A experiência do amor

“A EXPERIÊNCIA DO AMOR”

“A experiência do amor”

Por Rubem Alves/ Revista Prosa e Verso

“… Amei-te já muito antes…”

Quando te vi amei-te já muito antes.

Tornei a achar-te quando te encontrei.

FERNANDO PESSOA,

A falência do prazer e do amor.

HÁ DOENÇAS PIORES QUE AS DOENÇAS

Essa é a mais bela, a mais curta e a mais sábia declaração de amor que conheço. Sábia por não ser o simples enunciado de um sentimento. São palavras que marcam o lugar obscuro onde o amor brota.

Ela estava assentada ligeiramente inclinada para a frente, as mãos apoiadas sobre as coxas. Olhou-o com olhos tranquilos e com voz baixa disse: “meu nome é Heloísa”. Tinha maçãs salientes e um rosto de menina. Uma beleza singela e despida, sem nenhum adorno, irradiava do seu corpo.

Ao vê-la, ele sentiu uma súbita alteração no peito, coisa que nunca havia sentido, como se tivesse sido instantaneamente enfeitiçado por aquele rosto. Percebeu que estava perdido. Ele a amou para sempre desde o momento em que a viu.

***

Há muito tento entender essa cena. Embora saiba que a razão lógica não conhece as razões do coração, embora Drummond tenha escrito um poema com o título As sem-razões do amor, embora o próprio Santo Agostinho não soubesse o que amava quando amava, sou fascinado pelo mistério desse súbito encantamento.

Como um feitiço. O apaixonado fica possuído por uma imagem. Qual é a origem desse sentimento que fisicamente toma posse do lado esquerdo do peito?

***

O poeta medita: “quando te vi…”. Eu nunca a tinha visto. Não havia antecedentes que tivessem preparado aquele momento. Nada sabia sobre ela. Dela, naquele momento, a única coisa que eu tinha era a imagem: eu a vi.

Tudo aconteceu pelo olhar. Foi nos meus olhos que o amor começou. Como eu nada sabia sobre ela, era destituída de substância. Eu só tinha aquilo que meus olhos me ofereciam: uma imagem. Imagens são criaturas de luz. Foi isto que meus olhos viram, foi isto que amei: um nada luminoso.

Uma imagem não pode ser tocada – falta-lhe matéria. Nem me atrevi a fazer um gesto… Meus olhos pararam sobre o seu rosto e o tocaram imperceptivelmente com dedos de luz. Amei-a com os meus olhos. E amei os seus olhos, que me fitavam. Naquele momento eu não sabia, mas ela sentira o mesmo que eu.

***

Eu já havia visto muitas mulheres. Muitas delas mais bonitas. Mas a beleza delas nada fez com o meu corpo. Então não a amei por ser mais bonita que as outras. Não é a beleza que produz o encantamento. A beleza toca minha sensibilidade estética. Mas esta pertence à razão cerebral, que julga o que vê. Falta-lhe, entretanto, o poder de encantar. A beleza não faz nada dentro do meu peito. Se o amor fosse produzido pela beleza, teria me apaixonado por muitas mulheres.

Então, o que foi que me enfeitiçou?, o poeta se pergunta. Onde estava o encanto daquela imagem? Não sei. Amei sem saber por quê. Faço a mesma pergunta que Santo Agostinho fez: “O que é que amo quando te amo?”. O que foi que amei quando a vi?

Alguma razão deveria haver. O coração tem as suas razões, muito embora a razão as desconheça. Esse é o mistério.

***

A estranha forma sintática do verso “quando te vi amei-te já muito antes” nos leva para a região onde se encontram as raízes da paixão – um tempo anterior ao agora. Os poetas têm intuições desse tempo. Talvez porque eles mesmos não saibam explicar seus poemas, cuja origem é tão misteriosa quanto a origem do amor. De onde vêm?

Álvaro de Campos se perguntava, em Ode marítima:

Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?

É possível que a imagem que me encantou tenha nascido no mesmo tempo e no mesmo lugar onde nascem os poemas…

Nasci para ti antes de haver o mundo
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa...

FERNANDO PESSOA,

A  falência do prazer e do amor.

Não. Não foi encontro de primeira vez, embora tenha acontecido no tempo da minha vida.

“Tornei a achar-te quando te encontrei.” Antes de eu nascer, tu eras minha. Quando nasci, perdi-te. E agora, você à minha frente, sua imagem me levou para esse passado misterioso, onde éramos um do outro num amor imperturbável.

As razões do encantamento se encontram nesse tempo anterior. Era lá que ela vivia adormecida. Como um sino que repica na aldeia e ressoa em ecos na montanha distante, assim foi: a imagem fez minhas paisagens interiores, envoltas nas brumas do esquecimento, reverberar. Eu não as vi. Eram invisíveis nas brumas. Mas ouvi a respiração.

Ela estava lá. Antes que eu a houvesse visto naquele momento encantado presente, já a amava. Eu a amara sempre, num tempo anterior ao agora, tempo de que havia me esquecido.

A experiência do amor – quem sabe a palavra mais certa seja “paixão” – existe dentro dessa bolha encantada, fechada em si mesma, que subitamente nos extrai do presente. É uma emoção em estado bruto, irresistível, que se apossa da alma, a domina e se basta.

O nosso amor
Vai ser assim
Eu pra você
Você pra mim.
TOM JOBIM E VINÍCIUS DE MORAES,

“O nosso amor”

Quem escreveu esses versos sabia que a bolha da paixão é feita de dois olhares que se contemplam, encantados, e se fecham em si mesmos.

Octavio Paz descreveu, num parágrafo de rara beleza, a magia da experiência com esse tempo anterior:

Às vezes, sem causa aparente, vemos de verdade o mundo que nos rodeia. E essa visão é, a seu modo, uma espécie de teofania ou aparição, pois o mundo se revela para nós em suas dobras e abismos, como Krishna diante de Arjuna.

Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos.

Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Sua própria realidade compacta nos faz duvidar: são assim as coisas ou são de outro modo?

Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, no qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e, ao mesmo tempo, acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados, suspensos no meio da tarde imóvel. Adivinhamos que somos de outro mundo.

Octavio Paz usa a palavra “teofania” para descrever esta experiência: o sagrado tira os próprios véus e aparece. Seria impróprio dizer que aquela imagem, a imagem que me encantou, fora uma teofania, o sagrado fazendo-se visível? Porque o que é o sagrado? É aquilo que amo acima de todas as coisas. E eu a estava amando acima de todas as coisas. Ela era sagrada para mim…

– Rubem Alves, no livro “Cantos do pássaro encantado”. [crônicas]. São Paulo: Planeta, 2017.

Saiba mais sobre Rubem Alves:
Rubem Alves – o aprendiz de feiticeiro
Rubem Alves (Crônicas, contos e afins)

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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