ATAQUE A INDÍGENAS NO ANO DA COP 30
Bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha atingiram crianças, mulheres, pessoas idosas, lideranças tradicionais indígenas e até a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG) na tarde do dia 10 de abril
Por Nicoly Ambrosio

A Polícia Militar do Distrito Federal e o Departamento de Polícia Legislativa atacaram a marcha pacífica do 21º Acampamento Terra Livre (ATL) – que ocorre todos os anos, em Brasília – assim que os indígenas se aproximaram do prédio do Congresso.
Em coletiva de imprensa, Célia Xakriabá afirmou que foi vítima de racismo por parte dos agentes que faziam a segurança do evento. No dia seguinte, 11 de abril, ela encaminhou uma ação ao Supremo Tribunal Federal (STF) solicitando a investigação da conduta dos policiais.
A deputada não só teve seu acesso ao Congresso impedido como negaram atendimento médico a ela e a outras lideranças indígenas – ela foi uma das atingidas pelos efeitos do gás de pimenta.
Com a presença de mais de 7 mil indígenas de 200 povos diferentes, o ATL 2025, realizado entre 7 e 11 de abril, cobrou a participação efetiva dos povos originários na COP 30, marcada para novembro de 2025, em Belém (PA), e o fim da exploração de combustíveis fósseis.
Mas a repressão policial desproporcional acabou por desviar a atenção sobre essas reivindicações. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) emitiu uma nota de repúdio. “Temos evidências de que os atos fazem parte de um contexto de violência institucional disseminada contra os povos indígenas”, afirma a nota.
Segundo a Apib, durante uma reunião convocada pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) para tratar da marcha, um participante não identificado proferiu uma fala de teor racista e de incitação à violência. “Deixa descer logo…deixa descer e mete o cacete se fizer bagunça”. A declaração foi registrada em áudio e obtida pela Apib após solicitação formal.
O que causou revolta nos indígenas é que não houve qualquer ato de vandalismo no protesto pacífico “A Resposta Somos Nós”, que fazia parte da programação do ATL. O acesso ao gramado do Congresso foi feito pelos indígenas de forma espontânea e pacífica, sem confrontos.
“A mobilização teve como objetivo a defesa de direitos constitucionais e o fortalecimento do diálogo com os Poderes da República. O Acampamento Terra Livre é realizado anualmente na capital federal, sempre com respeito às instituições democráticas. Ao longo dessas mais de duas décadas, o movimento indígena sempre colaborou e continuará colaborando para garantir que o evento ocorra de forma tranquila e segura”, diz outro trecho da nota da Apib.
RESISTIR PARA EXISTIR
Rosimere Arapaço, ativista indígena do povo Arapaço e coordenadora da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas (MAKIRA-ËTA), afirmou em entrevista à Amazônia Real que, apesar do discurso democrático do governo brasileiro, a repressão ainda age com a mesma força do período militar.
“Em pleno século 21, onde falamos da democracia, vemos a repressão ainda como se fosse da época do governo militar”, disse. “Se o governo, os braços do governo, a segurança do governo, hostiliza o povo indígena, que segurança o Brasil tem?”
Rosimere destacou que a marcha, embora pacífica, foi marcada por tensões e tentativas de silenciamento. “A hora que precisar estaremos voltando. Homens, mulheres, juventude, crianças, adolescentes, anciões, nós não desanimamos. Nós resistimos. O nosso lema sempre foi: resistir para existir”.
Segundo ela, a mobilização não é apenas para denunciar, mas também para reafirmar a existência dos povos indígenas como sujeitos de direito e de sabedoria.
“Nós estamos no governo da oposição, no governo da direita. Esse é o grande desafio do Brasil. Se o governo brasileiro não entender que os povos indígenas são os únicos que podem fazer a diferença para abrir os olhos da sociedade, para que a mudança climática pare ou amenize. A sociedade precisa aprender com os povos indígenas”, afirmou.
Outras organizações e lideranças indígenas e indigenistas condenaram o ataque e exigiram responsabilização das autoridades. “O Congresso, além de aprovar leis inconstitucionais, ataca os povos indígenas e seus próprios deputados”, repudiou em sua rede social a Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). A entidade lembra que o Congresso “deveria ser a casa da democracia”.
A ministra dos Povos Indígenas (MPI), Sonia Guajajara, em um post nas redes sociais, também criticou a atuação das forças policiais. “Meu repúdio total à inaceitável violência que vimos hoje no Congresso. Os povos indígenas merecem respeito”, disse.
Em nota, O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) classificou o uso de gás de pimenta e da força policial como desnecessário e desmedido, exigindo a apuração imediata dos fatos e a responsabilização dos envolvidos.
No mesmo dia da repressão policial, os movimentos indígenas celebravam avanços políticos obtidos nesta edição do ATL, que celebrou seus 21 anos de existência e 20 anos desde a criação da Apib. Lideranças indígenas do Brasil, Canadá e Pacífico entregaram à presidência da COP 30 uma carta que exige o fim da era dos combustíveis fósseis e a implementação de uma transição energética justa e equitativa.
A carta, coordenada pela organização internacional 350.org, recebeu o apoio de 180 organizações indígenas, ambientais e de juventudes de diferentes países. O documento foi entregue ao presidente da COP 30, André Corrêa do Lago, em uma cerimônia simbólica, com a presença da ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva, e da ministra Sonia Guajajara.
Além da carta, a Apib lançou uma proposta de NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) Indígena, elaborada a partir do acúmulo de propostas de suas organizações regionais e de base. A NDC é uma meta que cada país estabelece em relação ao seu compromisso para combater o aquecimento global.
Já o indicador indígena reforça que o debate climático precisa considerar a equidade, a autodeterminação e a participação efetiva dos povos indígenas e comunidades tradicionais na implementação da meta brasileira, no âmbito do Acordo de Paris.
O MPI anunciou, na mesma ocasião, a criação de uma Comissão Internacional para a COP 30 para que os povos originários não sejam apenas consultados, mas estejam à frente das negociações climáticas. As lideranças pedem a copresidência indígena no evento.
A comissão será presidida por Sonia Guajajara e composta pela Apib, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), o G9 da Amazônia Indígena, a Aliança Global de Comunidades Territoriais (GATC), e o Fórum Permanente da ONU sobre Assuntos Indígenas (UNPFII). É prevista a participação de outras organizações e fóruns internacionais indígenas.
Na carta final do 21º ATL, a Apib destaca a criação da Comissão Internacional Indígena para a COP-30 como “a expressão concreta do reconhecimento de um movimento que há séculos resiste, que é a contribuição indígena para o equilíbrio da Terra”.
Para a organização, a comissão é mais do que um espaço institucional, porque representa uma conquista histórica dos próprios povos indígenas, que há anos cobram por mais reconhecimento e espaço para participação efetiva nos fóruns globais.
A meta da comissão é credenciar mil lideranças indígenas na Zona Azul da COP 30 como símbolo de um processo de retomada, de presença e de poder indígena. “Com sabedoria ancestral, articulação política e coragem histórica, o movimento indígena mostra ao mundo que não há saída para a crise climática sem a demarcação das terras indígenas”, apresentou a carta.
Para a liderança Rosimere Arapaço, ações como essas indicam que o ATL continua sendo um espaço privilegiado de incidência política, principalmente para as mulheres indígenas.
“É muito importante no contexto político, nacional e internacional, onde o mundo volta aos olhares para a Amazônia. A pauta importante para a gente são as questões ambientais. Todos os povos estão com muita preocupação diante do rumo que as questões das mudanças climáticas estão afetando. A solução para tudo isso são os povos indígenas”, declarou.
DIREITOS AMEAÇADOS
O ATL deste ano aconteceu em meio ao impasse da comissão de conciliação sobre o marco temporal, coordenada pelo ministro do STF Gilmar Mendes. A comissão terminou sem acordo entre representantes do agronegócio e do governo.
Na semana do ATL, após solicitação da Câmara e do Senado, o governo federal acatou o pedido de prorrogação dos trabalhos da Câmara de Conciliação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal.
Apesar de o STF ter declarado inconstitucional a tese do marco temporal, em setembro de 2023, o tema voltou a circular no Congresso na forma de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 48/2023), imposta pela bancada ruralista, que pretende incluir na Carta Magna o “marco temporal”.
Em julho de 2024, diante da iminência da aprovação da PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), dominada por ruralistas e bolsonaristas, um acordo selado pelo então líder do governo Jaques Wagner e os senadores propôs a criação da Câmara de Conciliação.
Para as organizações indígenas, a conciliação é usada como forma de travar direitos fundamentais dos povos indígenas previstos na Constituição Federal de 1988. A posição do movimento indígena é clara e reivindica pelo fim da mesa de conciliação do STF e a revogação da Lei 14.701/2023. As entidades se retiraram da Câmara de Conciliação ao perceberem que não havia diálogo possível e equilibrado.
Ao longo da semana do ATL, os indígenas marcharam pela Esplanada dos Ministérios carregando uma réplica da estátua da Justiça, exigindo que seus direitos sejam respeitados. A imagem virou símbolo da campanha por dignidade, demarcação e reparação histórica.
“Em pleno ATL, o Congresso juntou nesse processo um pedido para que a Câmara de conciliação se mantenha. E, recentemente, a União também se manifestou para que essa conciliação continue. Até quando vamos esperar?
Para os povos indígenas, esse tempo é de décadas, de séculos, com um custo muito alto, de sangue sendo derramado”, relatou o advogado Maurício Terena, assessor jurídico da Apib, durante a plenária intitulada “O Acordo sem Voz: A Câmara de Conciliação no STF e a Reconfiguração da Política Indigenista no Brasil”.
DEMANDA OUSADA
Nada menos do que a co-presidência da Conferência das Nações Unidas Para Mudanças Climáticas (COP 30), no Brasil. Esta foi a principal e mais ousada demanda que os povos indígenas levantaram na 21ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), iniciado no dia 7 de abril, em Brasília.
O evento global da ONU sobre o clima, que vai ocorrer em novembro em Belém (PA), é considerado uma “agenda estratégica” para as principais entidades. Não é uma ação oportunista, mas uma questão de justiça.
Com exclusividade para a Amazônia Real, Toya Manchineri, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), destacou: “Nós nos reafirmamos, enquanto povos indígenas, como autoridades climáticas que devem estar dentro dos espaços de decisão. Somos nós os defensores dos biomas que servem como barreira contra as mudanças climáticas”.
Quando presidentes de nações estiverem sentados para discutir temas estratégicos como o impacto dos grandes empreendimentos, fim dos combustíveis fósseis e transição energética justa, os indígenas deveriam participar das decisões com o mesmo peso.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), junto a Coiab, Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Conselho do Povo Terena Grande Assembleia do povo Guarani (Aty Guasu), Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ArpinSudeste) e Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul), articulou a campanha A Resposta Somos Nós, um chamado global indígena por justiça climática.
A campanha lançada nesta edição do ATL, a maior assembleia nacional do movimento indígena, exige ainda o repasse direto de recursos climáticos aos povos que protegem os biomas. O documento pressiona pela inclusão da demarcação de terras indígenas como uma política climática fundamental e vinculada como meta de mitigação na revisão das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) do Brasil.
As NDCs fazem parte dos planos de ação climática, com cada país se comprometendo a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa (GEE) em um dado percentual. Elas são um dos pilares do Acordo de Paris, tratado internacional firmado para enfrentar a crise climática e limitar o aquecimento global. As metas são definidas de forma autônoma e cada nação deve atualizá-las periodicamente.
No Brasil, Terras Indígenas ainda em fase de estudo ou delimitadas apresentam maiores taxas de desmatamento (0,2% ao ano) em comparação com as TIs declaradas, regularizadas e homologadas (0,05% ao ano). Esse dado é apontado pelo estudo “Demarcação é Mitigação: Contribuições Nacionalmente Determinadas brasileiras sob a perspectiva indígena”, lançado pela Apib, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC).
NDCs INDÍGENAS
Para a Apib, o resultado do estudo reforça a importância da demarcação e proteção das Terras Indígenas no enfrentamento das mudanças climáticas. “Os compromissos climáticos do Brasil serão atingidos quando o Estado avançar na política de demarcação dos territórios indígenas. Não há justiça climática e preservação da biodiversidade e sem demarcação”, afirma Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da organização indígena.
Os indígenas brasileiros se aliaram a povos indígenas da Austrália, do Canadá e de ilhas do Pacífico para fortalecer a reivindicação por espaço no debate climático na COP 30. Além disso, o ATL contou com a presença de delegações indígenas do G9, um grupo que representa os nove países da bacia amazônica: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname.
Segundo Toya Manchineri, em resposta à demanda por co-presidência na COP 30, foi anunciado o “Círculo de Lideranças Indígenas”, espaço para garantir a participação efetiva dessas vozes nos debates da conferência climática em Belém. “Esperamos que esse círculo seja de fato participativo e que tenhamos voz com o mesmo peso de um chefe de Estado na conferência”, afirma o coordenador-geral da Coiab.
Como parte dessa construção, será realizado um Balanço Ético Global, que avaliará o cumprimento das metas climáticas por parte dos países. A partir dessa análise, será elaborada uma NDC indígena, proposta que poderá ser anexada à NDC brasileira, já entregue, e também às dos países aliados. Essa discussão será aprofundada na “COP Indígena”, encontro que reunirá povos de diversas regiões de 2 a 5 de junho, em Brasília.
Nicoly Ambrosio – Jornalista, formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente, residente na cidade de Manaus. Escreve sobre violações de direitos humanos, conflitos no campo, povos indígenas, populações quilombolas, racismo ambiental, cultura, arte e direitos das mulheres, dos negros e da população LGBTQIAPN+. Esta matéria, com título e edições de Zezé Weiss, consolida dois textos de Nicoly, publicados no site Amazônia Real
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