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Heleno de Tróia e as Nações Indígenas

Heleno de Tróia e as Nações Indígenas

Por José Ribamar Bessa Freire/TaQuiPraTi

As recentes declarações do general Augusto Heleno à Globo News agora, em 2019, me fazem lembrar dois de seus predecessores ideológicos: Hélio Jaguaribe, que fez conferência em 1992 na Superior de Guerra e o general Durval Nery, que se manifestou num debate sobre a Terra Raposa Serra do Sol, na Rádio Band-AM, em 2008, num debate do qual participei. Os três martelaram a mesma lenga-lenga, parece até lição decorada: “O pode perder boa fatia de seu território, se os índios decidirem proclamar a independência de suas terras demarcadas”. Será?

O general Heleno fala na condição e ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro, quando se pronuncia contra as demarcações das determinadas pela de 1988. Em sua opinião, um território como o da Raposa Serra do Sol atentaria contra a soberania nacional ao permitir que os índios tenham autonomia sobre ele. “Se amanhã uma ONG resolver abraçar a causa, cria uma bandeira, cria um hino, já tem território, e pedem a ONU para criar uma nação”. Ele diz que o correto não é “dar terras”, mas integrar os índios e transformá-los em cidadãos.

Que raciocínio simplório, meu Deus! Um país com 16 mil habitantes! E reconhecido pela ONU! Segundo o general Heleno, existem demarcações feitas a partir de “laudos antropológicos fraudulentos”, que incorporam em alguns casos, como no norte da , “tribos” onde ele teria encontrado “um morubixaba, um tuxaua, um cacique, sei lá, que não falava português, só inglês”.

O Queiroz e o Flávio Bolsonaro a gente sabe o que ganharam, mas o general não disse nem lhe foi perguntado o que lucraram os antropólogos com a pretensa fraude, em que consistiu a fraude, quais as fontes em que se baseou, nem esclareceu que o índio poliglota ao qual se refere morava na fronteira com a Guiana de fala inglesa, onde viviam seus parentes. Jair Bolsonaro não fala inglês e nem por isso “o Brasil está acima de tudo”.

Com todo respeito, sobre a questão indígena o general só falou disparates, que não resistem a menor análise. Os dois Pereira – Heraldo e Merval – Andrea Sadi, Cristiana Lobo, Natuza Nery e Gerson Camarotti só diziam amém. Esboçaram riso cúmplice quando o general debochou dos antropólogos que rejeitam o uso do termo “tribo”. Não havia uma viva alma para questioná-lo. Não havia o contraditório nem o exercício dialético de se contrapor para orientar quem assistia ao programa. Foi feito para o telespectador acreditar naquela unanimidade.

FAIXA LIVRE

O Jornal das Dez da Globo News não é como o programa Faixa Livre da Rádio-Band-Am do Rio de Janeiro comandado pelo radialista Paulo Passarinho, que entrevista pessoas de pensamento diverso e aperta a todos com perguntas, abrindo espaço para as indagações dos ouvintes. Foi assim em 2008, quando participei com o fotógrafo Milton Guran de um debate com o general Nery, que foi logo criticando o fato de eu ter me referido aos índios como nações, o que era perigoso porque podia dividir o Brasil em vários países.

Heleno de Troia-General – eu lhe disse – parece que há certa confusão com as definições de “estado” e de “nação”. O Estado é um conceito, com o perdão da palavra, da geopolítica, formado por um conjunto de instituições políticas e uma máquina administrativa que organiza o território. Já nação se refere às comunidades humanas que têm em comum tradições, línguas e outros babados. A Bélgica e a Suíça, que esconde dinheiro de corruptos, são países que abrigam várias nações, com várias línguas reconhecidas, e nem por isso esses estados plurinacionais capitalistas têm sua soberania ameaçada.

O general retrucou que sabia muito bem qual a diferença entre Estado e Nação, mas insistiu que no caso do Brasil o uso do termo era perigoso. Argumentei, então, que foram os portugueses que chamaram as “tribos” de nação, conforme consta na documentação do período colonial e que me parecia disparatado o medo de uma palavra, que aliás se referia a um coletivo, como atesta a brincadeira das crianças em Portugal que cantavam: “Aranha, aranhão, sapo, sapão, bicho de toda nação”. Era usado no sentido de “nações camponesas” tal qual definidas pelo teórico holandês Anton Pannekoek. Em que a nação rubro-negra ameaça à integridade do Brasil com seus milhões de torcedores?

Num determinado momento do debate, quando o general Nery falou o que agora o seu colega Heleno repete, de que a da Terra Indígena Raposa Serra do Sol poderia decepar um pedaço do território brasileiro, eu contra argumentei:

General, só teme 16 mil índios armados de arco e flecha aquele que não confia nas Forças Armadas Brasileiras, com aviões, tanques, armas pesadas, mísseis antiaéreos. Eu confio nas nossas Forças Armadas, por isso não compartilho tal temor e sou a favor de que o Brasil reconheça os direitos dos índios que ocupavam esse território muito antes dos portugueses.

O Barão do e Joaquim Nabuco sabiam que foi exatamente o contrário: “Os peitos dos índios foram as muralhas dos sertões”, que garantiram a extensão territorial do Brasil. Esse discurso de que os índios podem procurar a ONU para formar outro país é tão delirante e estapafúrdio como a “notícia” do jornal O Globo que publicou no dia 5 de maio de 2002 uma matéria com chamada na primeira página, jurando que onze caciques já teriam juntos 2 bilhões de dólares, anotem bem US$ 2.000.000.000. Não exibiu qualquer prova, não indicou onde estava essa grana. O autor da matéria acha que seus leitores são débeis mentais. É fake, mas se colar, colou.

JAGUARIBE, O PROFETA

Já Hélio Jaguaribe, que se supõe bem informado pela sua formação acadêmica, em conferência na Escola Superior de Guerra, em 1992, indicou com todas as letras quem eram os aliados externos que queriam se apropriar das riquezas minerais existentes em áreas . Jaguaribe era Secretário de Ciência e Tecnologia no Governo Collor quando jurou que a demarcação de terras indígenas era uma estratégia para decepar a Amazônia e criar dentro dela várias pátrias. Deu nome aos bois:

– “O objetivo que se tem em vista é o de criar condições para a formação de ‘nações indígenas’ e proclamar, subsequentemente, sua independência com o apoio americano”.

Diante de acusação tão grave, os leitores esperavam que Jaguaribe, o patriota, fosse consequente e propusesse medidas para afirmar a soberania nacional tais como: a modernização do , a organização e mobilização popular contra o imperialismo americano, a expulsão das multinacionais que desrespeitam as leis brasileiras, o protesto do Brasil na ONU, um pedido de esclarecimento ao embaixador americano e, se necessário, o rompimento de relações diplomáticas com os Estados Unidos.

Necas de pitibiribas! Nenhuma medida dessas foi proposta. Jaguaribe, assim como o general Heleno, são bonzinhos com os americanos e com os empresários, com quem falam fi no. Aí deixam de ser patriotas. A bronca dele é com os índios, com quem engrossam a voz. Aí voltam a ser patriotas. No Brasil deles, que não é o nosso, a única forma de defender a soberania – diz Jaguaribe – é anular as “concessões gigantescas” de terras indígenas e reduzi-las “a proporções incomparavelmente mais restritas”. Podemos desconfiar que tem caroço debaixo desse angu.

Se isso tivesse ocorrido, a profecia de Jaguaribe seria concretizada oito anos depois. Efetivamente, índio sem-terra morre. Naquela ocasião ele vaticinou, como ave de mau agouro, que no ano 2000 não haveria mais índios no Brasil, o que motivou comentário do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: – “Engraçado! Os índios acham que quem não existirá mais será o Jaguaribe”. Jaguaribe efetivamente deixou de existir, mas os índios continuam resistindo.

Esses americanos, na realidade, não precisam usar os índios para explorar o minério de suas terras, porque já escolheram Jair Bolsonaro como um boy favorito e aplaudem o Guedes no comando da economia brasileira. Eles querem construir mais Brumadinho e Mariana em território indígena. O discurso contra a demarcação, que vem acompanhado de um firme propósito de “integrar os índios como cidadãos”, parece ser um presente de grego. Como o cavalo de Troia de madeira, tal discurso carrega em suas entranhas mineradoras e agronegociantes para invadir o território indígena. Só que, ao contrário dos troianos, os índios não estão dormindo.

José Ribamar Bessa Freire –  Professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio). Administrador do site http://taquiprati.com.br, onde esta matéria foi publicada originalmente.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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