A minha vida é para frente

A minha vida é para frente

A minha vida é para frente também”, diz liderança Hupd’äh

As lideranças indígenas Roberto Sanches, do povo Dâw, e Américo Socot, do povo Hupd’äh, ao lado do Renato Athias (de óculos), estiveram em Manaus e falaram sobre o desejo de ter um curso de licenciatura indígena voltado para os seus povos (Foto: Alberto César Araújo/ Real)…

Por Ariel Bentes/via Amazonia Real

“Eu quero andar, a minha vida é para frente também”, ressalta Américo Socot, liderança indígena do povo Hupd’äh. Há séculos os Hupd’äh e Dâw vivem na região do Alto Rio Negro, no noroeste do Amazonas, lutando por autonomia e reivindicando espaços. Considerados como povos de recente contato, cada um deles possui seu próprio território e língua, mas por muito tempo foram invisibilizados por agentes da sociedade como missionários, viajantes e funcionários públicos que até hoje não sabem lidar com o sistema cultural e hierárquico desta região, como afirma antropólogo Renato Athias, que desenvolve estudos com estes povos há 50 anos e atualmente os acompanha nas demandas nas agendas educacionais.

Representante e articulador dos Hupd’äh , Américo Socot viajou junto com Roberto Sanches, professor e uma das lideranças do povo Dâw, até Manaus na segunda quinzena de junho. Eles enfrentaram uma viagem de barco de mais de 24 horas até a capital para pedir que a Federal do Amazonas (Ufam) crie um curso de licenciatura indígena voltado para os seus povos. Dependendo da embarcação, o mesmo trajeto pode levar de quatro a seis dias.

“Isso é uma preocupação do meu povo. Para os filhos e os filhos deles poderem andar para frente. Já tem Tukano com ensino superior, tem Baniwa e Yanomami. Tudo já tem. Tá faltando o meu povo também!”, afirma Socot, em entrevista à Amazônia Real.

Os Hupd’äh e Dâw fazem parte da família linguística NADAHUPY, que contempla seis que se distribuem em áreas interfluviais entre o e a Colômbia. Os Hupd’äh, Nadëb, Dâw e Yuhupdëh estão em território brasileiro (mais precisamente nas do Alto Rio Negro e nas próximidades dos municípios de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro), enquanto os Nukak e os Kakwa vivem no lado colombiano. 

A sigla NADAHUPY, que apresenta as iniciais de cada etnia, é a nomeação mais aceita entre eles, que antes eram constantemente chamados de forma pejorativa de Maku, termo da língua Aruak que em tradução literal para o português significa “aquele que não fala a minha língua”. Com isso, antropólogos da Ufam criaram a sigla como uma forma de simplificar a nomeação da família linguística durante as pesquisas, mas mantendo a diversidade de cada grupo. 

“Chamar eles de Maku mostra um preconceito muito grande, mas aos poucos isso tem mudado. Eles não podem ser esquecidos e a academia tem apoiado para que ganhem mais visibilidade. Essa luta pelo curso é um momento de tomarem a própria voz e terem mais visibilidade a partir deles mesmo”, explica Renato Athias, que trabalha com os NADAHUPY desde a década de 70 e acompanhou as lideranças em Manaus.

A reportagem encontrou com as lideranças em uma segunda-feira à tarde, na própria universidade. Foi a primeira vez que indígenas Hupd’äh e Dâw estiveram no local e uma das raras vezes em que eles conversaram com jornalistas. Américo e Roberto estavam em Manaus há uma semana e participaram de reuniões com o procurador da República Fernando Merloto Soave, do Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM), para falar sobre como estes povos têm vivido.

Já na universidade, as reuniões ocorreram com professor Nelcioney Araújo, coordenador do curso de Licenciatura Indígena, Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável (IFCHS/Ufam), e com a  vice-reitora da universidade Terezinha Fraxe, que se comprometeram em ajudar os NADAHUPY. 

Américo Socot, que mora na comunidade indígena Kabari, localizada a 20 minutos de canoa subindo o rio Negro, próxima a São Gabriel da Cachoeira, conta que quase 2 mil indígenas formam o povo Hupd’äh, que vive na região do rio Papuri e Tiquié. Essa população já possui professores formados por meio do magistério, mas espera que mais indígenas possam se formar ou se qualificar na área. “Queremos estudar. Escrever na nossa língua e no português. Aprender mais sobre a antiga também”, explica o articulador. 

Quando questionado sobre quais são as demandas do povo Dâw, Roberto Sanches concorda com Américo. Para o professor, a visita à Ufam é o momento de eles tomarem a sua própria voz e buscarem novos caminhos. “Nós estamos nos sentindo vitoriosos com os encontros em Manaus. A gente vê um fruto bom, mas a nossa luta não pode parar”, afirma Sanches. 

Cerca de 160 indígenas do povo Dâw vivem atualmente na comunidade Waruá, aldeia onde Roberto e mais 29 famílias moram. A comunidade está situada a cerca de 20 a 30 minutos de São Gabriel da Cachoeira. Ele comenta que lideranças dos Hupd’äh e dos Dâw há anos lutam para melhorar a educação das suas comunidades, onde muitas escolas funcionam com poucos professores, em casas de madeira que estão se deteriorando e sem material didático.

Para tentar mudar essa realidade, Américo e Roberto agora precisarão discutir com as comunidades e confirmar o interesse na criação de um Projeto Político Pedagógico de Curso (PCC) voltado aos NADAHUPY. A intenção deles é que Nadëb e Yuhupdëh também participem dos debates e integrem as futuras turmas do curso.

O coordenador do curso de Licenciatura Indígena do IFCHS, Nelcioney Araújo, explica que esse processo será assessorado por professores e pesquisadores de maneira informal. Segundo ele, após a reunião entre os NADAHUPY os profissionais envolvidos, como o ex-diretor do IFCHS Raimundo Nonato e o próprio antropólogo Renato Athias que acompanhou Américo e Roberto nas reuniões, irão orientar encontros entre os indígenas onde o PCC será desenvolvido.  

“Estamos há quase dois anos em um processo parecido com o povo Munduruku da Indígena Kwatá Laranjal, que deve finalizar em um evento em setembro. Eles tiveram apoio das prefeituras de Borba e Nova Olinda do Norte neste período. É importante que as prefeituras e outras organizações apoiem os NADAHUPY também”, ressalta o professor Nelcioney.

Pandemia 

Local onde os indígenas Hupd’äh ficaram acampados em frente a São Gabriel da Cachoeira durante a pandemia
(Foto Arquivo Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real)

A pandemia da Covid-19 já atingiu 162 povos indígenas brasileiros, onde até junho de 2022 mais de 900 deles morreram no país em decorrência do vírus, de acordo com o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. 

Os povos que vivem na região do Rio Negro, habiltada por quase 30 mil indígenas de 23 etnias,  também foram afetados. Com isso, ao longo de 2021, Américo Socot, articulador dos Hupd’äh, junto com Domingos Barreto, do povo Tukano, e Marcelino Massa, do povo Desano, visitaram mais de dez comunidades localizadas rio Tiquié e no rio Castanho, do Alto Rio Negro. 

O objetivo das visitas, que duraram cerca de 40 dias, era realizar uma pesquisa-ação, entrevistando a população destas comunidades para entender como eles estavam enfrentando a pandemia da Covid-19.

“Nós perguntávamos: como a pandemia foi criada? De onde ela veio? Como se proteger? Uns diziam: ‘A pandemia é de branco, para cá não veio nada não. Eu sou pajé e aqui todo se protege’. Outros falavam que a pandemia veio do morcego”, lembra Américo, que destaca a importância do uso de chás e de mel de abelha e da da atuação dos benzedores na proteção e no tratamento contra o coronavírus.

Na plataforma “Monitoramento Comunitário da Qualidade da Saúde Indígena (PMCQSI) do Alto Rio Negro”, é possível encontrar os resultados das visitas de Américo, Domingos e Marcelino por meio de 13 relatos e textos que apresentam e analisam os resultados da pesquisa. A ação é uma colaboração entre as lideranças, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Associação Saúde Sem Limites (SSL), o Instituto de Desenvolvimento Social (IDS) e apoio do Coletivo de Apoio aos Povos Indígenas Yohupde, Hupd´äh, Nadöb e Dâw (CAPI-YHND).

Sobre a saúde dos povos Hupd’äh e Yuhupdëh, a pesquisa-ação, que entrevistou moradores de abrangência do polo-base de São José II, aponta a piora na assistência à saúde prestada para essas populações no período da pandemia. Segundo a plataforma, a frequência de visitas das equipes de saúde nas comunidades diminuiu significativamente com o intuito de evitar a disseminação do vírus. Porém, a medida foi vista como negligência aos povoados e não evitou que as equipes fossem vetores de propagação do coronavírus.

Além disso, a plataforma lembra que em 2020 o FOIRN recomendou a criação de um Plano de Contingência Surtos e Epidemias com medidas imediatas para reduzir a morbimortalidade associada à exposição ao contágio, mas nenhum tipo de ação específica foi implementada. 

Memória 

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Américo Socot na exposição de fotografia (Reprodução Museu Amazônico)

A vinda de Américo Socot e Roberto Sanches à Manaus também marcou a inauguração da exposição fotográfica “Os Caminhos dos Hupd’äh – Floresta, Espíritos e Rios”, realizada no dia 15 de junho na Ufam, disponível para o público somente neste dia na Faculdade de Educação. Além do lançamento do filme “As Palavras Encantadas dos Hupd’äh da Amazônia, Mestres de Saberes Narrados por Renato Athias” no dia 19 do mesmo mês no Museu Amazônico, localizado no Centro de Manaus. As lideranças também participaram dos dois eventos. 

O material das duas produções visuais fazem parte do acervo etnográfico do antropólogo Renato Athias. Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o pesquisador acompanha a família linguística NADAHUPY desde 1972 quando esteve na região do Alto Rio Negro pela primeira vez e realizou suas pesquisas de mestrado e doutorado. Uma das referências no assunto, Athias é um dos fundadores da Rede CAPI-YHND, organização interdisciplinar que apoia estes povos e que em 2016 entregou ao MPF um documento sobre como os NADAHUPY estavam vivendo. 

O antropólogo conta que a maior parte das fotografias que estão no filme foram feitas em 1984, ano da sua pesquisa de campo de doutorado em que ele passou 14 meses morando com os Hupd’äh. Athias lembra que à época, sem GPS, ele gravava o caminho até as aldeias somente na memória. Durante o dia, ele acompanhava os indígenas em suas tarefas e antes de escurecer, aproveitava para fazer suas anotações.

“Essas fotografias para mim são memórias e com a digitalização eu pude perceber a quantidade de material que tinha acumulado todos esses anos”, afirma ele, que acompanhou Américo Socot e Roberto Sanches em Manaus. O acervo de Athias foi digitalizado em 2019 e 2020, pela Universidade do Texas, por meio do projeto coordenado pelo Arquivo das da América Latina (AILLA) em Austin, que agrupa acervos etnográficos sobre as línguas indígenas de diversos países. 

Além das fotografias, fazem parte do material cadernos com anotações feitas por Athias durante a vivência com o povo Hupd’äh e 100 arquivos de entrevistas e músicas, de 30 minutos cada, gravadas em 50 fitas cassetes.  É a primeira vez que o acervo do antropólogo vem a público.

“O acervo está totalmente organizado e digitalizado e Américo volta para São Gabriel da Cachoeira com tudo isso gravado em um pen drive. Ele vai escutar gente que faleceu há muito tempo. Músicas que se ‘perderam’. É um material etnográfico que dá conta não só de uma história, mas de toda uma sociedade”, ressalta Athias. 

Com direção da cineasta Mina Rad, “As Palavras Encantadas dos Hupd’äh da Amazônia, Mestres de Saberes Narrados por Renato Athias” já foi exibido em festivais de cinema da Índia, Japão, Estados Unidos e França. No Brasil, o filme tem mais uma estreia marcada no Prêmio PRGV no mês de setembro, mas a sua exibição ainda não está disponível para o público. 

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O antropólogo Renato Athias (em pé) com Roberto Sanches e Américo Socot, lideranças dos povos Dâw e Hupd’äh
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

 
http://xapuri.info/sancho/

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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