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"A Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho"

“A TERRA PODE NOS DEIXAR PARA TRÁS E SEGUIR O SEU CAMINHO”

Ailton Krenak: “A Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho”

O escritor e líder indígena acredita que a Terra é um organismo vivo e que, se a humanidade continuar no ritmo predatório que vive, entrará na lista de espécies em extinção

Entrevista por

“Estamos experienciando a febre do planeta Terra.” É o que Ailton Krenak afirma e que, aparentemente, uma parcela significativa da humanidade não está percebendo – ou, então, está negando. O aumento da temperatura do planeta vem como uma reação; mostra que o organismo Terra está reagindo às ações predatórias e destrutivas dos seres humanos, mas estamos tão centrados em nós mesmos que somos incapazes de ouvir esse descompasso. “Nos descolamos do corpo da Terra”, diz Krenak. Fizemos um divórcio, acreditando que poderíamos viver por nós mesmos. Com uma condição: extrair, dominar, explorar tudo o que vem de Gaia. Nos divorciamos desse organismo que nos abriga, mas estamos a todo instante a usurpá-lo.

A trajetória de Ailton Krenak foi sempre ecoante e fundamental na luta histórica dos povos indígenas e pela preservação da Terra. Fez barulho quando, em 1987, discursou na Assembleia Nacional Constituinte durante a elaboração da Constituição Brasileira de 1988. Durante o discurso, posicionou-se na tribuna, em frente àqueles que ameaçavam os direitos aos territórios geográficos e culturais das tradições indígenas. Pintou o rosto com a tinta preta do jenipapo como um gesto de protesto contra os retrocessos e ataques aos seus diretos e de seus parentes.

Passados tantos anos, a voz de Ailton Krenak segue sendo urgente e ecoante. Em 2019, escreveu o livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo,  um dos lidos no país no ano passado. Nas 88 páginas, propõe uma nova forma de consumo e de existência, guiada por uma visão cósmica do mundo. Mais próxima da natureza, menos sedenta por dinheiro, poder e domínio. Neste ano, lançou A Vida Não É Útil, um compilado de entrevistas e lives dadas por Krenak e transformadas em texto já no período da pandemia. No livro, destaca a ideia da profunda desconexão do ser humano com o organismo Terra, provocando reflexões sobre a centralidade da espécie humana e a forma como estamos nos relacionando com o planeta.

Ailton Krenak nasceu na região do Vale do Rio Doce, onde fica localizada a Terra Indígena Krenak e onde, há exatos cinco anos, rompeu-se uma barragem de rejeitos de mineração denominada Fundão, controlada pela Samarco Mineração. O crime deixou o rio Doce “anulado”, segundo Ailton. O rio que, para ele, é um avô, morreu. Foi morto por mais uma ação humana e corporativa de destruição. Hoje Ailton Krenak continua a viver na Terra próxima de onde a barragem foi rompida. Durante entrevista concedida por chamada de vídeo, um caminhão da Vale passou ao lado de onde o ativista estava. Podia-se ouvir o bip-bip do caminhão pipa que, segundo ele, é diário.

Que humanidade somos hoje? 
Somos uma humanidade complexa e diversa. Ela tem aquelas qualidades que nós gostaríamos às vezes que fossem presentes ao nosso redor: a complexidade e a pluralidade. Mas essa humanidade, exatamente por ter uma condição plural, não constitui uma comunidade. Poderia dizer que  hoje estamos perplexos, porque nós não conseguimos ter uma unidade de propósito e estamos passando por crises sucessivas. Crise ambiental, climática, econômica. É também uma crise de paradigma.

Entre essas crises, estamos experienciando a pandemia. Em A Vida Não É Útil, tu destacas o fato de o coronavírus adoecer apenas seres humanos. O que isso pode nos dizer? 
A Terra seguir seu caminho é uma possibilidade de desafiar a centralidade que o ser humano se pretende. Faz com o que essa centralidade seja posta em questão. É a ideia do Antropoceno [teoria de que as ações humanas mudaram profundamente o funcionamento do planeta e que isso constituiria uma nova era geológica]. Então, se o pensamento dos seres humanos acerca da vida aqui no planeta ficou tão atomizado ao ponto de nós ameaçarmos as outras existências, a Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho. Gaia é esse organismo vivo, inteligente, e que não vai ficar subordinado a uma lógica antropocêntrica. Ele dispensa a gente. Essa compreensão parece uma ideia mágica, romântica, mas muitos cientistas consideram a Teoria de Gaia [a ideia de que a Terra é um organismo vivo] ser real. Inclusive, os eventos que estamos passando agora são indicativos de que esse organismo está reagindo. Estamos experienciando a febre do planeta.

O organismo de Gaia está com febre porque nós, os humanos, somos os únicos que temos a capacidade de incidir sobre esse organismo de maneira desordenada. E estamos ameaçando outras vidas, outras existências, causando uma febre neste organismo. É muito didático, não é uma teoria complicada.

Nós estamos desorganizando a vida aqui no planeta, e as consequências disso podem afetar a ideia de um futuro comum – no sentido de a gente não ter futuro aqui junto aos outros seres. Os humanos serem finalmente incluídos na lista de espécies em extinção.

O ser humano é tão concentrado em si que quando vê povos conectados com a natureza chama isso de “alienação” – em algumas passagens de A Vida Não É Útil, em que falas sobre o rio ser um avô, as montanhas serem avós. E como esse parentesco com o que não é humano é visto com desconfiança por muitos indivíduos! Por que isso causa estranhamento? 
Parece que esse descolamento do humano desse grande organismo da Terra do qual nós somos parte aconteceu ao longo da história em diversos movimentos. O mais significativo deles talvez tenha sido a agricultura, o evento dos humanos dominarem essa atividade. O Harari, autor de Sapiens, diz que quando o Homo Sapiens descobriu que ele poderia dominar um ciclo de reprodução da natureza, como a agricultura, ele ficou meio convencido de que ele se separar da Terra. Antes ele tinha que subir nas árvores, correr com os outros primatas, fugir do tigre e do leão.

Abacateiro/ Acataremos teu ato/ Nós também somos do mato / Como o pato e o leão [canção Refazenda, de Gilberto Gil]

Esse poema tão lindo lembra que a gente pode ser vida junto com os outros seres. Vida indistinta. Apenas vida. Mas quando nós ficamos na forma humana – esse antropomorfo -, quando nos percebemos nessa forma, começamos a nos descolar da Mãe Terra. O ser humano discrimina os irmãos, as outras espécies. Outro dia entrei em contato com essa expressão: “especificação”. É quando a ideia de espécie começa a ganhar força no pensamento dos primeiros humanos. Eles começam a conceber a ideia de espécie e decidem discriminar. Muito provavelmente esse racismo estrutural a que chegamos no século XXI, que atravessa várias camadas de violência contra um mesmo corpo, tende a ser constituído por uma espécie de Homo Sapiens 5.0. Ele foi piorando, piorando, piorando, até causar a febre da terra. Mas primeiro ele teve de piorar a si mesmo, ao ponto de ele não se reconhecer no outro, em outros seres. E não têm outros. Só tem o humano.

Então, essa excessiva afirmação do ser humano nos colocou um dilema, que é: como recuperar o contato, o afeto – com montanhas, com rios, com floresta? Com um micro-organismo, que pode ser até este vírus, que causou a suspensão do tempo, da vida de muito gente, que é a pandemia.

O evento da pandemia foi visto, principalmente, como “terrível ameaça contra o humano”. Claro, o humano estava tão confortável no lugar de dominante que um vírus desestabilizou essa confiança tétrica. Quebrou essa confiança. 

Um possível gesto de abrir o contato e conhecer o que estava se passando se transformou em uma reação bélica, uma guerra. O termo mais comum era “uma guerra contra o vírus”. Os próprios cientistas falavam que estavam na guerra. Houve um enrijecimento do campo energético para lidar com isso como um confronto, como se fosse apocalíptico. Mas não houve muitos gestos de dizer: vamos conhecer esse organismo invisível, que tem a capacidade de causar tanta mudança? O único gesto em direção ao vírus era/é para controlar ele. Erradicar. Eliminar. Os termos eram/são estes.

Eu achei muito interessante que as pessoas simpáticas que a gente conhece das mídias se tornaram, de uma hora para outra, verdadeiros comandantes de batalha. Aí você fica olhando e pensando como que, rapidamente, todo mundo se transforma em um general.

Esse discurso bélico que a busca da vacina restaurou é como se tivéssemos uma declaração de que o inimigo está dentro de casa. Ora, não tem fora de casa. No organismo da Terra, a biosfera do planeta não tem externalidade. As empresas costumam deixar fora de suas contabilidades os danos que elas causam. Eu estou à margem do Rio Doce, na Terra Indígena Krenak, onde nosso rio completou cinco anos desde que foi anulado pela lama da mineração. À minha direita agora está passando um caminhão pipa.

[Bip-bip-bip-bip]

Se eu virar a câmera para lá, você vai ver um caminhão pipa. Você está ouvindo ele tocar uma sirene?

Sim, escuto 
É como se nós estivéssemos em um campo de refugiados. Só que em casa. Você acorda de manhã com essa coisa. E isso aqui é zona rural, é uma reserva indígena.

[Bip-bip-bip-bip]

A semana passada eu dei uma entrevista para um jornal e disse que nosso território havia virado um “Rally das empreiteiras”. Foi uma imagem que me ocorreu por conta desse tanto de caminhão, de máquinas, tratores, retroescavadeiras. Sabe aquelas máquinas que se usam para abrir barragens e fazer rodovias? Elas estão aqui dentro. Tem uma coleção de máquinas dessas, contratadas pela Vale do Rio Doce, por meio da fundação Renova, supostamente para nos ajudar. [risos]

E há algum diálogo com o povo Krenak? 
Eles [empreiteiros] não compartilham o planejamento das ações que fazem aqui dentro com a gente. Eles nos invadem. As máquinas entram, viram tudo de cabeça para baixo, e vão embora. Os engenheiros deles não conversam com a gente, não dialogam. Eu fico me sentindo invadido dentro do nosso próprio território. Por isso que eu disse que estamos vivendo uma condição de refugiados domésticos.

Todas essas atividades predatórias me lembram a imagem que falas sobre o progresso. O progresso como uma flecha. Poderia falar sobre isso?
Esse grande ecossistema da nossa Mãe Terra não tem externalidade. Por isso que eu citei o caso da mineração. Claro, têm muitas atividades que são consideradas importantes. A agricultura, por exemplo. Esta que começou nosso divórcio com Terra, quando os humanos achavam que poderiam dominar tudo. Mas depois tem um outro período que chamamos de modernidade, que ajustou os termos desse divórcio, estabelecendo uma lógica, uma racionalidade que sugere que o tempo é uma prospecção, é uma flecha.

E nós, os humanos, vamos tomar essa flecha como uma medida de sucesso, de realização, de empreendimento, onde a vida passa a ser calculada e pode ser capturada pelo enunciando de que “tempo é dinheiro”. Ora, essa ideia do tempo como uma medida e da vida como algo que pode ser controlado por um processo que pode ser calculado monetariamente, tudo isso me obrigou a refletir sobre esse descolamento que nós passamos em relação a nossa Mãe Terra.

Um contingente muito numeroso disso que chamamos de população do planeta, 7 bilhões e tanto de pessoas, vive rotinas alienadas ou alienantes, em que de manhã elas sequer olham onde estão. Não olham se o céu está nublado, se vai chover. Muitas, inclusive, nem olham o céu, porque vivem em condições urbanas e de condicionamento. Entram e saem de caixas. 

Tem um homem nativo das Ilhas do Pacífico Sul que refletiu sobre essa humanidade que vive caixinhas. Um livro dele se chama O Papalagui. É a história desses humanos que esqueceram que podem andar na terra, mexer na terra, viver na terra e que, então, decidiram viver em caixinhas. A caixinha é a moradia, o meio de transporte. Você se transporta em uma caixinha que é o carro, que é o avião, que é o metrô. Como esse autor sempre viveu em uma Ilha do Pacífico Sul e sempre viveu no sentido do corpo em liberdade, com o vento, com o mar, ele achou muito escandaloso quando o missionário o levou à Holanda na década de 1960.

Ele achou um escândalo. Saiu de uma aldeia, de um lugar que permitia observar que estávamos indo para um caminho errado. Ele observou isso cerca de sessenta anos atrás. Na mesma época em que o poeta Drummond escrevia o poema “O homem e as suas viagens”. É um poema muito bonito do Drummond e que mostra esse descolamento do corpo da Mãe Terra, como se fosse uma propulsão para ele voar daqui para outro lugar. E esse humano realizou isso, mandando as primeiras missões à Lua. Finalmente fincando a bandeira na lua. E o poema fala sobre isso.

Ele mostra o descolamento do humano do organismo da Terra quando o humano começa a cogitar colonizar outros planetas fora daqui. Mesmo uma criança já inclui no seu universo de realização a possibilidade de ir colonizar outros mundos. E isso pode ser pior do que o covid-19, do ponto de vista da distopia, pois instala no nosso ser, no nosso coração, o desejo de não estar aqui.

Seria como uma mãe, um dia pela manhã, reunir os filhos e ela sentir que os filhos estão dizendo: a gente não quer ficar aqui com você. A Terra está ouvindo isso da gente. Ela está sentindo isso da gente. E a maior parte desses filhos não estão nem aí. Eles estão mesmo a fim de ir para Marte.

Neste ano, quatro nações distintas investiram para enviar missões ao espaço. Duas eram da Europa, uma dos Estados Unidos e uma dos Emirados Árabes. Ora, em um período de pandemia, de tanta falta de perspectiva, qual o propósito de investir bilhões para enviar estações a Júpiter, a Marte e à Lua. Isso é uma prova do divórcio que a nossa humanidade fez com o corpo da Terra. É uma forçação de barra, tá? Vamos fazer de conta que exista essa Humanidade. Então, se a Terra tiver febre, eles não vão perceber.

Aí entra o discurso negacionista, de autoridades, inclusive de gente que ocupa importantes cargos em órgãos multilaterais e que tem a coragem de negar que está havendo uma mudança climática. Tem autoridades que dirigem a vida de um país inteiro e negam. Então, viver uma manhã no seio da Pachamama, da Terra, consciente dessa filiação, é um conforto diante de tanta desolação do ponto de vista ambiental e também do ponto de vista dos sonhos, de pensar mundos.

Porque tanto o progresso-flecha acerta em algum lugar quanto para nave não basta chegar, é preciso fincar a bandeira. A pergunta não é só sobre como ir para Marte, mas como dominar Marte. Por que esse desejo de dominação? Por que o desejo de dominar vem antes do desejo de conhecer? 
Alguns pensadores têm sugerido que o Homo Sapiens, essa variante que veio dar nessa humanidade que nós constituímos agora, eliminou os outros possíveis Homos, os outros parentes dele. Quer dizer, ele é um exterminador [risos]. Ele é. E bem-sucedido. Aquele ideia horrorosa do cinema de produzir um Exterminador do Futuro é uma metáfora sobre o homem. O ser humano é o exterminador do futuro em certo sentido.

Inclusive, porque não existe futuro – ele é uma construção totalmente mental. O que existe é esta manhã. Entre 8h40 e 10h da manhã que nos possibilita respirar, olhar, sentir o que tem ao nosso redor. E isso constitui um presente. Não existe esse futuro no qual o Homo Sapiens quer fincar uma bandeira e dominar. É uma ilusão.

Em algumas tradições, essa pessoa vai ser convidada a meditar, a esvaziar a mente para experimentar um sentido de estar presente, em vez de estar buscando outro lugar, fugindo para outro lugar.  Em vez de buscar um lugar para domínio, é necessário esvaziar esse espaço do domínio e ficar no presente. É difícil, mas talvez seja o exercício mais necessário para esse tempo de pandemia. 

Ele vai nos permitir concluir que, estando aqui e agora, não importa o amanhã. O amanhã não está à venda. Porque, quando você cogita que você pode fazer alguma coisa amanhã, você já está vendendo o amanhã.

Em Ideias para Adiar o Fim do Mundo, tu falas sobre como é muito presente, especialmente dentro dos povos indígenas, a tradição de cantar e dançar, de fruir com a vida. Muitos povos resistem no cantar e dançar a essa lógica da dominação e do progresso. Qual o papel da alegria, desse corpo que dança e canta? 
Esse cantar e dançar tem uma qualidade sensível que é de não buscar nada. Você não canta e dança para alguma coisa. Uma imagem que a gente poderia compartilhar é como um Dervish: ele está girando, fazendo aquela dança dele, e não está indo a lugar algum. Ele está centrando, buscando um eixo no qual se esvazia a própria ideia de tempo e de espaço. É um movimento que dança até zerar o espaço e o tempo. Como se fosse um peão. E não é a busca de algo, porque pode parecer que essa dança esteja buscando uma experiência de êxtase, tipo o carnaval. Não é desse canto e dança que a gente está falando. É dele também, porque ele é uma celebração e uma festa, só que produzida.

Aqui nós estamos falando de um cantar e dançar para suspender o céu, para instaurar outras subjetividades, outros campos de experiência sútil. É como meditação. Não é como algo que vai acontecer depois. É aqui e agora.

O que tu aprendeste sobre o sonho e o sonhar com os teus mais velhos? 
Eu aprendi com os meus mais velhos que o sonho é uma instituição vasta. Se uma pessoa é orientada e introduzida nesse mundo dos sonhos, ele vai poder viver a vida toda – mesmo que viva 100 anos –  sem nunca exaurir esse campo de subjetividade, de expansão. O sonho é educativo e promove o que estávamos falando antes, a alegria. Ele anima a experiência da vida como uma evolução, evoluindo de vários estágios, inclusive do corpo. Porque a experiência do corpo deixa de ser só física e passa a ser sensorial. No sonho, é o seu espírito que vai cantar e dançar, mesmo que seu corpo esteja descansando, dormindo. Esse sentido do sonho vai abrir possibilidades singulares para cada indivíduo. Não dá para você imaginar que exista um manual de sonhos. Isso não existe. Se alguém quiser te vender um manual de sonhos, não compre.

Tu contas que a gente “respira e sonha com a Terra”. Com o que sonha a Terra? 
O sonho da Terra é uma metamorfose. O que é pedra vira borboleta, o que é pau vira vento, o que é vapor vira chuva, as nuvens despencam em tempestade. Toda essa fantástica movimentação da vida é o sonho da Terra. É a transformação, a metamorfose. Tem um autor que começou a ser divulgado no Brasil agora que se chama Emanuele Coccia. Ele é autor do livro Metamorfose. É um livro que estou considerando uma leitura muito bacana porque ele consegue nos dar um roteiro para entender esse maravilhoso organismo.

A vida é um organismo. A Terra é uma materialidade dessa vida. Nosso corpo, assim como o de uma formiga ou de uma borboleta, é a materialidade da vida. A vida passa na gente e vai para outro lugar. Ela não fica parada em lugar algum. Esse sonho da terra é essa vida. A vida maravilhosa. E ela não tem fim.

O que Metamorfose traz é uma leitura sobre o darwinismo, sobre a evolução, contrária à ideia comum de que o mundo foi criado – a ideia criacionista, a ideia de que o mundo foi criado e que os humanos receberam o condomínio do mundo para o predar. Essa é a narrativa ocidental. Mas têm narrativas de outros povos que podem sugerir que nós tivemos diferentes evoluções e origens, que viemos justamente do sonho da Terra. Esse sonho vivo da Terra.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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