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Amazônia sem lei

Amazônia sem lei

É cada vez menos verdade se dizer que é a lei da selva que prevalece na Amazônia. Foi assim em outros tempos. Na floresta tropical, a abundância de vida e a intensidade da luta pela sobrevivência tornam mais evidente a presença da violência. Essa violência, porém, não difere, em essência, daquela destinada por sociedades que se consideram “civilizadas” aos migrantes e outras populações de origens geográficas, culturais, políticas ou sociais diversas. Mesmo assim, associamos a palavra “selvagem” à prática deliberada da violência.

Por Márcio Santilli/via Mídia Ninja

A arqueologia contemporânea ensina que a ação humana sempre foi protagonista na produção da biodiversidade, desde que os seres humanos vivem nela e dependem dela. A ciência tem demonstrado que a Amazônia é, também, produto dessa vivência, o que deixa evidente que a associação entre selva e violência – a noção de “selvageria” – é mais colonial do que propriamente humana. É mais fruto de uma estranheza, uma exterioridade.

Não há dúvida de que a floresta impôs e continua impondo forte resistência ao padrão ideal de ocupação colonial, fundado no seu consumo mercantil e, afinal, na sua supressão. Se considerarmos a persistência da violência colonial contra a floresta, intensificada pelo avanço tecnológico, é surpreendente que florestas ainda existam, embora cada vez menos. Nesse processo, o que fica mais evidente é que a selvageria, no sentido da violência, é o próprio desmatamento. E que a vida, em sentido amplo, depende do que resta das florestas.

Selva!”

A página do Exército no Facebook ensina que a saudação “Selva!”, comumente usada entre os militares, teve origem na frequência com que os motoristas dos veículos militares repetiam esse brado para indicarem o seu destino, na portaria do Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus. Nunca houve uma guerra na selva nem em Manaus. A indicação dos motoristas era de que o seu destino estava além do enclave urbano. A saudação também vai além, expressando a disposição de enfrentar as agruras da selva.

O Exército vale-se do poder legal de convocação, muito mais efetivo do que o das demais instituições públicas, para garantir alguma presença do Estado na região amazônica. Presença de um Estado estruturado a partir de fora da selva, ou da Amazônia, que não foi constituído a partir das formas próprias de organização das populações originais. Embora o censo do IBGE considere como essencialmente rurais 85% dos municípios da região, o poder político nos estados se articula a partir de 20 cidades, onde vive a metade da população e a maioria dos eleitores. A maior parte do território e os que vivem nela estão à margem das estruturas e dos investimentos públicos.

A presença do Exército vem sendo reforçada e aporta recursos e benefícios em algumas regiões de fronteira. Também é crescente o recrutamento local de efetivos, inclusive de indígenas. Porém, a leniência dos governos diante da predação organizada dos recursos naturais e a sucessão de assassinatos na Amazônia escancaram a ineficácia da presença militar para conter o avanço da criminalidade, mesmo nas regiões de fronteira, e para garantir a paz e a segurança dos que vivem lá.

Nos últimos anos, valendo-se da impunidade, tomou proporções inéditas a organização da grilagem de terras públicas e da invasão de terras indígenas e de unidades de conservação, associadas à exploração predatória e intensiva dos recursos minerais e florestais. A violência é um dos seus resultados, assim como o aumento do desmatamento a cada ano.

Operacao contra garimpo TI Kayapo Felipe Werneck Ascom Ibama

Grupo Especializado de Fiscalização (GEF) do Ibama realiza operação de combate a garimpo ilegal de ouro na Terra Indígena Kayapó, no estado do Pará, Brasil

Investigações recentes da Polícia Federal sobre garimpos predatórios nas terras Yanomami (AM-RR), Munduruku e Kaiapó (PA), assim como sobre os assassinatos recentes, no Vale do Javari (AM), do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Don Phillips, mostram o protagonismo do narcotráfico, que lava dinheiro e se vale da logística da produção predatória, controlando extensão crescente da Amazônia.

Também estão sendo apuradas as relações entre essas engrenagens do crime organizado com empresas formalmente constituídas, que legalizam a produção predatória nas respectivas cadeias produtivas, e com políticos e governantes. Essas redes de interesses criminosos permeiam as pressões, no Congresso Nacional, pela legalização da grilagem de terras e da predação mineral em terras indígenas. Assim como permeiam a agenda do presidente Bolsonaro, com visitas a garimpos e a presença dos envolvidos nas suas lives e em outros eventos oficiais.

Lula lá

Se as eleições de outubro confirmarem a vitória do Lula, indicada nas pesquisas, será este o tamanho da bronca: desmontar as redes de formação de milícias da Amazônia. A situação requer, como emergência, o comando da inteligência policial e militar sobre as forças. Como estratégia, impõe priorizar investimentos em projetos das populações amazônicas marginalizadas, que ainda garantem o que há de floresta em pé.

Lula pretende indicar um civil para o Ministério da Defesa, criar um ministério para assuntos indígenas e uma secretaria especial para orientar o desenvolvimento científico e tecnológico da Amazônia. Ele tem reiterado que vai reprimir o garimpo predatório em terras indígenas e retomar a política de redução do desmatamento. Desarticular as quadrilhas da predação organizada será uma condição de viabilidade para o seu programa de governo.

Operacao contra garimpo em Altamira Felipe Werneck Ascom Ibama

Operação contra garimpo na Terra Indígena Mundurucu (PA) | Felipe Werneck / Ibama

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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