AS CRIANÇAS GUARANI-KAIOWÁ E AS AVÓS DO BRASIL

AS CRIANÇAS GUARANI-KAIOWÁ E AS AVÓS DO BRASIL

As crianças Guarani-Kaiowá e as avós do Brasil

” O quanto se pode aprender com a força que está guardada no e em sua língua, sobretudo sua capacidade de resistir à opressão” (Walter Benjamin – A hora das crianças).

Por José Bessa Freire/TaQuiPraTi 

Oh! avós e mães deste Brasil varonil, suspeito que vós tereis interesse em conhecer como os Guarani-Kaiowá categorizam as crianças de suas aldeias.

Tal suspeita surgiu quando, numa live com minhas irmãs, lhes falei dos tipos de descritos na dissertação de mestrado de Hu´y Ryapu, nome de batismo de Valentim Pires, defendida na na (MS).

Minhas oito irmãs, todas elas avós, caíram na tentação de usar o modelo guarani para checar o perfil de suas netas e netos e descobriram, encantadas, que ele permite tipificar também a sua própria prole, extrapolando a aldeia.  

Segundo Valentim, a sabedoria guarani, que durante séculos observou o comportamento das crianças, categorizou-as em quatro tipos: as sábias, as inocentes, as tristes e as observadoras. S

e mães e avós não-indígenas buscarem essas afinidades em seus núcleos familiares, talvez encontrem o que há de universal nesta classificação, identificando comportamentos comuns a qualquer sociedade, embora a parte poética que a fundamenta esteja ancorada na ancestralidade e na cosmogonia Guarani. Essa foi a grande contribuição do pesquisador kaiowá.  

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Foto: FIAN Brasil

Tipos de crianças

As primeiras – mitã tujakue´i ha guaiguikue´i – são crianças sábias, possuem muito conhecimento e sabedoria, parecem até com o velhinho ou a velhinha que já morreram, são vistas como super inteligentes, surpreendem os pais e os parentes com sua criatividade, suas proezas e suas tiradas, com frases que assombram pela clareza e precisão. São iluminadas.

No segundo tipo – mitã tee´i – estão aquelas crianças de conduta inocente, dotadas de certa candura. É a primeira vez que vieram a este e não sabem quase nada de como é a vivência aqui na Terra.

Necessitam de criterioso acompanhamento do pai e da mãe no seu processo de desenvolvimento, que pode até retardar, mas isso não quer dizer que sejam bobas, sem criatividade.

Elas também surpreendem, pois transcendem as influências diretas da maldade e da imperfeição humana, já que a referência mais presente é aquela que trazem dos patamares celestes, de onde estão vindo pela primeira vez.

A terceira categoria é a da criança mitã ñeroyrõkue´i, que ocorre pelas expectativas dos pais, que às vezes são contrariadas. Por exemplo, pai ou mãe esperam um menino, mas acaba nascendo uma menina e a família não a recebe muito bem.

Nessa situação, a filha carrega no sangue muita tristeza. Essa atitude de rejeição prejudica o amadurecimento da criança, que precisa de um tratamento medicinal específico, com banhos e massagens realizados pelo pai e pela mãe, para ela então carregar energia sadia no sangue.  

Existe ainda um quarto tipo: as observadoras – ojapysaka. São aquelas crianças enviadas por Ñande Ru – o criador e princípio de tudo – com a missão de escutar o mundo e de testemunhar as formas de convivência que estão florescendo na Terra, para levar de volta à Morada Eterna, de onde vieram, as observações daquilo que viram.

Neste caso, essas mensageiras não conseguem viver por muito tempo e podem chegar a falecer com pouca idade. São chamadas de angelito na aldeia Pirajuy, por influência da língua espanhola.

O som da flecha

Para desvelar o mundo da infância guarani, Hu´y Ryapu (o som da flecha na língua kaiowá), conhecido na universidade como Valentim, usou vários procedimentos: 

Observou o comportamento das crianças na aldeia Pirajuy, município de Paranhos (MS), fronteira com o Paraguai, anotando tudo em seu caderno de campo; conversou e entrevistou avós, parteiras, rezadores; leu teses de pesquisadores guarani e de antropólogos e historiadores não-indígenas, além dos clássicos que abordaram o tema.

Enfim, trabalhou com duas mestrias, uma não acadêmica e a outra que buscou a academia, como observou o antropólogo Amir Geiger, em outro contexto.

Valentim recorre ao recurso da autobiografia, uma estratégia de construção e legitimação do lugar de fala dos indígenas na universidade. Ele relata a gravidez de sua mãe, o parto, o saber da parteira, o seu nascimento, a sua infância e discute como a trajetória de formação da pessoa do pesquisador se liga com o modo de ser guarani, em especial o praticado pela parentela à qual pertence.

Trata com distanciamento crítico a Missão Evangélica Unida, que através de uma enfermeira alemã se recusou a registrá-lo com seu nome guarani, impondo o Valentim em 1969, ano de seu nascimento. Meses depois a Igreja Católica colocou em dúvida a existência de São Valentim e retirou-o da lista dos santos.   

Uma reflexão sobre a colonizadora, que se opõe à pedagogia guarani, é feita por Valentim. Conta como uma missionária alemã chamada Fridigat tapou com esparadrapo a boca do seu primo Adriano Pires, já falecido e hoje nome da escola ,  por ter ele conversado em sua língua materna.

Relata sua passagem aos 13 anos pela Missão Evangélica Caiuá em Dourados, as humilhações da professora no internato – “Aqui na sala de aula não é aldeia para conversar em Guarani. Se quiser continuar volte para a aldeia” – e aborda a relação com os colegas: “Na sala onde eu estudava ninguém queria falar comigo, porque eu não sabia falar direito a língua portuguesa”.

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Foto: Egon Schaden

Aldeia Curumim

– A criança, para os Guarani, é muito importante porque ela é enviada por Ñande Ru, com uma missão aqui na Terra. Então, mitã significa criança, mitã´i é criancinha. Já kunumi , que deu curumim na língua portuguesa, pode ser traduzido como “ternurinha”. Che kunumi é “minha ternurinha”.

Com o passar do tempo, kunumi foi perdendo espaço na linguagem, substituído por mitã – escreve Valentim, para quem “o guarani hoje convive com o conhecimento ocidental (karai arandu) através de diversas formas de interação como escola, igreja, comércio, , órgãos públicos, etc” –    em contato permanente com o conhecimento tradicional (arandu ypy).

Os conhecimentos guarani sobre cuidados com o crescimento saudável da criança são abordados no terceiro capítulo, assim como a convivência entre os ore mbo’e ypy omboheko mitã e os modos de conhecimento do karai reko.

Acontece que os mais velhos perceberam que a escola feita pelo missionário e pelo chefe de posto estava a serviço da dominação para acabar com a língua e as crenças indígenas. Queriam transformar as crianças da aldeia Pirajuy em crianças diferentes seguindo a orientação imposta por outros ypy (origem, tempo espaço primordial) – diz Valentim e ao ler isso ouvimos o som da flecha disparada.

A classificação das crianças que tanto encantou minhas irmãs estaria perdida se a Missão Alemã tivesse sido vitoriosa. Lá, os Guarani eram ensinados a abandonar suas crenças e os saberes tradicionais e a negar seu jeito próprio de ser e sua identidade. Embora tenha ocorrido profundas transformações na vida guarani descritas na dissertação, eles reagiram.  

A resistência

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Foto: Ruy Sposati/Cimi

Considerando que a vida na reserva indígena era dominada e controlada pelo branco, inicialmente só restava aos Guarani – segundo Valentim – “a resistência silenciosa no procedimento denominado de oñombotavy – “fazer-se de bobo”, para que os missionários e o chefe de posto acreditassem que os Guarani estavam ‘virando’ brancos.

Mas nunca acabavam de ‘virar’ e até hoje é assim: “Todas essas formas de dissimulação são modos de proteger os nossos conhecimentos na reserva indígena de Pirajuy”.

Outra forma de resistir foi a organização dos professores bilingues e o movimento indígena. Valentim, a quem conheci na Conferência Nacional de Indígena realizada em novembro de 2009 em Luziânia, na periferia de Brasília, denunciou na ocasião o assassinato que acabara de ocorrer de dois professores – Genivaldo e Rolindo – seus colegas na Escola Municipal Adriano Pires.

Oito dias depois do homicídio, a de Rolindo, grávida, deu à luz uma criança. Uma semana depois foi a vez de a mulher de Genivaldo, também grávida, trazer ao mundo uma mitã´i.

A continua. Uma prova disso é a dissertação Ore Mbo’e ypy omboheko mitã – aproximações aos conhecimentos e práticas para a construção da criança guarani na aldeia Pirajuy, Paranhos (MS), defendida agora por Valentim Pires no Programa de Pós-Graduação em Educação e Territorialidade da Universidade Federal da Grande Dourados, diante de banca presidida por seu orientador Levi Pereira, composta por Tonico Benites, Aparecida Oliveira e esse locutor que vos fala.

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Foto: Ruy Sposati/Cimi

 

 

 

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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