Cacica Tônkyre e as línguas cantadas: entre rios e palavras
E à noite nas tabas, se alguém duvidava / do que ele contava / tornava prudente: “Meninos, eu vi!” (Gonçalves Dias. I-Juca-Pirama, 1851) Por José Bessa Freire
– Minha filha, se eles invadem a aldeia e começam a matar teus irmãos, foge. Foge, minha filha. Foge!
Este conselho do cacique Payaré dado na língua Jê-Timbira à sua filha pequena Tônkyre Akrãtikatêjê, a primeira cacica do povo Gavião, parece desconcertante na boca do valente guerreiro, cuja vida foi marcada por coragem e solidariedade.
Estava ele se acovardando? Ou queria manter viva a filha, tal qual o literário guerreiro tupi I-Juca-Pirama preso pelos Timbira, que chorou diante da morte para salvar seu pai cego? Nada disso. Na sequência, Payaré completou:
– Escapa, minha filha, porque alguém tem de sobreviver para contar o que testemunhou com seus próprios olhos.
A filha, que depois substituiria o pai, sobreviveu e seguiu a recomendação sobre a necessidade de ocupar outra trincheira de combate: a da luta pela memória, sempre controlada pelo inimigo, que a manipula e distorce.
Não era uma fuga, mas a escolha do campo de batalha, que requer combatentes do lado de cá, como no poema épico de Gonçalves Dias, de dez cantos e 484 versos, no qual o “velho Timbira, coberto de glória, guardou a memória” daquilo que presenciara.
A luta pela memória passou pela recuperação da sua identidade e de seu nome indígena recusado pelo Cartório, que a registrou como Kátia – assim é hoje conhecida no Brasil.
A conversa com o pai, aqui contada do meu jeito, está no filme “Pisar Suavemente na Terra” de Marcos Colón. Mas Kátia Tônkyre aparece ainda em outros dois filmes: “Entre Rios e Palavras: as línguas indígenas no Pará em 2021”, de Maurício Correia e indiretamente em Segredos do Putumayo, de Aurélio Michiles, os três filmes unidos pela temática da memória.
Pisar de leve na terra
O combate pela preservação da memória, das línguas e do território atravessa toda a Amazônia indígena assaltada por empreendimentos modernizantes, que falam em nome do progresso, numa destruição planejada pela “economia do desastre” – segundo Ailton Krenak, um dos narradores do Pisar Suavemente na Terra. “Só trazem destruição, drogas, prostituição” diz o cacique Manoel Munduruku e criam “miséria, pobreza, contaminação, corrupção” nas palavras do Kokama José Manuyana.
As imagens revelam a área desmatada da mina de bauxita da Alcoa, em Juriti (PA), a rodovia Br-222, a estrada de ferro Carajás que corta a aldeia da mesma forma que os linhões de transmissão elétrica, o trem noturno que desperta moradores e espanta animais, o embarque da soja em Santarém, as hidrelétricas de Belo Monte e Tucuruí, o garimpo do rio Tapajós que mata a vida aquática, a ação devastadora de madeireiros e até o desfile de urubus entre as palafitas de Iquitos, no Peru. A Amazônia está ferida de morte.
Como resistir num contexto em que a economia só existe se o desastre acontece, como ocorreu com mineração na Terra Indígena Krenak em área do Rio Doce narrada por Ailton?
A câmara acompanha o professor Kokama na Amazônia peruana, de onde se desloca para as aldeias do Pará. Em uma delas está o cacique Manoel Munduruku. Na outra Kátia Tônkyre, com sua assombrosa lucidez, relembra quando, aos 9 anos, presenciou o cerco à sua família, em Tucuruí, nos anos 1980, e três jagunços tentaram degolar seu pai.
Mas o documentário registra também a resistência. Segundo Marcos Colón:
– A Amazônia é geralmente pensada como mercadoria, como objeto de exploração. Mas devemos pensar a Pan-Amazônia a partir dos seus povos, do que é importante para eles: os modos de sobrevivência, a água, a floresta, a biodiversidade, as culturas locais porque, como disse Ailton Krenak “a gente só existe porque a terra deixa a gente viver. É a mãe terra que nos dá a vida. É preciso pisar suavemente na terra”. Entre rios e palavrascantadas
Katia Tônkyre protagoniza também o outro filme Entre rios e palavras, onde dialoga sobre a história do Nheengatu e das línguas na Amazônia com vários indígenas, entre eles Bewari Tembé, Muraygawa Assurini, Márcia Kambeba e Dayana Borari.
A revolução linguística feita pelos Grupos de Consciência Indígena do Tapajós (GCI) recupera a memória e os processos próprios de aprendizagem do Nheengatu e de outras línguas indígenas duramente reprimidas.
Kátia Tônkyre fala da preocupação do seu pai para que fosse alfabetizada em sua língua e resume a pedagogia Akrãtikatêjê, explicando como os ensinamentos são passados por meio de canções, com lições aprendidas na vivência diária. A língua é falada e, sobretudo, cantada, antes de ser escrita.
– É a aprendizagem de como a gente inventa as músicas, como elas podem ser cantadas para entender a época de plantar, de conservar as sementes, da importância de guardar as músicas através das brincadeiras, do dia a dia, do tempo.
Nossas músicas cantam os animais, o tempo, a madrugada, a noite, o cotidiano, o caminhar. Nós temos músicas da cabeça da onça, do peixe, da anta, da guariba, de cada animal, que são repassadas como mensagens, um recado através da cantiga. Segredos do Putumayo
Embora os Gaviões Akrãtikatêjê não tenham presença física no longa-metragem Segredos do Putumayo, (…) o extermínio de mais de 30 mil indígenas no rio Putumayo aparece em todo seu horror no documentário, que recupera o diário do diplomata e nacionalista irlandês a serviço da Coroa Britânica, Roger Casement (1864-1916), cônsul no Brasil.
Ele foi encarregado de investigar, em 1910, as condições de trabalho da Peruvian Amazon Company, financiada pela Bolsa de Londres, que escravizava indígenas nos seringais.
As informações do Diário de Casement, julgado e condenado à morte na forca pelo crime de “traição, sabotagem e espionagem contra o Reino”, são complementadas por imagens de Silvino Santos No País das Amazonas (1922), depoimentos, entre outros, do historiador Angus Mitchell, do escritor Milton Hatoum e de indígenas dos povos Uitoto, Bora, Okaina e Muinames, habitantes de La Chorera (Colômbia), depositários da memória e da documentação oral.
José Bessa Freire – Professor. Indigenista. Cronista. Conselheiro da Revista Xapuri. Excerto da Crônica com o mesmo título, publicada em seu blog TaQuiPraTi.
Katia Tonkyre – Primeira-cacica-da-aldeia-Akratikateje-no-Pará. Foto: Divulgação -IICA
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
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