A ÚLTIMA PERGUNTA: REALIDADE OU ILUSÃO?

A última pergunta: Realidade ou ilusão?

Esta crônica é dedicada ao grande mestre Binômino da Costa Lima, da cidade de Jataí, o mais sábio e maior conhecedor do Cerrado que tive a oportunidade de conhecer em toda minha vida de pesquisador.

Por Altair Sales Barbosa

Certa vez, um outro sábio trovador, que vive na fronteira entre a Caatinga e o Cerrado, afirmou em um de seus poemas canções: “No Cerrado já vi coisas do invisível e do mal-assombrado.” Refiro-me ao cantador escatológico Elomar Figueira Mello, que vive lá para as bandas do rio Gavião.

Também ouvi de outros cantadores sensíveis aos elementos do meio ambiente, invisíveis aos olhos dos viventes normais, dentre estes, Mestre Arnaldo, que afirma em uma de suas canções: “Cada gota d’água é uma vida. A vida gota a gota se aflora. Se não cuidar da gota d’água. A vida gota a gota se evapora.”

Atravessando o planalto de leste a oeste, um certo dia, direto do coração do Cerrado, afirmei através de uma longa entrevista ao Jornal Opção, de Goiânia, que o Cerrado já estava extinto na plenitude de sua biodiversidade. Esta afirmação era resultado de mais de 40 anos de pesquisas neste ambiente, considerado um sistema biogeográfico.

A denominação deriva do aprendizado e das observações que fiz, juntamente com inúmeros pesquisadores que passaram pela minha vida e me fizeram entender que essa matriz ambiental é um sistema composto por diversos subsistemas e microambientes intimamente interligados, cuja modificação em qualquer desses subsistemas, e microambientes, provoca modificação no sistema como um todo, que engloba não só o quadro vegetacional, mas também todos os elementos que compõem um ecossistema, tanto natural como artificial.

Quando me refiro aos ecossistemas naturais, o faço também ao oligotrofismo do solo, ao fogo, aos fenômenos atmosféricos de um modo geral, às formas de relevo, às águas superficiais e subterrâneas etc. Quando me refiro aos ecossistemas artificiais, estou salientando as cidades, as metrópoles, as rodovias, as ferrovias, os campos de cultivo, as represas etc.

Todavia, num dando momento, um estalo clareou a minha mente e, tentando duvidar da minha própria afirmação, de que o cerrado se encontra extinto, saí em busca de respostas. Tanto nas teorias científicas, quanto nos modelos de economia, nas ações governamentais e seus recheados relatórios, como também nas atividades e comportamento das populações ditas conscientes.

Percorri centímetro por centímetro dos chapadões centrais da América do Sul e, com olhos aguçados reparava os detalhes, tanto os microscópicos, visíveis somente aos pesquisadores, quanto aos macroscópicos, visíveis por muitos.

Conversei com professores indígenas, com ribeirinhos e outros habitantes tradicionais, bebendo dessa fonte, sempre na ânsia de encontrar uma resposta satisfatória, que pudesse contradizer minhas afirmações. Mergulhei na vasta literatura existente, com uma pergunta formulada: verdade ou ilusão?

Quisera eu demonstrar que o argumento da temporalidade e da irreversibilidade que alicerçava minha argumentação estava equivocado e que por isso, o Cerrado, enquanto pelo menos vegetação, poderia perfeitamente se regenerar de onde havia se extinguido.

Mas a descoberta das leis do não equilíbrio e dos rumos que tomaram a nova evolução da dinâmica clássica que vêm demonstrando o caráter imprevisível do desenvolvimento da ciência, fez renascer ou ressurgir com clareza o papel do tempo.

A descoberta das leis do não equilíbrio me fez perceber, tanto em nível microscópico quanto no macroscópico, que a predição do futuro mistura determinismo e probabilidade e que a irreversibilidade só é destrutiva para os modelos de ações que a criaram.

Na seta de um tempo maior, ela pode trazer novas configurações e até novas ordens.

O ESPANTO COM A EXPANSÃO DA DEGRADAÇÃO

O período compreendido entre o final da Segunda Guerra Mundial e 1970 já pode ser considerado o período em que a humanidade alcançou o apogeu, no sentido de transformar restos de guerra em insumos para produção.

Para que isso pudesse se transformar em realidade, uniu grande capital e houve investimento em massa na ciência. Na realidade, apenas em uma perna da ciência, aquela que busca a produção. Países foram eleitos como cobaias para as novas experiências científicas, que buscavam aumentar a produtividade, principalmente na área da agricultura e pecuária.

Centros de excelência científica foram montados nesses países, incluindo México, Ceilão e Brasil e, com base na seleção de pessoal capacitado e muito investimento em infraestrutura, os resultados salpicaram de imediato, feito milho de pipoca estourando na gordura quente.

Foram criadas tecnologias para transformar o solo oligotrófico, do Cerrado, em solo altamente produtivo para muitas espécies vegetais exóticas. Com as sobras de insumos químicos, criaram venenos poderosos para combater as pragas, tanto vegetais como animais, que as novas plantas traziam. Surgiram herbicidas, fungicidas e inseticidas eficazes.

E, no dizer do grande mestre Milton Santos, aqui no Brasil voltaram suas vistas para as terras abençoadas ou lugares iluminados. Onde estavam essas terras? Primeiramente, nos grandes chapadões e nos interflúvios do Cerrado.

Escolhido o alvo inicial, era preciso o tiro certeiro. Então, imediatamente investiu-se na criação de uma tecnologia que colocasse por terra as plantas existentes nos locais. Os pesquisadores, criadores de tais insumos tecnológicos, não estudaram sistematicamente o ambiente, desconheciam as funções ecológicas das plantas que ali estavam, tampouco buscaram um conhecimento mais profundo dos processos evolutivos do Cerrado.

Por isso, nem de longe imaginavam que aquelas ações, carentes de um conhecimento sistêmico, eram apenas o início de uma transformação ambiental sem precedentes, que paulatinamente colocou em desequilíbrio os elementos ambientais atmosféricos, litosféricos, hidrosféricos, bióticos e culturais, não só em termos de dinâmica, mas também de termodinâmica, cujo processo cumulativo em poucos anos já se manifesta globalmente.

Inicialmente, instalaram-se sob forma de empresas agrícolas, depois em complexos agroindustriais. Os agentes nacionais aliados funcionaram e ainda funcionam como cabeças de pontes do grande complexo multinacional interessado nos monocultivos para exportação. Para produzir, passam a contar com a carteira creditícia do Banco do Brasil na obtenção de financiamento.

Em suma, o próprio capital externo emprestado ao governo brasileiro, que deveria ser utilizado para desenvolver a agropecuária de base nacional, retorna ao seu primitivo dono acrescido de juros, taxas e correção monetária ao ser direcionado para financiar parte dos investimentos locados na cadeia produtiva da grande empresa multinacional.

O exemplo mais claro é o avanço da soja sobre os chapadões do Cerrado em virtude do fácil manejo desses terrenos, da fartura de água e das novas tecnologias desenvolvidas.

A partir da anexação do campo à economia de mercado, implementada de forma agressiva e acelerada, tem-se a destruição da unidade familiar camponesa pela grande empresa monocultora, na medida em que essa última, ao se instalar no território regional preferido, necessita cada vez mais de terras para incrementar a produção e expandir os monocultivos e criatórios, incentivos destinados ao abastecimento do mercado nacional e externo.

Consequentemente, para os nacionais que persistem pelo trabalho em permanecer livres na própria terra, ocorre a contínua e progressiva redução dos espaços habitados e habitáveis.

Nos anos subsequentes, no meio rural e regional do Cerrado, foram-se avolumando as situações conflitivas entre as forças produtivas dominantes e as relações de produção dominadas pelos pequenos e médios proprietários e trabalhadores rurais.

As contradições surgidas entre agentes da velha estrutura fundiária nacional e os da nova estrutura emergente, aqueles que detêm a força do capital financeiro, tornaram-se cada vez mais antagônicas e desiguais, a ponto de romper, em questão de alguns anos, o lado mais fraco da cadeia produtiva.

Desestabiliza-se a tradicional estrutura agrária brasileira, carente de suporte de capitais, de assistência técnica e de políticas públicas que garantam empréstimos e preços competitivos aos seus produtos.
De posse das novas tecnologias, os grandes proprietários rurais expandiram suas plantações para diversos subsistemas do Cerrado, como o cerrado stricto sensu, cerradão, as veredas e os cerrados existentes nas mesetas dos interflúvios, que são aqueles espaços que separam as microbacias.

E assim, dessa forma, alcançaram todo o cerrado, criando infraestrutura de suporte para o escoamento, vários pontos urbanos novos surgiram, e as comunidades que viviam dos sistemas agrícolas tradicionais foram ou estão sendo totalmente desestruturadas.

Também a venda e a partilha de heranças ocasionaram acelerada fragmentação da propriedade do produtor nacional, acompanhada de rápida desestabilização do seu “modo de vida”. Em contrapartida, a compra induzida e efetivada a favor de empresários e empresas conduziu à concentração da propriedade da terra nas mãos dos magnatas do capital.

Essas transações, com os seus respectivos desdobramentos econômicos e sociais, contribuíram para a perda da estabilidade do trabalhador rural brasileiro, juntamente com a sua família, nos moldes dos seus padrões de vivência campesina.

A progressiva desestabilização do seu modus vivendi econômico, social e cultural terminou por expulsá-lo do meio onde vivia na condição de pequeno ou médio proprietário ou de trabalhador agregado como meeiro, posseiro, tarefeiro, diarista etc.

Rapidamente, ocorreu a queda de sua vivência coletiva uno familiar, obrigando-o a ser um itinerante-peregrino, boia-fria, a perambular pelas estradas do Brasil à procura de terra e trabalho, terminando o seu percurso migratório como mão de obra explorada nas médias e grandes cidades brasileiras, lugares onde a vida é totalmente monetária, onde tudo se compra e tudo se paga.

Nelas, na maioria das vezes, passa a viver como marginalizado social, na condição de subempregado ou de assalariado urbano ou de desempregado. Nessa última condição, faz parte do contingente de reserva de mão de obra barata a ser utilizada, no amanhã, quando se fizer necessário. Muitos, para se manterem no plano existencial, procuram se incorporar à economia informal, como única opção de sobrevivência no meio citadino.

Uma segunda faceta da matriz geográfica, tão preocupante como a espacial rural, é a espacial urbana que, atualmente, assume índices alarmantes em termos de vivência sociocomunitária e que, sem sombra de dúvida, é consequência da desterritorialização provocada pela política agrária.

O universo urbano concentra a maior porcentagem dos habitantes. Há de se ter em conta a virada da população rural para urbana a partir da década de 1970, momento em que se dá a incorporação do campo à economia de mercado, com o advento do império do capital financeiro das grandes empresas monocultoras, recebendo efetivo apoio logístico das políticas públicas.

Ruy Moreira atribui a esse fenômeno o nome de desterritorialização, que, segundo ele, traz para o mundo atual a categoria dos SEM (Sem-Terra, Sem-Teto, Sem-Emprego, Sem-Documentos etc). Esse fenômeno acentua ainda mais a sensação e a condição de alienação.

Expulsos de suas terras pelos poderosos, através da compra e falsificação de títulos, os posseiros, em cujas posses não legalizadas viviam durante várias gerações, vão buscar abrigos nos centros urbanos ou postos de serviços implantados ao longo dos sistemas viários. Nesses locais, os sem-terra se transformam também nos sem-teto.

Nos centros urbanos, essa categoria social vai ocupar as periferias, as planícies de inundação dos rios, as encostas dos morros etc. Nesses locais, as famílias vão estruturando suas vidas e seus espaços, caracterizados pela desorganização social e ambiental.

E, assim, vão tocando em frente suas vidas, até que, num belo dia, um dos ciclos naturais provoca excesso de chuvas. Quando estas se precipitam nos morros, o solo é saturado, e a água acumulada no lençol freático pode se armazenar numa rocha não porosa do substrato, formando um aquiclude que escorre com uma grande energia, levando tudo que se encontra à frente.

Quando o aumento da pluviosidade enche os rios, estes transbordam e cobram de volta suas planícies de inundação que, por sua vez, estão ocupadas pelos barracos. As consequências são destruição, mortes, doenças e a origem de uma situação social ainda mais desesperadora.

As comunidades desestruturadas não encontram também nos pólos urbanos empregos estáveis, capazes de lhes permitirem uma melhor perspectiva de futuro.

Perdidos e carentes, qual cuitelinho sem néctar, num ambiente estranho, são presas fáceis das propagandas enganosas, estimuladoras do consumismo. Impossibilitados economicamente de usufruírem dos bens propagados, muitos veem a razão da existência perder a própria racionalidade e mergulham na neurose da fuga através dos alucinógenos ou procuram ter, por meio de métodos que a sociedade organizada classifica de atos ilícitos.

A desagregação da família, a prostituição infantil e a perda do amor pela vida são apenas algumas das consequências ditadas pelo desespero.

Após essa minha viagem nada fantástica, só constatei o óbvio: retiraram as plantas nativas, estão secando os aquíferos, o veneno jogado nas plantações está levando à extinção os últimos representantes da fauna nativa, desde insetos, répteis, aves e mamíferos, e ainda alienam as mentes dos inconscientes.

Tudo isso é sabido. É mais que conhecido. Porém, indaguei: Será que o povo conhece os autores de tais atrocidades? Constatei que a grande maioria sabe, mas parece cega, surda, muda e alienada. Contudo, o fato que mais me entristeceu foi ver pesquisadores deturpando fatos, em nome de interesses próprios.

Pior ainda, encontrei pesquisadores que, em pleno século 21, ainda não incluíram nos seus aprendizados a noção de que a Terra é um planeta dinâmico e sistêmico e que a globalização sempre existiu, mas se manifesta hoje de forma mais evidente, em função do aumento descomunal das populações humanas e suas bugingangas tecnológicas.

E eu que aprendi com os irmãos indígenas que a missão de quem acorda mais cedo é despertar toda a aldeia, descobri que estava completamente enganado. Percebi que, para alguns, a verdade que fala mais alto é a estabilidade financeira e a vaidade dos modismos.

Os responsáveis por essa situação são os detentores do grande capital e possuem uma grande teia de aliados, diluída em diversos escalões, cujos representantes estão distribuídos pelos vastos rincões do Brasil. Eles e seus comparsas têm muito mais do que necessitam.

Estes não só são os grandes causadores deste mal-estar, mas deveriam ser classificados como os exterminadores do futuro. Porém, nem engrossam as estatísticas da população carcerária, pois são protegidos por uma redoma magnética denominada impunidade.

Travestidos de ecologistas, hospedam o vírus da responsabilidade individual na cabeça dos fracos e inconscientes, que por sua vez saem disseminando ideias convenientes e paliativas, propondo a troca de sacolinhas plásticas por pano ou papel ou sensibilizando plateias, com suas historinhas ingênuas, como aquela do beija-flor, que sozinho tentava apagar o incêndio da floresta com uma gota de água no bico.

Os amantes da responsabilidade individual estão indo mais longe e com a bandeira descorada da educação ambiental conclamam: ‘Temos que salvar o planeta’. Como se este dependesse dos homens para sobreviver. Agindo dessa forma, querem confundir a cabeça dos abnegados, possivelmente para abafarem ou não entrarem em situações conspiradoras.

Fui tentar conhecer outras experiências. Saí em busca das iniciativas ecológicas, mas o que encontrei foram pessoas que se autodenominavam produtores de água, com projetos gigantescos patrocinados pelos interesses dos grandes produtores e até pessoas de boa de fé, mas com grande ingenuidade, que também se autodenominam produtores de água.

São grupos pequenos que, com boa vontade, procuram replantar plantas exóticas nas antigas nascentes de pequenos córregos, ou isolam estas para evitar o pisoteio. Quando alguma água brota, mal sabem que aquela água, restrita ao lençol freático, não resiste a um período de maior estiagem.
As barragens dos grandes produtores de água são projetos imediatistas que desequilibram a vida e o meio físico, tanto a montante quanto a jusante dos cursos de água. Entre os dois grupos, o único elemento que compartilham em comum é a falta de conhecimento.

Continuei a viagem procurando conhecer outras iniciativas ditas sustentáveis ou ecológicas do Cerrado e quase que como uma procissão de encomendadeiras de almas encontrei pessoas de bom coração, perdidas no inconsciente de que não têm culpa, mas se acham culpadas vivendo perambulando sem rumo, talvez buscando ações do que fazer.

Encontrei receitas ingênuas de reciclagem e, no final de cada estrada, sempre encontrava um calabouço de pessoas confusas, algumas tinham até ideias, mas não encontravam o caminho. Foi então que resolvi conhecer os planos de alguns políticos. Minha descoberta foi assustadora: descobri que a maioria vive de mentiras e enganos e nunca na minha vida pude presenciar tanta hipocrisia.

Um dia, após muito tempo, e já cansado de tentar contradizer minha afirmação inicial, armei minha rede à sombra de duas árvores exóticas no leito de um riacho seco. A noite estava clara, mas não conseguia enxergar as estrelas e, após pensar muito, um conjunto de imagens ilustrou a minha mente.
Então, pensando tristonho, percebi que a resposta à minha última pergunta estava na abóboda celeste.

Foi quando percebi que estava balbuciando feito um andarilho solitário: Se nos pés de araticuns não existem frutos, é porque mataram seus polinizadores. Se nossos rios estão secando, é porque estamos bebendo mais que a capacidade das fontes. E se nos campos não existem mais douradinhas e capins nativos, é porque retiraram da bandeira do Cerrado suas constelações vitais.

altair salesAltair Sales  Barbosa  –  Arqueólogo, em “O Piar da Juriti Pepena – Narrativa Ecológica da Ocupação Humana no Cerrado”. PUC Goiás, 2014

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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