AS LIÇÕES DOS NOSSOS TERREIROS

AS LIÇÕES DOS NOSSOS TERREIROS

As lições dos nossos terreiros

Inicialmente, é importante fazer uma reflexão breve sobre religião e tradição. Religião é um conceito construído a partir de uma visão epistemológica ocidental, judaica e cristã, ou seja, dentre tantos outros conceitos criados para distinguir “o outro”, reconhecer a si mesmo (a) como referência, como ponto de partida para compreender a existência do outro (a) com outro (a). O Ocidente também criou essa ideia de que o sagrado é representado numa religião, num sistema de religação do ser humano com o seu passado ancestral, o seu passado ontológico. 

Por Iêda Leal

Povos milenares em África foram os primeiros a construírem um sistema de irrigação da terra, o que faz com que esses povos sejam os primeiros a se estabelecerem na terra. São também os primeiros a criarem aquilo que a gente chama de sedentarismo; são, inclusive, os primeiros grupos humanos que deixaram a perspectiva nômade para se tornarem povos sedentários.

Os povos africanos constroem: cidades, sistemas de crença mais consolidados, de organização de interesse coletivo, que chamamos hoje de Estado. Uma sistemática de pensar o mundo e organizar as ideias que representam o mundo, que chamamos de filosofia (os gregos atribuíram), a busca incessante pela verdades e explicações das coisas e fatos.

Interessante pensarmos que os terreiros de candomblé são muito mais do que um espaço de promoção e propagação de uma religião de um sistema de crença. Devemos considerar os terreiros como um espaço de sociabilidade de comunidade; ali se encontram e se unem por laços ancestrais, tornando-se uma perspectiva de família. 

Tais comunidades tornam-se reconstrutoras dos seus espaços ancestrais, a partir e com a comunidade. Ali se pratica uma filosofia de vida que não encontra necessariamente paralela à forma mais ampla de exercer as nossas ideias.

Ao longo dos séculos de imposição da visão dos costumes e dos hábitos europeus, muito dessa concepção original civilizatória passou por um processo de destruição e quase eliminação desse campo de pensamento, de cosmogonia e modos de entendimento e vivência da ancestralidade. 

Segundo Muniz Sodré, para além da discussão da decolonialidade, desconstrução da mentalidade colonial que é exercida até hoje pela colonialidade do poder, do saber e do ser, depois que se cessam os processos de colonização, as marcas e práticas de colonialidade, a colonização alimenta modos de subserviência dos povos que um dia foram dominados pelo poder físico e violentados. Ainda permanecem dominados até agora por uma suposta incapacidade de construir as suas ideias a partir dos resgates dos seus próprios saberes e fazeres e da sua dignidade ancestral.

Muniz Sodré, para além de construir esse campo de pensamento da decolonialidade, nos ajuda a pensar o terreiro como esse espaço de reconstrução da filosofia e da tradição africana, dos modus daquilo que foi possível, na medida em que a liberdade estava sendo retirada. O terreiro, pois, resgata e ressignifica aquilo que é possível dos valores civilizatórios da tradição africana. Por isso, é preciso conhecer mais os terreiros, e também é preciso abraçar os terreiros.

Para além de toda a destruição que a colonialidade e a neocolonização operaram, os terreiros permitiram se constituir na continuidade dessa tradição: comer, falar, agir; além disso, resistiram e resistem. 

É muito rico pensar que os terreiros têm muito a nos ensinar. Além da sua ritualística, a cosmovisão, as possibilidades de viver e conviver com os sagrados e as ancestralidades que habitam em nós, bem como os sentidos dos múltiplos modos de se viver em comunidades tatuadas e organizadas com os sentimentos nos visíveis e invisíveis, na centralidade e circularidade das nossas humanidades.

ieda lealIêda Leal – Secretária de Combate ao Racismo da CNTE; Secretária de Comunicação da CUT-GO; Tesoureira do SINTEGO; Coordenadora Nacional do Movimento Negro Brasileiro. 

Foto: André Mellagi – Ilê Afro-brasileiro Ode Lorecy.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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