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Agricultura, êxodo e fome

AGRICULTURA, ÊXODO E FOME

Agricultura, êxodo e

O que a arquitetura das grandes cidades, a fome, a reforma agrária e a cozinha têm em comum?

Por Gustavo Guterman e Vanessa Santos/Xepa

A cozinha profissional sempre preconizou a qualidade dos insumos como marco zero para a construção de um bom prato. “Sem bons ingredientes, não há boa cozinha”- Paul Bocuse. Carlo Petrinni afirmou em uma conversa há muitos anos que “ativista ambiental que não é um cozinheiro, possivelmente é uma pessoa triste, agora um cozinheiro que não é um ativista ambiental, sem dúvida nenhuma, é um tolo.

” Sabemos que para além da percepção ambiental, o ato de cozinhar também envolve a escolha de ingredientes. Ao conhecermos a origem dos insumos, conseguimos mensurar não somente sua qualidade, como também investir naqueles(as) que cultivam. Para além, comprar de quem produz também garante a continuidade do trabalho, viabilizando o ofício para todos. 

A partir destes pensamentos, percebe-se que a gastronomia profissional é muito maior do que meramente uma “expressão artística” ou uma “experiência”. Reduzir ofício aos prazeres sensoriais não só é reducionista como nos priva de pensar na complexidade deste campo. Por anos essa percepção da “gastronomia entretenimento” nos é empurrada goela abaixo por programas de televisão e chefs de cozinha deslumbrados com os encantamentos de uma dólmã com bordado. 

Particularmente acreditamos que esta ideia que limita a abrangência da gastronomia enquanto campo acadêmico e prático, objetiva justamente nos cercear das reflexões quanto as questões alimentares e como estas estão intimamente conectadas. Nos impede de percebermos a necessidade de questionar a origem e qualidade das cadeias produtivas que desembocam em uma cozinha doméstica ou profissional.

Parte do resultado desta nossa ignorância pode ser observada nas nuances da alimentar em que há muito estamos inseridos! A gastronomia, a concentração fundiária, a produção dos alimentos, a derrubada de florestas e o apartheid social no campo e na cidade… Tudo isso está intrinsecamente conectado. E iremos explorar essas conexões. 

Começaremos relembrando algumas perspectivas da realidade de nosso país, para que juntos possamos refletir sobre possibilidades. 

A ORIGEM DA CONCENTRAÇÃO DE TERRAS

A colonização da coroa portuguesa ainda no século XVI dividiu o território brasileiro em grandes porções de terra (capitanias hereditárias) doadas a nobres e fidalgos que exploravam as terras e os recursos naturais da então colônia. Neste processo não somente indígenas foram ora dizimados, ora submetidos à trabalhos forçados, como seus antigos territórios, transformados em imensas propriedades, que agora pertenciam aos primeiros ruralistas da história do Brasil.

As capitanias hereditárias foram a origem da concentração fundiária que experimentamos até os dias atuais, cinco séculos depois. que detém desde a colonização grande parte do poder político e econômico do país, produzindo abismos sociais e econômicos nos meios rurais e posteriormente, urbanos. 

Já no século XIX, com o fim do tráfico negreiro em 1850 e a pressão internacional pela abolição da escravidão, o Brasil passou por um período de transição para o trabalho livre. Nesse contexto, surgiram as primeiras propostas que visavam garantir condições de vida dignas para os ex- escravizados e os imigrantes que chegavam ao país

O historiador Luiz Felipe de Alencastro conta que no dia 13 de maio de 1888, há 135 anos, o Senado do Império do Brasil aprovava uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão. Contudo não era apenas a liberdade que estava em jogo, segundo o historiador. Outro tema interessava muito os abolicionistas: a reforma agrária.

Todavia a maior parte do movimento republicano “fechou com os latifundiários para não mexer na propriedade rural”, diz Alencastro. Foi aí que veio a aprovação da Lei Áurea, sem nenhuma compensação ou alternativa para os libertos se inserirem no novo Brasil livre. “No final, a ideia de reforma agrária capotou.”  A escravidão foi extinta sem qualquer política de inclusão social aos ex-escravizados, que ficaram à margem da , sem moradia ou um pedaço de terra para trabalhar.

O ÊXODO RURAL

Quarenta anos mais tarde, no início da década de 30, o país experimentou o início do êxodo rural, fenômeno de deslocamento da população do campo para a cidade. No Brasil este processo se intensificou por conta da industrialização do país. Tal fenômeno (observado até os dias de hoje), levou o crescimento desordenado dos espaços urbanos, a especulação imobiliária, a sobrecarga da infraestrutura e a marginalização social pela incapacidade de absorção da mão de obra nas cidades.

Por outro lado, o campo ficou esvaziado e subdesenvolvido. Segundo o IBGE, em 1940, apenas 26,3% da população brasileira vivia em áreas urbanas. Em 1980, esse percentual subiu para quase 70%. O Brasil se tornou um país predominantemente urbano na década de 1970, quando mais da metade da população residia nas cidades. 

O esvaziamento do campo (observado em praticamente todos os países que experimentavam o processo de industrialização/urbanização) viabilizou um movimento de mecanização no campo, que fora chamado de revolução verde no início da década de 60.

Com a promessa de uma “modernização da agricultura” por meio do uso de novas tecnologias, como o uso de sementes geneticamente modificada, fertilizantes, agrotóxicos e maquinários, os latifundiários aumentaram drasticamente sua produtividade, alcançando o mercado internacional das comodities, ao produzir uma gama reduzida de insumos de grande valor de mercado e baixíssimo valor para o consumo humano. 

A partir das ações do no Brasil na última década, é possível afirmar alguns pontos fundamentais; 

O AGRO

1- O agronegócio não cumpre a promessa de alimentar o , mas sim de lucrar com a exportação de commodities, como e milho, que não são consumidos diretamente pela população.

2- O agronegócio avança sobre as áreas da agricultura familiar, que é responsável por cerca de 70% dos alimentos consumidos no Brasil, gerando êxodo rural, concentração de terras e renda, e impactos ambientais.

3- O agronegócio tem privilégio no acesso aos recursos financeiros públicos, enquanto a agricultura familiar é marginalizada e obrigada a seguir o mesmo modelo de produção em larga escala.

4- O agronegócio é guiado pelo mercado externo, que determina os preços e a demanda dos produtos, deixando os brasileiros vulneráveis à escassez e à inflação dos alimentos.

Se no campo, mesmo com contínuo êxodo rural, agravado pela no campo a partir das ações de grileiros temos a resistência da agricultura familiar. Como está a situação daqueles que desde a década de 30 vem buscando uma possibilidade de sobrevivência nos grandes centros urbanos?

ARQUITETURA HOSTIL: A CIDADE É PARA TODOS?

Você conhece o termo, “Arquitetura hostil”? Este termo foi cunhado em junho de 2014 pelo repórter Ben Quinn no jornal britânico The Guardian. 

Os exemplos são muitos: em Guangzhou, na China, em uma área livre coberta abaixo de um dos viadutos da cidade, foram introduzidas milhares de pedras pontiagudas para evitar que moradores de rua se apropriassem do espaço como abrigo. A mesma solução foi aplicada abaixo de viadutos e passarelas de São Paulo, Belo Horizonte, em Minas gerais, e em muitas outras cidades pelo mundo.

Cercas elétricas, arames farpados, grades no perímetro de praças e gramados, bancos públicos com larguras inferiores ao recomendado pelas normas de ergonomia, bancos curvados ou ainda assumindo geometrias irregulares, lanças em muretas e guarda-corpos, traves metálicas em portas de comércios, pedras em áreas livres, gotejamento de água em intervalos estabelecidos sob marquises, e tudo que puder de alguma forma afastar ou excluir pessoas “indesejáveis” dos locais públicos.

Partindo dos números alarmantes e notícias quanto ao número de pessoas vivendo precariamente nas ruas, de óbitos causados pelas baixas temperaturas no inverno, da fome e condições degradantes, o que se percebe, é que ações promovidas pelos Órgãos Públicos e população deflagram a falta de gentileza, que diariamente “fecham seus olhos” para a cruel realidade.”

O tema é bastante complicado e abrangente, e não pode ser abordado de maneira simplista. O número alarmante de moradores de rua expõe desigualdades estruturais na sociedade brasileira, evidenciando o estado mais degradante que um ser humano pode chegar. Muitas vezes tal situação eclode pela falta de opções, como o abandono familiar, a dependência química, problemas psiquiátricos, ou a desapropriação rural vista acima.

E isso tende a se agravar pela falta de uma discussão aprofundada sobre a necessidade urgente de uma reforma agrária em nosso país. E por que a reforma agrária é tratada como algo criminoso no Brasil? Porque ruralistas mandam neste país há muito… 

Assim o ciclo se fecha. O campo é dominado pelo agronegócio (desde o século XIX), onde pequenos produtores rurais e indígenas (alicerces da nossa produção e cultura alimentar) são expulsos ou mortos; a população negra, escravizada no Brasil Colônia e ignorada numa pseudo-inserção social após a abolição, procura até hoje uma reparação histórica que se reflete nos covardes índices que lideram, como vítimas da violência urbana e extrema (não esquecendo, é claro, da complexa e rica cultura africana que está intrinsecamente atrelada a nossa alimentação e costumes nacionais).

O número da população em situação de rua só faz crescer, e uma das medidas tomadas é justamente a hostilidade arquitetônica, aliada a raras e enfraquecidas políticas públicas para reparar tal dano. Por fim, grande parte população continua ignorando a ligação íntima entre todos esses fatos, deixando de observar e discutir um dos principais fios condutores que conectam a realidade triste da nossa crise alimentar com as profundas mazelas sociais que nos assolam diariamente.

Essa discussão é pauta das nossas aulas há tempos. Quem mais pode discutir com propriedade a fome, a comida, as cadeias produtivas e a cultura alimentar no Brasil, senão professores e alunos de gastronomia?

Para além das questões agrárias, outro tema importante que sempre abordo é o desperdício de alimentos no país.

Enquanto milhões não têm o básico para se alimentar, o Brasil está entre os dez países que mais desperdiçam comida no mundo: anualmente, 27 milhões de toneladas de alimentos vão parar no lixo, segundo a ONU. Cada brasileiro joga fora todo ano, em média, 60 quilos de alimentos ainda em boas condições para consumo. Nos supermercados, apenas em frutas, legumes e verduras, o país perde anualmente R$ 1,3 bilhão, conforme levantamento da Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS). Sobre isso, conversaremos numa próxima oportunidade!

Sobre os autores

Juntando o nosso tempo de trabalho dedicado à Gastronomia dá 45 anos! Cozinha, gestão, coordenação de cursos, sala de aula, fóruns, congressos, textos, blog, e muita, muita dedicação pela Gastronomia. Por ela, para ela, por respeito a todos que fazem parte, tentamos juntar a experiência dos dois para contribuir com a profissão que garante que as pessoas comam, que garante saúde, alegrias e sentimentos. – Vanessa Santos e Gustavo Guterman, professores-pesquisadores do campo da gastronomia e produtores de conteúdo no blog Comida RJ-CE. https://comidarjce.wordpress.com/

REPORTAGENS IMPORTANTES

“Insegurança alimentar é um eufemismo para a fome”, diz pesquisador – https://apublica.org/2018/09/inseguranca-alimentar

Fome oculta – https://apublica.org/2018/09/fome-oculta/

FONTES >>

Enquanto 13 milhões passam fome, cada brasileiro desperdiça 41 quilos de comida por ano Fonte:  

Agricultura familiar do Brasil é 8ª maior produtora de alimentos do mundo Fonte: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/

Governo do Paraná despeja 54 famílias que produziam alimentos
Fonte: https://www.brasildefatopr.com.br/2019/09/20/

Mineradoras estão expulsando famílias camponesas de suas terras, em catalão – goiás Fonte:

Arquitetura hostil: A cidade é para todos?
Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/888722/arquitetura

Invisível nas estatísticas, população de rua demanda políticas públicas integradas Fonte: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais

Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador  Fontehttps://www.bbc.com/portuguese/brasil-44091474

Mais de 80% dos brasileiros e de 95% das empresas jogam comida fora, mostra estudo Fonte: https://exame.com/ciencia/mais-de-80-dos-brasileiros

MDHC lança relatório sobre pessoas em situação de rua no Brasil; estudo indica que 1 em cada mil brasileiros não tem moradia Fonte:  https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/

Fonte: Mídia Ninja. Foto: Folha de Londrina.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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