“A fome não é só números”: como a realidade das comunidades periféricas piorou na pandemia
“A fome não é só números, a fome está revelada em cada criança que quando é oferecido um prato de comida, ela não sacia, ela não consegue saciar o seu desejo e isso não pode nos deixar quietos, apagados, temos que nos mobilizar em relação a isso.” Assim a assistente social e professora de Serviço Social na Unisinos, Marilene Maia, provoca a refletir sobre a dura realidade das comunidades vulneráveis e periféricas que viram sua situação piorar ainda mais durante a pandemia.
Por Marcelo Ferreira e Fabiana Reinholz/ Brasil de Fato
Conhecida desde criança com o apelido de Mene, assim também é conhecida e reconhecida nos diferentes espaços por onde circula. Além de professora na Unisinos, Marilene também trabalha no Instituto Humanitas (IHU), onde coordena o Observatório da Realidade de Políticas Públicas do Vale do Rio dos Sinos, o ObservaSinos.
Brasil de Fato RS – Tu tens uma vasta experiência com movimentos sociais, gostaria que nos falasse um pouco dessa tua trajetória, da tua história. O que te aproximou dos movimentos sociais?
Entendendo que a questão da terra é uma questão fundante do trato das desigualdades, um direito que não foi assegurado mesmo com a Constituição Federal de 1988. Então a terra, no meio rural e no meio urbano acaba sendo um retrato das nossas desigualdades, e isso eu não posso aceitar.
Eu sempre digo que meu desafio é chegar com mais alguém nas comunidades para a gente fazer juntos outros processos, aprendendo e ensinando, gosto deste termo da “ensinagem”, onde todos aprendemos e todos ensinamos
Eu sempre digo que meu desafio é chegar com mais alguém nas comunidades para a gente fazer juntos outros processos, aprendendo e ensinando, gosto deste termo da “ensinagem”, onde todos aprendemos e todos ensinamos. Talvez isso seja o desafio maior. Quando a gente experimenta, para além de identificar – já que eu também trabalho com dados e números no Observasinos, um projeto importante do Instituto Humanitas da Unisinos onde estou inserida há um bocadinho de tempo, e se constituiu hoje esse programa que é o observatório das realidades das políticas públicas – é importante a gente dar conta de que os dados são muito reveladores.
E o Paulo Freire diz que muito mais que dados e números, é fundamental que a gente possa compreender como se revelam esses dados e números e como as pessoas sentem isso. Como é sentir a desigualdade, as crianças, os adolescentes, os moradores das ocupações, pessoas que acessam o Sistema Único de Saúde, o Sistema Único de Assistência Social, as pessoas em situação de desemprego, de desalento, como as pessoas sentem essa realidade? O que pensam no sentido na sua vida, sua vida na comunidade, a vida da sua família, a vida do Brasil? Isso é uma perspectiva muito importante.
O que eu tenho percebido é que a fome não é só números, a fome está revelada em cada criança que quando é oferecido um prato de comida, ela não sacia, ela não consegue saciar o seu desejo e isso não pode nos deixar quietos, apagados, temos que nos mobilizar em relação a isso. Entendo que a solidariedade é um caminho para fazer enfrentamento a isso, porque de fato é um valor, é nos reconhecermos como sujeitos dessa história, também a gente se reconhecer que todos temos compromisso uns com os outros. Para a gente poder se fazer gente, e se fazer gente com dignidade.
Mas a solidariedade só não é suficiente para dar conta dessa desigualdade, nós precisamos sim de políticas e de um outro processo civilizatório de desenvolvimento econômico, político, social que conceba a vida em sociedade de outro jeito. Onde todos tenham acesso às condições básicas de vida, uma renda básica de cidadania que garanta o acesso àquilo que é condição de vida e para vida.
O reconhecimento de direitos humanos que agora neste 10 de dezembro retoma a Declaração Universal de Direitos Humanos é uma referência para a vida societária. A Declaração está hoje atualizada com os objetivos de desenvolvimento sustentável, são referências mundiais, dão vistas a essa possibilidade, essa necessidade de colocarmos no centro e propósito da nossa vida a sociedade. A sociedade que é constituída de pessoas que vivem em relações também ambientais, com o meio ambiente, com o cosmos. Entendo que a dimensão espiritual também constitui a vida societária.
E perceber então, como diz o Papa Francisco, que vivemos em uma casa comum, e a casa comum é constituída de gente, de seres, que necessitam estar reconhecidos na sua igualdade e também nas suas diferenças, em relações de justiça social, de economia sustentável, politicamente democráticos é fundamental para seguirmos em frente.
BdFRS – Nos fale sobre o funcionamento da Rede Solidária São Léo. Como e quando surgiu a ideia, que ações são desenvolvidas e a quem ela se destina?
Marilene – Organização em rede criada em março de 2020, quando do desencadeamento da pandemia no Brasil. A partir dos vínculos entre as organizações e comunidades que realizaram em março de 2019 a Missão Pela Moradia Digna em São Leopoldo foi reforçado o compromisso de apoio e solidariedade com as comunidades moradoras das ocupações urbanas do município de São Leopoldo.
A Rede Solidária São Léo constituiu-se então como rede de proteção e solidariedade comprometida com o enfrentamento às situações de vulnerabilidade, violação de direitos e de injustiça agravadas pela pandemia. Seu enredamento se dá a partir da construção de ações e estratégias coletivas em resposta às demandas, necessidades e interesses dessas comunidades, no contexto da afirmação de um projeto de desenvolvimento sustentável local e municipal.
As ações em Rede são desenvolvidas a partir de seis eixos: alimentação, saúde e ambiente; proteção socioassistencial e educacional; trabalho e renda; comunicação e informação; apoio sociojurídico às violações de direitos individuais e coletivas; e captação e cogestão transparente de recursos para o apoio às ações.
Em torno desses eixos estão sendo realizadas as ações, que sempre aconteceram presencialmente desde o início da pandemia, garantindo com isso a convivialidade e as ensinagens sobre os desafios deste novo tempo. Ao mesmo tempo garantimos algumas ações on-line com o apoio no financiamento da internet, doação de computadores.
O compromisso com a publicização dos processos foi assumido desde a criação da Rede, compartilhadas nas redes sociais Facebook, Instagram. Este vídeo conta um pouco esta história.
BdFRS – Qual o impacto da pandemia na comunidade leopoldense, em especial nas periferias, em meio ao aumento da fome e da escalada da inflação?
Marilene – Desde o início da pandemia foram visivelmente identificadas as situações de diminuição da renda, e, consequentemente, se colocaram em evidência as dificuldades ainda maiores de acesso à alimentação, aos cuidados com a saúde, o distanciamento das escolas e de outros serviços de proteção, já que não estavam em funcionamento. Vale dizer que estas vulnerabilidades são anteriores à pandemia: fome, falta de água, luz, saneamento, muitas casas não têm banheiro e nem as mínimas condições de proteger seus moradores.
Por conta disso, incidimos no apoio à organização das comunidades e fortalecimento das lideranças das comunidades, que passaram a atuar diretamente em inúmeros fóruns do município tratando temas das políticas sociais e econômicas.
Foram desenvolvidas ações em torno da alimentação: cestas adquiridas diretamente dos produtores agroecológicos e da economia solidária, feitura de hortas caseiras e comunitárias, produção de alimentos em cozinhas comunitárias. Isso tudo, incidiu sobre o poder público, que passou a garantir políticas de acesso à alimentação com recursos governamentais repassados diretamente a estas comunidades.
Em relação aos serviços de saúde, educação e assistência social foram identificadas demandas e necessidades pelo acompanhamento cotidiano que realizamos junto às comunidades e famílias. A partir daí a Rede passa a demandar ações governamentais junto às escolas, serviços de saúde e assistência social. Inclusive as vacinas de covid foram feitas nas comunidades.
Até o final do ano de 2022 teremos o mapa da realidade das comunidades moradoras das ocupações, apontando as políticas para o enfrentamento não só as realidades vividas, mas os seus determinantes
A necessidade de conhecer melhor a realidade das famílias e comunidades apontou a realização da Cartografia Social, que está sendo implementada pela Universidade, secretarias municipais de Habitação, Desenvolvimento Social, Segurança Pública e comunidades. Além do perfil das famílias, estão sendo identificadas as situações de risco social, ambiental de cada comunidade. Até o final do ano de 2022 teremos o mapa da realidade das comunidades moradoras das ocupações, apontando as políticas para o enfrentamento não só as realidades vividas, mas os seus determinantes.
A questão da terra e do solo urbano está em debate com tudo isso. Encaminha-se a articulação com a Defensoria Pública e outros serviços.
BdFRS – Quantas famílias já foram atendidas pela Rede e quantos quilos de alimentos já foram doados?
Marilene – Já foram entregues 4.247 cestas com alimentos oriundos da Agroecologia, 42,5 toneladas de alimentos adquiridos de produtores vinculados à Agroecologia na Região Metropolitana.
Foram arrecadados R$ 190.812,89. Boa parte deste valor foi destinado à compra de alimentos e R$ 22.000,00 para construção e equipamento de cozinha comunitária.
BdFRS – Quem compõe a Rede, como o trabalho é realizado e quais as parcerias já estabelecidas para o prosseguimento da iniciativa?
Marilene – A Rede é formada por pessoas, comunidades e organizações comprometidas com estas causas. Entre as organizações estão: Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Missionárias do Cristo Ressuscitado (MCR), Grupo Araçá de Consumo Responsável, CDES Direitos Humanos, entre outras. Da Rede também fazem parte professores/as, estudantes e trabalhadores/as da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Integram a Rede 15 comunidades moradoras em ocupações e cooperativas habitacionais de São Leopoldo: Justo, Steigleder, Renascer, Mauá, Redemix, Cootrahab, Bom Fim, Esperança, Vitória, Container, Tancredo, P. Orestes, Horta, Progresso, Cora Coralina. Elas estão localizadas em diferentes regiões do município.
BdFRS – As pessoas que nos leem podem contribuir com as ações da Rede?
Marilene – Sim. Quem quiser colaborar pode depositar qualquer valor na conta da Rede Solidária São Leo através do PIX redesolidaria.sl@gmail.com.
BdFRS – Existe alguma ação em andamento neste final de ano?
Marilene – Sim, vários projetos estão em relevância neste momento. São eles:
Pracinhas nas Comunidades, construção de espaço para brincar com as crianças e famílias das comunidades. Estão sendo viabilizadas em três ocupações, como resultado de um processo de acompanhamento realizado ao longo do ano.
Caminhadas Natal Sem Luz, que acontecem às quartas-feiras à noite no mês de dezembro em diferentes ocupações para denunciar a falta de luz, alimento, água…
Ceia de Natal em Todas as Mesas, garantindo que todas as famílias acessem alimentos em ceia. A arrecadação está sendo feita para isso.
Uma outra ação importante é a formação permanente de todas as pessoas que têm atuação junto às comunidades: profissionais, estudantes, professores que se colocam junto na luta e militância. Encontros com as comunidades, experiências e estudo.