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As crianças Guarani-Kaiowá e as avós do Brasil

As crianças Guarani-Kaiowá e as avós do Brasil

” O quanto se pode aprender com a força que está guardada no povo e em sua língua, sobretudo sua capacidade de resistir à opressão” (Walter Benjamin – A hora das crianças).

Por José Bessa Freire 

Oh! avós e mães deste Brasil varonil, suspeito que vós tereis interesse em conhecer como os Guarani-Kaiowá categorizam as crianças de suas aldeias. Tal suspeita surgiu quando, numa live com minhas irmãs, lhes falei dos tipos de criança descritos na dissertação de mestrado de Hu´y Ryapu, nome de batismo de Valentim Pires, defendida na segunda (31) na Universidade Federal da Grande Dourados (MS). Minhas oito irmãs, todas elas avós, caíram na tentação de usar o modelo guarani para checar o perfil de suas netas e netos e descobriram, encantadas, que ele permite tipificar também a sua própria prole, extrapolando a aldeia.  

Segundo Valentim, a sabedoria guarani, que durante séculos observou o comportamento das crianças, categorizou-as em quatro tipos: as sábias, as inocentes, as tristes e as observadoras. Se mães e avós não-indígenas buscarem essas afinidades em seus núcleos familiares, talvez encontrem o que há de universal nesta classificação, identificando comportamentos comuns a qualquer sociedade, embora a parte poética que a fundamenta esteja ancorada na ancestralidade e na cosmogonia Guarani. Essa foi a grande contribuição do pesquisador kaiowá.  

Tipos de crianças

As primeiras – mitã tujakue´i ha guaiguikue´i – são crianças sábias, possuem muito conhecimento e sabedoria, parecem até com o velhinho ou a velhinha que já morreram, são vistas como super inteligentes, surpreendem os pais e os parentes com sua criatividade, suas proezas e suas tiradas, com frases que assombram pela clareza e precisão. São iluminadas.

No segundo tipo – mitã tee´i – estão aquelas crianças de conduta inocente, dotadas de certa candura. É a primeira vez que vieram a este mundo e não sabem quase nada de como é a vivência aqui na Terra. Necessitam de criterioso acompanhamento do pai e da mãe no seu processo de desenvolvimento, que pode até retardar, mas isso não quer dizer que sejam bobas, sem criatividade. Elas também surpreendem, pois transcendem as influências diretas da maldade e da imperfeição humana, já que a referência mais presente é aquela que trazem dos patamares celestes, de onde estão vindo pela primeira vez.

A terceira categoria é a da criança mitã ñeroyrõkue´i, que ocorre pelas expectativas dos pais, que às vezes são contrariadas. Por exemplo, pai ou mãe esperam um menino, mas acaba nascendo uma menina e a família não a recebe muito bem. Nessa situação, a filha carrega no sangue muita tristeza. Essa atitude de rejeição prejudica o amadurecimento da criança, que precisa de um tratamento medicinal específico, com banhos e massagens realizados pelo pai e pela mãe, para ela então carregar energia sadia no sangue.  

Existe ainda um quarto tipo: as observadoras – ojapysaka. São aquelas crianças enviadas por Ñande Ru – o criador e princípio de tudo – com a missão de escutar o mundo e de testemunhar as formas de convivência que estão florescendo na Terra, para levar de volta à Morada Eterna, de onde vieram, as observações daquilo que viram. Neste caso, essas mensageiras não conseguem viver por muito tempo e podem chegar a falecer com pouca idade. São chamadas de angelito na aldeia Pirajuy, por influência da língua espanhola.

O som da flecha

Para desvelar o mundo da infância guarani, Hu´y Ryapu (o som da flecha na língua kaiowá), conhecido na universidade como Valentim, usou vários procedimentos:  observou o comportamento das crianças na aldeia Pirajuy, município de Paranhos (MS), fronteira com o Paraguai, anotando tudo em seu caderno de campo; conversou e entrevistou avós, parteiras, rezadores; leu teses de pesquisadores guarani e de antropólogos e historiadores não-indígenas, além dos clássicos que abordaram o tema. Enfim, trabalhou com duas mestrias, uma não acadêmica e a outra que buscou a academia, como observou o antropólogo Amir Geiger, em outro contexto.

Valentim recorre ao recurso da autobiografia, uma estratégia de construção e legitimação do lugar de fala dos indígenas na universidade. Ele relata a gravidez de sua mãe, o parto, o saber da parteira, o seu nascimento, a sua infância e discute como a trajetória de formação da pessoa do pesquisador se liga com o modo de ser guarani, em especial o praticado pela parentela à qual pertence. Trata com distanciamento crítico a Missão Evangélica Unida, que através de uma enfermeira alemã se recusou a registrá-lo com seu nome guarani, impondo o Valentim em 1969, ano de seu nascimento. Meses depois a Igreja Católica colocou em dúvida a existência de São Valentim e retirou-o da lista dos santos.   

Uma reflexão sobre a escola colonizadora, que se opõe à pedagogia guarani, é feita por Valentim. Conta como uma missionária alemã chamada Fridigat tapou com esparadrapo a boca do seu primo Adriano Pires, já falecido e hoje nome da escola indígena,  por ter ele conversado em sua língua materna. Relata sua passagem aos 13 anos pela Missão Evangélica Caiuá em Dourados, as humilhações da professora no internato – “Aqui na sala de aula não é aldeia para conversar em Guarani. Se quiser continuar volte para a aldeia” – e aborda a relação com os colegas: “Na sala onde eu estudava ninguém queria falar comigo, porque eu não sabia falar direito a língua portuguesa”.

Aldeia Curumim

– A criança, para os Guarani, é muito importante porque ela é enviada por Ñande Ru, com uma missão aqui na Terra. Então, mitã significa criança, mitã´i é criancinha. Já kunumi , que deu curumim na língua portuguesa, pode ser traduzido como “ternurinha”. Che kunumi é “minha ternurinha”. Com o passar do tempo, kunumi foi perdendo espaço na linguagem, substituído por mitã – escreve Valentim, para quem “o guarani hoje convive com o conhecimento ocidental (karai arandu) através de diversas formas de interação como escola, igreja, comércio, trabalho, órgãos públicos, etc” –    em contato permanente com o conhecimento tradicional (arandu ypy).

Os conhecimentos guarani sobre cuidados com o crescimento saudável da criança são abordados no terceiro capítulo, assim como a convivência entre os ore mbo’e ypy omboheko mitã e os modos de conhecimento do karai reko.

Acontece que os mais velhos perceberam que a escola feita pelo missionário e pelo chefe de posto estava a serviço da dominação para acabar com a língua e as crenças indígenas. Queriam transformar as crianças da aldeia Pirajuy em crianças diferentes seguindo a orientação imposta por outros ypy (origem, tempo espaço primordial) – diz Valentim e ao ler isso ouvimos o som da flecha disparada.

A classificação das crianças que tanto encantou minhas irmãs estaria perdida se a Missão Alemã tivesse sido vitoriosa. Lá, os Guarani eram ensinados a abandonar suas crenças e os saberes tradicionais e a negar seu jeito próprio de ser e sua identidade. Embora tenha ocorrido profundas transformações na vida guarani descritas na dissertação, eles reagiram.  

A resistência

Considerando que a vida na reserva indígena era dominada e controlada pelo branco, inicialmente só restava aos Guarani – segundo Valentim – “a resistência silenciosa no procedimento denominado de oñombotavy – “fazer-se de bobo”, para que os missionários e o chefe de posto acreditassem que os Guarani estavam ‘virando’ brancos. Mas nunca acabavam de ‘virar’ e até hoje é assim: “Todas essas formas de dissimulação são modos de proteger os nossos conhecimentos na reserva indígena de Pirajuy”.

Outra forma de resistir foi a organização dos professores bilingues e o movimento indígena. Valentim, a quem conheci na Conferência Nacional de Educação Indígena realizada em novembro de 2009 em Luziânia, na periferia de Brasília, denunciou na ocasião o assassinato que acabara de ocorrer de dois professores – Genivaldo e Rolindo – seus colegas na Escola Municipal Adriano Pires. Oito dias depois do homicídio, a mulher de Rolindo, grávida, deu à luz uma criança. Uma semana depois foi a vez de a mulher de Genivaldo, também grávida, trazer ao mundo uma mitã´i.

A luta continua. Uma prova disso é a dissertação Ore Mbo’e ypy omboheko mitã – aproximações aos conhecimentos e práticas para a construção da criança guarani na aldeia Pirajuy, Paranhos (MS), defendida agora por Valentim Pires no Programa de Pós-Graduação em Educação e Territorialidade da Universidade Federal da Grande Dourados, diante de banca presidida por seu orientador Levi Pereira, composta por Tonico Benites, Aparecida Oliveira e esse locutor que vos fala.

P.S. – Tanta coisa rolando nas universidades, pena que tamanha “balbúrdia” fique encerrada nos muros da academia, sem repercussão na mídia, quando o Brasil muito ganharia com sua divulgação. Foi o caso da dissertação defendida no dia 01 de fevereiro no Programa de Memória Social da UNIRIO por Aboubakar Traoré: “Narrativas e Saberes Ancestrais em Porto Novo (Benin) – Canções awón órin entre os olorin e a cosmopercepção de povos da língua Yorubá. Banca: José Bessa (orientador), Amir Geiger (UNIRIO) e Luiz Rufino Rodrigues (UERJ), para quem o mestrando “enfeitiçou o saber”, bordando com as palavras seu modo de fazer ciência.

Fotos –  Duas da aldeia Pirajuy: 1) Valentim com a mulher Silvia Medina e 2) o neto Nicofelix ao lado do filho Near Araipytã.  Outras fotos de crianças das aldeias feitas pelos guarani André da Silva Caetano, Alexandro K. Benite, Cecílio Fernandes e Cleiton Karai participantes do curso de fotografia ministrado por João Roberto Ripper e sua equipe na aldeia Itaxi em Paraty Mirim (RJ), organizado em 2017  pelo Proíndio (Uerj) em parceria com a UFMG.

Fonte: taquiprati . Fotos internas: acompanham a matéria original do professor Bessa no site taquiprati  . Foto de capa: portalgov.br. 


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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