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Ainda o Velho Chico

Ainda o Velho Chico: Considerações sobre o Projeto de Transposição

A Controladoria-Geral da União (CGU) realizou uma auditoria no Projeto de Transposição do Rio São Francisco e divulgou recentemente seu relatório. O documento merece algumas considerações:

A obra da transposição do Rio São Francisco sempre teve um viés muito mais político que social ou científico. O empreendimento, que envolve as grandes empresas construtoras e as grandes empresas de engenharia elétrica do Brasil, tem na sua base um alicerce falso, pois fala que seria realizada para atender as necessidades das populações rurais, cujas produções agrícolas e criações de animais padecem na época da estação seca.

Na realidade, este quadro continua e foi acentuado com as obras da transposição. O alicerce é falso, porque esconde desde o início o real propósito da transposição, que era patrocinar grandes projetos de irrigação dos grandes latifundiários do Nordeste, padrinho e patrocinadores dos coronéis da política regional, cujo modelo é o mesmo desde o início da colonização.

Portanto, o relatório da CGU, sobre a sustentabilidade da transposição do rio São Francisco não traz, para os mais esclarecidos, nenhuma novidade. Todos os estudiosos da bacia do São Francisco, bem como os conhecedores da dinâmica do rio, alertaram através de audiências, publicações e movimentos, quanto aos riscos da execução desse projeto.

Infelizmente, a classe política se fez surda, não deu ouvidos. Só não ficou muda porque expressava as opiniões de burocratas “geniais” que os alimentavam com argumentos surgidos entre quatro paredes e totalmente desprovidos de conhecimentos concretos.

O relatório da CGU, que agora critica a falta de planejamento para garantir a manutenção e sustentabilidade, teria que ser convincente e questionador antes de as obras iniciarem.  Teria que ser ouvida a comunidade científica brasileira, teria que conhecer a dinâmica dos rios do Cerrado e sua realidade, também deveria ser conhecida a realidade e a experiência dos ribeirinhos.

Infelizmente, a classe política se fez surda, não deu ouvidos. Só não ficou muda porque expressava as opiniões de burocratas “geniais” que alimentavam seus integrantes com argumentos surgidos entre quatro paredes e totalmente desprovidos de conhecimentos concretos.

No entanto, o relatório também traz falhas horríveis em relação ao conhecimento de toda a bacia do São Francisco. Foca só em problemas locais, não tem visão da totalidade.

Todo trabalho de planejamento ambiental e organização do espaço que não leve em consideração a história evolutiva dos elementos envolvidos e que não considere as vocações regionais traz como consequência problemas de difíceis soluções, alguns irreversíveis.

Uma vez surgidos tais problemas, procuram-se soluções paliativas como tentando curar uma ferida apenas cobrindo-a com um esparadrapo. Como é o caso da resolução ANA (Agência Nacional de Águas) 1043, de 19/06/2017, denominada “Dia do Rio”, cujo objetivo é reforçar as ações que vêm sendo adotadas para preservar os estoques nos reservatórios da bacia do rio São Francisco.

A resolução determina que as captações de água da bacia sejam proibidas todas as quartas-feiras, exceto para abastecimento humano e animal.

A resolução da ANA deixa uma brecha ao não incluir de forma absoluta os corpos hídricos que não são considerados como domínio da União, mas que integram a bacia do São Francisco e são vitais para a perenização deste rio. Embora deixe claro que serão feitas articulações com os estados e comitês da bacia, sabemos pela prática que essas medidas são inoperantes.

Aparentemente, essa medida, que estabelece o dia do Rio, parece boa. É, mas não é. Ao proibir a retirada da água em alguns trechos específicos por empreendimentos agropastoris e industriais, a resolução visa preservar água para os reservatórios, que por sua vez irão alimentar a geração de energia e outras defluências danosas, como é o caso dos canais da transposição.

Portanto, se penetrarmos além das aparências, vamos notar que a resolução deixa falhas em não entender a bacia hidrográfica dentro de sua totalidade, da mesma forma que deixa dúvidas quanto a quem, na realidade, serão os beneficiados por tais medidas.

Outro ponto obscuro é a restrição aos cursos d’água superficiais, demonstrando total desconhecimento dos ciclos hídricos regionais, pois não faz menção às águas subterrâneas, tão ou mais importantes que as águas superficiais. Parece que o ciclo hidrológico se restringe às chuvas, o que não é verdadeiro. Portanto, é importante considerar a utilização das águas subterrâneas nos processos de irrigação, efetuados através de poços artesianos.

A resolução que cria o dia do Rio é um exemplo claro da falta de planejamento e de conhecimento dos processos que envolvem o rio São Francisco. Também pode ser citado como exemplo de falta de planejamento a ausência de conhecimento da ocupação humana regional.

Em 1972, no Primeiro Simpósio sobre o Cerrado, já chamávamos a atenção para a preservação do Chapadão Ocidental da Bahia, até o limite com as cristas do Bambuí, hoje limitando com os Estados do Tocantins e Goiás. Pois as águas subterrâneas naquela época ali existentes seriam uma grande reserva de água potável para o Brasil.

Mas não foi isto que aconteceu. Por serem consideradas erroneamente “terras devolutas”, o governo federal as repartiu para grandes empresários nacionais e internacionais, que recebiam no mínimo 25.000 hectares – e a única coisa que deveriam dar em troca era o desmatamento da região. Assim, por falta de conhecimento e de planejamento adequado, começou essa nova ordem territorial, que em pouco tempo traria um quadro irreversível de prejuízos ambientais e sociais para a região.

No caso específico dos alimentadores do rio São Francisco, alguns nascem em Goiás, como é o caso da Lagoa Feia, no município de Formosa, que contribui com vários afluentes do rio Paracatu. Outros nascem no Jalapão, em Tocantins, caso do rio Preto, mas a grande parte nasce no Espigão Mestre, início das campinas, baianas, mineiras e piauienses.

Pois bem, com a implantação deste novo modelo de organização territorial iniciou-se o maior processo de desmatamento no Brasil, feito a correntões. Foi só uma questão de tempo para que as nascentes, não só dos córregos, mas também dos rios, começassem a migrar das partes mais altas para as mais baixas, e alguns córregos secaram totalmente.

Por que isto aconteceu? Porque sem a vegetação nativa a água da chuva não penetrava mais como anteriormente e não recarregava os aquíferos, e estes foram baixando de nível, num processo contínuo. Embora o índice pluviométrico permanecesse o mesmo.

O curioso nesta situação é que ainda não haviam sido desenvolvidas tecnologias para a correção completa dos solos regionais, por isso as plantações iniciais, com eucalipto e pinheiros, não deram certo. Tempos depois é que foram aperfeiçoadas as tecnologias que permitiram o plantio de várias espécies, utilizando-se para isto calcário específico, muito adubo químico e uma quantidade imensa de agrotóxicos.

Muitos proprietários abandonaram as iniciativas ou venderam as terras para outros grupos de empresários, que, com a utilização de novas tecnologias, foram-se apropriando de áreas ainda maiores. Essas tecnologias, associadas à época a uma fartura de água, logo permitiram o avanço das fronteiras que cada vez produzia mais e despertava a ganância de muitos produtores, que foram diversificando suas culturas.Ainda o Velho Chico

Com a expansão da exportação, esse processo tornou-se uma corrida incontrolável, atraindo para o local um capital dinâmico e predador, utilizando como discurso o enriquecimento fácil e a fartura de empregos. Ambos os fatores não aconteceram, primeiro porque os grandes proprietários, que não conheciam a região, expulsaram das terras as pessoas que tradicionalmente as usavam sazonalmente para a criação de animais bovinos e equinos.

Num segundo momento, com a mecanização, tirou do campo aquelas pessoas que acreditavam num emprego duradouro. Os empregos tornaram-se sazonais e eventuais, sem carteira assinada e sem garantia. Num terceiro momento, comunidades existentes nos gerais, que praticavam a agricultura familiar foram totalmente desestruturadas.

Esse fenômeno gerou uma situação esdrúxula, pois os camponeses, ao serem expulsos das terras, foram-se agregando ao redor dos postos de serviços, implantados ao longo das rodovias, para dar sustentação aos novos empreendimentos. Os homens trabalhavam irregularmente em qualquer tipo de serviço para sobreviverem, as mulheres mais vividas trabalhavam como domésticas e as mais novas foram-se prostituindo, nos dinâmicos postos de serviços que da noite para o dia se transformavam em verdadeiros polos urbanos.

Só para citar o exemplo do oeste da Bahia, vejam o caso da cidade de Luiz Eduardo Magalhães, que há bem pouco tempo era só um posto de gasolina; vejam Roda Velha, que era somente um ponto de parada; vejam o exemplo de Rosário do Oeste, que até ontem era somente Posto do Rosário, e por aí vai.

Portanto, os rios foram secando em função do desmatamento, o desaparecimento de córregos menores e lagoas já vem acontecendo desde início da década de 1980. Eu mesmo levei à região várias emissoras de televisão de nível nacional e internacional, alertando para a situação. Foram mais de 16 programas a nível nacional e internacional.

O grande poeta, escritor, gênio e músico Elomar Figueira de Melo já alertava, através de suas crônicas musicais, o que estava acontecendo no Sertão-de-Dentro, como ele denomina os Gerais, mas os políticos do litoral nunca se atinaram.

Outra coisa importante a salientar é que as cidades e dezenas de povoados ao longo do Corrente foram o berço de pessoas de expressão internacional, intelectualmente falando, como o escritor  Ozório Alves de Castro, que inspirou Guimarães Rosa; como o escritor, educador e cientista político Clodomir de Morais, o único brasileiro a desfilar em carro aberto  com Yuri Gagarin, além de criar várias Universidades mundo afora; como Mestre Guarany, criador das imortais carrancas do São Francisco; como Raimundo Sales de Correntina, exímio inventor.

Essas pessoas, só para citar algumas, aprenderam observando os rios que passavam. Por isso o rio, para essa imensa população, é muito mais sagrado que se imagina. E a manifestação e a revolta do povo de Correntina, acontecida recentemente nas fazendas do rio Arrojado, já estava escrita nas estrelas, como nos canta Tetê Espindola.

E, se providências não forem tomadas no sentido de devolverem à população o pouco que lhes resta de mais sagrado, outras manifestações semelhantes acontecerão nas regiões do Cerrado, pois todos nós padecemos do mesmo mal.

Outra coisa a frisar não é a falta de chuvas que provoca tal situação, e sim o rebaixamento dos aquíferos. Além do que, as águas das chuvas que precipitam encontram o solo desprotegido, o que faz com que o escoamento seja mais rápido e o transporte de sedimentos aumente de forma desproporcional, avolumando-se o assoreamento.

É o início do fim…

Para finalizar, muitos me perguntam: o que tem que ser feito agora?

Para responder esta questão eu teria que enumerar vários pontos, o que tomaria muito espaço e não é este o caso no momento. Mas construir um caminho para fortalecer ou implantar uma educação criativa e a pesquisa que leve em consideração as vocações regionais pode ser a agulha da bússola. O prejuízo já ocorrido, este é irreversível, dentro dos parâmetros de conhecimento que atualmente possuímos.

ANOTE AÍ:

Altair Sales Barbosa – Arqueólogo. Excertos do livro “O Piar da Juriti Pepena – Narrativa Ecológica da Ocupação Humana no Cerrado”.  Sales, Altair [et al]. Editora PUC-Goiás, 2014.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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