CARTA A PAULO FREIRE

CARTA A PAULO FREIRE

Carta a Paulo Freire

Por Beto Seabra 

Prezado mestre Paulo Freire,

Em 2016 finalizei a minha primeira experiência audiovisual, ao lançar o documentário Leitores sem fim, que conta a histórias de pessoas que encontraram na leitura, ou no abrigo das bibliotecas, uma saída para suas vidas. O personagem que me levou a fazer o documentário não esteve presente no produto final. Dorival, um ex-catador de lixo que virou doutorando em linguística quando eu começava a buscar personagens para o meu filme, acabou por desistir de contar a própria história, por razões que não valem a pena explicitar aqui.

Mas conhecer a trajetória de Dorival, que ao buscar alumínio e papelão em um lixão na periferia de São Paulo acabou por juntar uma pequena biblioteca em casa que o levou de volta para a escola e dali para a universidade, me fez desejar buscar outras personagens para o meu propósito. Encontrei essas pessoas no Rio de Janeiro, ao visitar diversas bibliotecas quando iniciava a pesquisa para o meu documentário.

Ali conheci Elizabeth, que limpava os banheiros na Secretaria de Cultura do Estado quando, ao mostrar interesse por uma estante de livros que havia em uma das salas da secretaria, foi convidada por uma servidora a compor a equipe que iria cuidar da nova Biblioteca Parque de Manguinhos, localizada em um bairro da Zona Norte do Rio que abriga a sede da Fundação Oswaldo Cruz, um belíssimo prédio em estilo neomourisco, e que um tempo atrás virou motivo de memes na internet em razão de uma referência de mau gosto feita por uma médica negacionista ligada ao ex-governo federal.

Mas o que nos interessa aqui é a história de Elizabeth, que imaginava que estava sendo convidada para limpar os banheiros da Biblioteca de Manguinhos, e pensou: “meu sonho é trabalhar em um lugar onde eu possa estar perto dos livros”, quando soube que seria na verdade auxiliar de bibliotecária. Quando finalmente a entrevistei para o documentário, Elizabeth já estava matriculada em um curso de Letras, em uma faculdade particular e com bolsa de estudos. Seu sonho era ser professora de Literatura. Espero que tenha conseguido.

Ali também conheci Daiana, mulher negra e de infância pobre, mas que pelo caminho da leitura terminou os estudos e se tornou professora de dança na Biblioteca de Manguinhos. Perdi o contato com Daiana, ela que foi uma das entusiastas na divulgação do documentário entre os moradores da sua comunidade, até que em 2020 recebi uma triste notícia. Daiana foi uma das vítimas da Covid-19. Uma mulher jovem, que estava no auge da carreira de formadora de bailarinas, e que teve a vida interrompida por uma pandemia que poderia ter sido controlada desde o início, não tivesse o nosso país imerso naquilo que você tão bem classificou ao escrever sobre a lógica desumanizadora da vida:

“O sadismo aparece, assim como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que o seu amor é um amor às avessas – um amor à morte e não à vida” (Pedagogia da Autonomia, 1996, p.47).

Não é impressionante que esse seu texto de 1996 estivesse tão atual no Brasil de 2021?

Mas vamos em frente, pois quero lhe contar sobre outras figuras maravilhosas que conheci ao produzir o documentário Leitores sem fim.

 
8d2aae 7c163d28d38c4a7181a0edb975bb701a~mv2

Na Biblioteca Parque da Rocinha entrevistei o historiador Fernando Ermiro, nascido e criado na favela, e que quando o conheci ocupava o cargo informal de agitador cultural daquele espaço e que hoje, eu descubro dando uma googlada no nome dele, promove cursos pela internet para que as crianças e os adolescentes de sua comunidade possam continuar se educando durante a pandemia e com as escolas fechadas.

Ermiro disse uma frase que nunca me esqueci: “Tem uma fala do Lima Barreto, na inauguração da Biblioteca Nacional, em que ele diz: ‘é um prédio imponente, que assusta. Então a população ‘mais baixa’ não vai entrar porque não vai se sentir convidada. A Biblioteca Parque da Rocinha tem essa mesma característica. É um prédio muito bonito. E o camarada passa lá fora e acaba achando que isso aqui não é para ele. Então a gente precisa tornar claro, para o público, que isso aqui é público”.

Uma frase simples: “Tornar claro, para o público, que isso aqui é público”.

Mas não é isso que precisamos fazer de mais urgente? Mostrar que a escola pública é do público? Que o hospital público é do público? Parece tautológico, parece óbvio, mas não é. O morador da favela se sente em casa na rua, ou no boteco, discutindo futebol, mas um prédio bonito e repleto de livros o constrange. O que fazer?

E aí me lembro novamente de você, professor Paulo Freire, quando fala da boniteza das coisas. Assim como é fundamental instalar a boniteza na educação e na escola, eu acredito também em uma biblioteca bonita, mas que também seja um lugar para se fazer amizades, para ler e sonhar, estudar e se divertir, trabalhar e refletir. Um lugar onde o leitor se sinta em casa. E isso se faz desde cedo, levando as crianças e os adolescentes para dentro da casa dos livros, e que essa casa dos livros, por ser muito, mas muito bonita mesmo, possa competir com o shopping, como bem disse outra entrevistada em meu documentário.

Saio da Rocinha e vou para o centro do Rio de Janeiro, perto da Central do Brasil, por onde passam milhares de trabalhadores todos os dias, a caminho do trabalho ou de casa. A trezentos metros da principal estação de trens urbanos da cidade está a Biblioteca Parque Estadual. Ali conheci a menina Núbia, moradora de rua, que, ao contrário de muitos moradores da Rocinha, não se constrange com a beleza do lugar. Quando não está vigiando carros ou dormindo, ela está dentro da biblioteca, vendo vídeos ou conversando com os amigos, pois não sabe ler.

Núbia adora a biblioteca, mesmo não entendendo uma linha do que está escrito em qualquer dos milhares de livros expostos no lugar. Não é incrível isso? Deixo que ela mesma explique, em palavras simples e certeiras:

“Aqui você faz amizade, conversa, aprende. Vê vídeos, cinema, teatro. Eu gosto daqui, desde que eu entrei. Só não leio os livros, é a única coisa, mas eu sei que um dia eu vou tá aprendendo”.

Núbia é moradora de rua, não sabe ler, mas adora a Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro. Quer boniteza maior do que essa? Se conseguíssemos espaços lindos e acolhedores como este em número suficiente para abrigar as milhões de Núbias que estão em busca de educação, cultura, arte e…amizades, não seria uma revolução?

A cada entrevista que eu fazia para o Leitores sem fim, mais crescia a minha vontade de mostrar ao mundo que aquelas pessoas precisavam de algo muito simples para deixarem a feiura da miséria e entrarem na beleza do mundo do conhecimento, seguindo uma utopia que você tão bem explicitou em um depoimento:

“Um dia este país há de se tornar menos feio. Ninguém nasceu para ser feio. Este país será mais bonito na medida em que a gente lutar com alegria e com esperança…” (Dicionário Paulo Freire, p. 61).

Outro morador de rua que conheci no Centro do Rio de Janeiro, Alexander, me disse que quando está frio e chovendo, e ele não consegue vender nada nos semáforos, é na biblioteca que ele se refugia, onde aproveita para buscar emprego pela internet, conversar com as pessoas e ler, ainda que soletrando com dificuldade frases simples de livros infantis. “E aqui tem ar-condicionado e banheiro limpo”, finaliza.

Se essas duas coisas são importantes para quem já tem isso em casa e busca uma biblioteca “apenas” para estudar, imagine para quem leva uma vida como a de Alexander?

Seu amigo Márcio Evangelista, também morador de rua, não esconde que a biblioteca também pode ser um espaço para ele fugir do que mais o ameaça:

“Às vezes quando eu tô a fim de usar droga eu venho pra cá pra dentro, porque aqui dentro eu não posso usar…Pelo menos até sete horas, até a hora de fechar, eu consigo esquecer desse…”

As reticências na fala de Márcio podem ser preenchidas com a palavra crack, que ele não conseguiu pronunciar durante a gravação. E se a biblioteca funcionasse 24 horas e permitisse, de alguma forma, que ele trocasse as drogas pesadas pelos livros e pela internet, tão importante para ele conseguir se comunicar com a família, que só aceitará ele de volta quando deixar o vício?

Não consigo ver nada mais bonito e acolhedor, hoje, quando o nosso país está estraçalhado por uma pandemia que não cessa e por uma guerra cultural entrincheirada dentro do nosso próprio governo contra a educação e a arte libertadoras, do que uma imensa, bela e democrática biblioteca.

Quando a crise sanitária passar, as pessoas precisarão de lugares de encontro, que não sejam apenas espaços para festas e lazer, e imagino milhares de bibliotecas abertas para receber crianças, jovens e idosos; estudantes, trabalhadores e desempregados; pobres, remediados e miseráveis, que estarão sedentos por vida e pelo conhecimento, que por sua vez gera uma vida mais bonita e boa de ser vivida.

Soube dia desses, por uma postagem nas redes sociais, que em uma biblioteca na Dinamarca você pode “pegar emprestado” uma pessoa em vez de um livro para ouvir a história de sua vida por trinta minutos. Cada pessoa tem um título. Pode ser “um desempregado, um refugiado, um bipolar”, continua a notícia, e ao ouvir tais histórias você percebe que não pode julgar uma pessoa pela aparência, assim como não se julga um livro pela capa. O projeto se chama “Biblioteca Humana”.

Vejo essa ideia como mais uma aproximação daquilo que você, Paulo Freire, chama de dialogicidade. E cito uma frase que aparece novamente em sua Pedagogia da autonomia, um livro que leio e releio para aprender todos os dias:

“Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa” (op. Cit. P. 153).

Leitores sem fim não termina com uma fala, mas com um clipe de imagens de mais ou menos um minuto, apenas com uma música ambiente, mostrando o trabalho feito pela professora Daiana com as crianças e adolescentes da comunidade de Manguinhos. Depois de mais de trinta minutos falando de livros e leitura, por que terminar o documentário com dança e música? A ideia não partiu deste diretor e roteirista, mas sim do editor do filme, que ao final achou que tinha muitas imagens bonitas ainda não utilizadas e me sugeriu fazer esse final sem palavras. Na montagem final vi que a ideia era boa e deixei assim.

Mas, hoje, vejo que a decisão do montador do filme foi além do mero intuito de produzir “beleza plástica” a uma obra já encharcada de histórias e palavras. Ao mostrar o trabalho da Daiana e de suas meninas, Leitores sem fim parece dizer que o resultado final do conhecimento, da educação, da arte e da cultura são justamente isso: a beleza.

Mais paulofreireano do que isso, impossível!

Um abraço do Beto Seabra

Brasília, inverno de 2021.

Roberto Seabra – Beto Seabra – 13/04/23 – Texto publicado originalmente em 2021, no livro Cartas a Paulo Freire: escritas por quem ousa esperançar (vol. 3), lançado pela Editora da Universidade Estadual da Paraíba.

Deixe seu comentário

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

REVISTA