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ARTESANATO INDÍGENA: CONTRADIÇÕES E DESAFIOS

Artesanato Indígena: contradições e desafios entre tradição e demanda de mercado   

O “inverno” amazônico está em pleno auge, trazendo chuvas e alagações recordes no Juruá, desabrigando muitas famílias e gerando prejuízos nos roçados de algumas terras indígenas da região

Por Jairo Lima 

Nesta semana estará ocorrendo, na Terra Indígena Puyanawa, o II Encontro da Associação de Artesãos e Artesãs do Juruá, que reunirá participantes de mais de vinte Terras Indígenas. Como parte da preparação e planejamento do encontro, participei de uma reunião com os dirigentes da associação, a superintendência do IPHAN/Acre e a Defensoria Pública de Cruzeiro do Sul.

Na pauta, alguns pontos a serem refletidos durante o encontro como, por exemplo, os caminhos legais e jurídicos que possam dar mais segurança ao trabalho e comercialização dos produtos dos artesãos e das artesãs indígenas.

Essa “segurança” vem ao encontro de evitar situações que, na opinião deles e delas, além dos constrangimentos, trazem prejuízos e discriminam ainda mais os .

São situações como apreensões, por parte de algumas instituições de controle e fiscalização, dos artesanatos feitos de penas, dos rapés e, em casos extremos, até das indumentárias pessoais dos artesãos e das artesãs, como o cocar ou demais adereços, sob o pretexto de se estar combatendo crimes ambientais.

Artesanato agencia.ac .gov .bragencia.ac.gov.br

A artesã Edna Shanenawa exteriorizou sua indignação comentando: “a gente tem o costume de aproveitar tudo de um animal. Comemos a carne e usamos suas penas, pele ou osso para fazer nossos artesanatos. Isso é diferente de simplesmente matar o bicho para usar suas partes para fazer artesanato. Precisamos de uma maneira de proteger isso, para não sermos marginalizados como todo mundo”.

Também foi conversado sobre problemas iguais vividos por indígenas quando viajam para participar de rituais ou para divulgarem sua cultura, transportando consigo as medicinas tradicionais como o Huni, a sananga e o . Temas complexos e muito delicados.

Veremos que reflexões e caminhos serão propostos ao final do encontro. Certamente a amiga Raial Puri, que está participando do evento, trará novidades em breve.

Mas esse assunto introdutório serve-me de gancho para que eu possa refletir aqui sobre essa questão, externando o que penso a respeito, pensamentos esses que em muitas reuniões com lideranças foram postos na roda de conversa.

Eu tenho fascinação e apreço indescritível por peças artesanais indígenas e africanas. Vejo nelas a essência da energia de seus criadores, como se servissem como invólucros de energia positiva e revigorante.

Artesanto socioambiental.orgsocioambiental.org

Tenho em minha residência peças artesanais das mais diversas – cerâmicas, madeira, fibras, contas, sementes, ossos, plumas, etc, colecionadas ao longo dos últimos vinte anos. Muitas destas – pulseiras, colares, bandanas – são constantemente usadas no dia-a-dia, tanto por mim quanto por minha esposa.

Meus filhos também se acostumaram com esses artesanatos e apreciam usar algumas, principalmente as chamadas “bandanas” Kaxinawá. Acredito piamente que esse princípio, o de usar e possuir peças tradicionais, é que dão sentido em tê-las.

Todas essas peças artesanais tem uma coisa em comum: são tradicionais e originais. Ou seja, são peças em que foram usados os métodos e, muitas vezes, as matérias primas tradicionais em sua feitura. Por exemplo, uso já há muitos anos uma linda pulseira Huni Kuim, que possui um kene tradicional (grafismo tradicional).

Essa pulseira é um kene kuin, ou seja, é uma “peça verdadeira” (ou desenho verdadeiro), pois foi idealizada e feita por uma Huni Kuim que, segundo a tradição daquele , é quem recebeu todos os mistérios referentes aos desenhos e rituais tradicionais que caracterizam e diferenciam seu Povo dos demais. Assim como os Huni Kuim, muitos dos demais povos do tronco Pano carregam consigo essa mesma mística.

Tenho um kitarentsi (cushma – vestimenta tradicional) e um jogo de arco e flecha Ashaninka, que ganhei faz muito tempo. Sempre que uso o kitarentsi, nos dias frios, sinto realmente a energia e a simbologia mostrada em seus desenhos tradicionais, reportando-me a pensamentos e lembranças muito profundas.

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Uma vez que a venda de artesanato tornou-se parte da chamada economia indígena, e é responsável por parte da das famílias, por vezes, algumas “adequações” se fazem necessárias, como a utilização de matérias prima diversas e sintéticas, ou que não são originais da aldeia como, por exemplo, os fios de algodão usados para a feitura de roupas e demais peças.

Também, algumas peças antes essenciais nas comunidades como o arco-e-flecha e as cerâmicas, conforme caíram em desuso no cotidiano, foram adaptadas para um modelo mais “comercial”, valorizando mais seu aspecto visual que o utilitário. Esses artesanatos não são, pelo menos visualmente, melhor ou pior que os citados mais acima, vindo a serem até mais “acessíveis” para aquisição. Não tem nada de errado com essa prática.

Não vejo problema algum nesse processo de manufatura “comercial”, desde que esse processo não venha de encontro à manutenção de saberes tradicionais desta função, prejudicando-o.

Cada vez mais, em algumas comunidades, os verdadeiros conhecedores e mestres (sejam homens ou ) estão perdendo espaço para os processos de “produção em série” de peças artesanais.

Explico: muitas peças tradicionais são feitas dentro de um processo que envolve desde a preparação espiritual e ritualística até sua feitura física, propriamente dita. Claro que esse processo tradicional é mais demorado e, ao final, a quantidade de produção é pequena, o que, em alguns casos, não atendem “à demanda”.

Assim, esses mestres vão “ficando pra trás”, de maneira que corre o risco de se ver perder os conhecimentos práticos (pois o teórico, em muitos casos, está registrado em documentos antropológicos) desta arte. Vejam bem, é uma arte, por isso chama-se “artesanato”.

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Também vejo, no caso do Acre, cada vez mais pessoas, grupos ou pequenas empresas que trabalham com o comércio artesanal, buscando mais fornecedores nas comunidades indígenas, e, nisso, sugerindo ou mostrando técnicas e peças mais “atraentes” aos seus clientes em potencial.

É preciso ter cuidado com isso, pois, se o olhar é somente o comercial, perde-se a oportunidade de se valorizar o verdadeiro conhecimento, de maneira que tal prática transforma-se, de certa maneira, em mais um processo de descaracterização cultural. O interessante é que muitos que assim procedem nas comunidades nem se dão conta disso.

Tenho acompanhado, à distância, muitas dessas incursões comerciais dos “parceiros” das comunidades indígenas e, em alguns casos, observado os produtos oriundos destas incursões sendo comercializados através dos sites destes parceiros.

Em muitos casos, o resultado destas produções artesanais são, em minha opinião, somente dami (termo Huni Kuin para algo que não é da tradição) sem o yuxin (espírito”) do povo.

O problema que vejo aí não se trata somente de se utilizar matéria prima ou técnicas mais qualificadas na produção, mas, sim, de juntar tudo isto para a criação de produtos que não refletem verdadeiramente a cultura material ou imaterial do povo indígena, mas que somente foram feitas por indígenas. Sacou a questão?

Seria muito interessante que esses parceiros fomentassem e incentivassem que fossem feitas, além das de cunho mais “comercial”, peças seguindo estritamente os processos tradicionais de feitura, mesmo que seja em pequena quantidade, como parte da produção a ser comercializada em suas lojas e sites.

Certamente, esta iniciativa traria muito mais valor tanto ao parceiro, quanto às peças produzidas, pois assim como eu, acredito que muitos têm interesse em artesanatos tradicionais (em sua essência e no processo de feitura).

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Pois bem.

Noutro polo temos comunidades que procuram ater-se somente em processos tradicionais de produção artesanal, sem que haja uma “pressão” comercial para isso.

Para citar algumas, que comumente transitam no mercado de artesanatos, os Ashaninka do Amônia, algumas comunidades Huni Kuim, Marubo e Yawanawá, são bons exemplos destas práticas.

Os processos de feitura artesanal destes buscam manter, em grande parte (ou totalmente em alguns casos) as características tradicionais que agregam um valor todo especial e “real” aos seus produtos, ou seja, o “espírito” do artesão e do Povo a que ele pertence.

Claro que o resultado disso reflete-se no preço do produto. Eu já presenciei a venda de uma rede tradicional Huni Kuin, da TI Rio Breu, feita dentro de todas as prescrições tradicionais (que vão da colheita do algodão ao tingimento final), tendo como resultado uma peça única, forte, bonita. Seu preço de venda foi de R$ 1.200,00.

Pode parecer caro, mas essa rede é única, pois cada peça artesanal é uma arte única que possui sua própria energia, sua própria identidade, seu próprio yuxin. Eu sempre procuro encomendar peças artesanais feitas de maneira tradicional. Mesmo que demore meses para recebê-la, compensa o resultado final.

Vale a pena incentivar esse tipo de produção, nem que seja em menor escala e complementar à “produção e série” de peças, a fim de se valorizar ainda mais a cultura tradicional e, também, evitar que o conhecimento sobre a produção destas artes se percam, como o que ocorreu em muitas comunidades.

Perder esse conhecimento é perder parte dos yuxin que compõem a essência existencial do povo indígena, pois estes se mesclam e se relacionam com o seu em todos os aspectos, de maneira que o utilizam em todos os âmbitos possíveis, sendo os artesanatos a herança física e visual desta relação.

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Agora, tem algo que me incomoda e que ultimamente vem se tornando cada vez mais comum: comercialização de cocares e penas de aves raras. Sim, está virando moda os “gurus” e pseudomestres nawa (não-índio) demandarem das comunidades ou de indígenas que se encontram visitando as , que negociem cocares ou penas soltas de Gavião Real (Harpia) ou de Araras.

Vez ou outra vejo compartilhado, via redes sociais, pessoas (nawa) ligadas a correntes espirituais ou “caminhos” místicos utilizando penas soltas e até mesmo cocares completos feitos a partir da matéria prima destas aves, ou ainda, comercializando acessórios para uso de rapé (curipe e tipi) feitos a partir de ossos de animais e aves que, além de estarem em constante risco de , também estão entre os mais sagrados para os povos indígenas.

Já escrevi em texto anterior o tão bizarra e perigosa é essa prática. Afinal, se esses “gurus” ou “iniciados” ou “mestres” realmente estão conectados com a mãe natureza e seus espíritos, não utilizariam estes acessórios que, de certa maneira, macaqueiam-nos diante da “natureza divina” e ofendem os yuxin representados por estes animais, ostentados nestes acessórios. É preciso se ligar, galera.

Citei isso, pois de certa maneira, e infelizmente, a venda destes produtos “místicos” ou identitários vem crescendo e, muitas vezes, confundem-se com outros produtos, esses sim, artesanais e voltados à comercialização ou troca. Não quero ser purista e hipócrita de dizer que vender cocar é errado, nada disso.

No entanto, não creio ser certo incentivar os indígenas que viajam para representar sua cultura a venderem seus cocares ou acessórios feitos a partir de animais em risco de extinção.

Cocares, ou outros acessórios de plumas e peles podem ser vendidos sim, desde que sejam oriundos de práticas sustentáveis da comunidade, retirados de animais consumidos em seu cotidiano e não somente caçados e mortos tendo como objetivo somente a venda de produtos feitos de suas partes (penas, pelo, ossos, etc).

Os parceiros e demais envolvidos no assim chamado “mercado” de peças artesanais indígenas devem buscar discutir estas questões com as comunidades e as instituições de apoio e controle devem, por seu lado, desenvolver propostas e projetos que visem assegurar os direitos de uso e projetos voltados à manutenção de práticas sustentáveis que beneficiem não somente as comunidades indígenas, mas que também contribuam com a manutenção do meio ambiente com sua rica fauna.

Não vejo ser sensata ou até mesmo correta a repressão que vem sendo realizada por algumas instituições contra os artesãos indígenas que estão vendendo seus produtos nas grandes cidades como , Brasília e Rio de Janeiro.

É preciso, também, maturidade dos gestores destes órgãos em procurar discutir com as comunidades e as instituições e parceiros que as acompanham, buscando estratégias e processos que evitem a criminalização e marginalização do indígena artesão.

Esse assunto não se encerrou e em breve retornaremos a ele, assim como outros que já tratei nesse espaço de reflexão.

Finalizo externando minha opinião quanto à proposta de um certo Deputado Federal sobre a liberação da caça esportiva no Brasil. A meu ver, o que o Brasil precisa é de ferramentas e apoio para preservação de nossas florestas, com sua fauna e flora. E não de um bando de bocoiós com armas caçando e depredando ainda mais este ambiente. Se liga Deputado! Vai plantar uma árvore meu irmão!

Jairo Xapuri

Jairo Lima é indigenista e escritor. Seus textos são publicados semanalmente em seu blog cronicasindigenistas  Matéria publicada originalmente em 07 de fevereiro de 2017.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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