham nada, eram apenas amigos, que eu não havia entendido a conversa dos dois. Não adiantava eu dizer que tinha lido tudo, visto as fotos, ela insistia que eu estava desestabilizada e como ele me chamou de louca.

Não briguei com ela, não lhe pedi para se afastar, apenas pedi para saber o que existia entre eles, se havia o desejo de estarem juntos, eu não seria o empecilho para eles, já havia decido me separar, mas ela permaneceu insistindo na posição de o proteger. Percebi que ela ainda acreditava nas mentiras dele, que iria continuar a aguardá-lo e saber que ele mentia para nós duas me incomodou.

Após essa conversa com a Estepe me dirigi ao Ex-marido e lhe contei o que tinha feito, exigi mais uma vez que me contasse sobre o que estava acontecendo e a única coisa que ele me disse, foi:

– Vocês duas estão me disputando!

Não acreditei no que ouvi, me enfureci e lhe disse:

– Não há disputa! O que vivi com você jamais se apagará, mas continuar essa relação é uma decisão que irei tomar.

Sai do quarto, peguei a chave do meu carro e fui para o lugar que mais amo para pensar no que eu faria, como falaria com meus filhos e como comunicaria a todos o fim do meu casamento. Ter postergado o final havia sido um erro. No dia seguinte, comuniquei ao Ex-marido que o divórcio para mim era a única solução, disse a ele para seguirmos nossas vidas, que esse novo caminho nos abriria novas oportunidades e acima de tudo que ouvisse seu coração.

Imaginei que ele iria ficaria com a Estepe. Foram tantos anos juntos e ela esperara por tempo a concretização do nosso divórcio, que me surpreendi quando ele apareceu com uma nova namorada e descartara a Estepe que foi sua amante por tanto tempo.

Talvez ela tenha desistido ou como muitas mulheres preferiu ficar como a amante. Não a julgo, apenas entendendo o que não me serve, nem ser a oficial fingindo que vivo em um casamento perfeito e muito menos ser a amante. 

O fim do casamento foi o meu resgate, o existir enquanto humana, apesar de todas as dificuldades que se apresentam hoje, mas minha busca por mim e o reencontro com meu Ser é a minha alegria, talvez por isso o meu destino seja o estar só, porque não abrirei mão de mim mesma novamente; o que almejo é entender a mim mesma na minha essência e compreender o outro.

Porém, hoje posso dizer que os sonhos, o que foi realizado e o que ficou como expectativa, o amor vivido me fez ser quem sou. Agradeço ao Ex-marido o que tivemos, mas reconheço o que está no passado como uma lembrança que me impulsiona para a possibilidade de algo novo; apesar das travas, dos medos e inseguranças, a vida e o desejo ainda fazem parte de mim e isso me surpreendeu nessa nova etapa da minha vida.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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