Na relação que estabelecemos a partir de dezembro de 1975, mês e ano de criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, e que se prolongou até seu assassinato em dezembro de 1988, estavam presentes, sempre, o jornalista e o líder seringueiro.
Mas criou-se entre nós algo transcendente, um traço que nos unia ao seringal, à floresta e aos seus moradores tradicionais. Isso nos fez aliados contra os que não reconheciam nem respeitavam nosso ignorado, mas adorável mundo.
Chico completaria 75 anos de idade em dezembro de 2019. Sou mais velho cinco anos, e carrego a culpa histórica de ser filho de seringalista. Ou seja, de ter sido um menino da “Margem”, sede do seringal, contraposto ao menino seringueiro do “Centro”, ou da Colocação. Como filho de seringueiro, Chico nasceu e se tornou adulto produzindo borracha, caçando, desvendando segredos da floresta.
Entre nós dois, ou entre a margem e o centro, tem uma longa história a ser contada com menos preconceito. Em algumas ocasiões, nós dois conversamos sobre o assunto. Falei a ele de algumas caras lembranças do meu tempo de criança, quando via os filhos dos seringueiros que irrompiam da mata e chegavam ao nosso barracão, onde tomavam café, almoçavam e jantavam durante alguns dias.
Eu os invejava, porque não sabia empunhar uma espingarda nem matar um nhambu que fosse, no acero da mata. Enquanto eles me pareciam heróis misteriosos, protagonistas de histórias inimagináveis para um menino da margem. Até os sapatos de seringa que usavam e a calça de mescla, “encaronchada” pelo látex e rasgada na altura da canela, compunham indumentária de sonho.
Essas memórias, explicava, se ampliavam à medida que eu, como correspondente em Rio Branco de O Estado de São Paulo”, jornal nacional influente, a partir de 1975, começava inteirar-me das ameaças que os fazendeiros recém-chegados do Sul impunham às indefesas famílias da floresta. Cada vez mais eu me sentia parte delas, sofrido e indignado.
Ao acompanhar as reuniões da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) para criação de oito sindicatos de trabalhadores rurais no Estado, conheci mais e mais seringueiros ameaçados. Fotografei o medo e a fragilidade que estampavam no corpo imóvel, perplexo, ao mesmo tempo em que identificava as ameaças, odiando os agressores. Felizmente, a perplexidade virou resistência vencedora.
Os agressores ocupavam o melhor hotel de Rio Branco, monopolizavam os restaurantes, inundavam as ruas com sua arrogância. Era difícil ser isento no meio disso, vendo como as elites locais aplaudiam a “eles”, defendendo um progresso a qualquer preço contra “nós”. Pensei e agi: meu trabalho jornalístico não valeria nada se não estivesse voltado à causa acreana.
E Chico Mendes, por duas décadas, foi meu comandante em chefe nas redações onde me encontrava. A palavra dele vinha em forma de denúncia, era ordem de ataque. A verdade testemunhada e a defesa apaixonada que fazia de seu povo considerado inculto pelos urbanos, seu ânimo e coragem naturais me convenceram. O seringal está em mim, pensei, agora parto da margem para o centro. Quero crescer e brilhar junto com esses meninos de calça encharcada, de capanga de seringa ao ombro, de tino e tiro certeiros.
Para mim, Chico Mendes é um símbolo forte da tradição extrativista contra a vaidade e a arrogância do mundo desenvolvido. Ele nos ensinou enxergar o ponto de convergência dos diferentes saberes humanos. Deixou como legado aos companheiros, ecoando no mundo, a cultura da floresta composta de intuição, mito, valentia, destreza, afeto, natureza e sonho.
Na condição de filho trágico e abençoado, da mata, aprendeu a caminhar entre cipoais, gemidos e escuridão na direção de uma vida singela, comum e desejável. O futuro da Amazônia não pode prescindir dele como exemplo.
Por Gomercindo Rodrigues
Era pouco mais de seis horas da tarde. Já havia escurecido. Cheguei de moto. Parei em frente ao casebre simples onde
Chico Mendes morava. Entrei na casa de madeira, coberta com telhas de barro, dois quartos, uma pequena sala, a cozinha e um corredor ligando a sala à cozinha e passando em frente aos quartos. Ele estava na cozinha, jogando dominó com dois dos três policiais – um deles tinha ido ao quartel da PM para jantar – que haviam sido destacados para fazerem sua segurança. Ao me ver, alegre, disse:
Oh, “Goma” – que era como ele me chamava, enquanto os outros amigos chamavam-me de “Guma” – que bom que você chegou, assim vamos poder fazer uma “parceirada” para ganhar destes patos. Eu já estou ganhando sozinho.
Não, Chico, eu não sei jogar isso direito.
Ah, mas pra ganhar destes patos não precisa saber jogar direito. Senta aí, vamos jogar.
Não, Chico, eu não jogo nada a valer.
Ah, jogar sem ser a valer com estes patos não compensa. Senta aí, vamos jogar de parceiro.
Chico, eu estou preocupado com o que eu te disse ontem – eu dissera a Chico Mendes, que estava preocupado com o fato de não estar vendo os pistoleiros na cidade desde meu retorno a Xapuri no dia 13 de dezembro de 1988, ao que ele me respondera que naquele dia iria verificar a situação na cidade.
É, eu também não vi os caras…
Nesse momento, chegou a esposa de Chico Mendes e disse que gostaria de colocar o jantar, pois o capítulo da novela iria começar e ela queria assisti-lo, pois era o penúltimo da estória. Então o Chico disse: – vamos jantar comigo, “Goma”.
Eu inicialmente agradeci, pois sabia que ele tinha de fazer grande “ginástica” para conseguir ter comida em casa. Ele insistiu, pois sabia que naquele ano, não raro eu nada tinha para comer e nem dinheiro, pois não tinha salário, nem “projeto” que financiasse minha estada em Xapuri, que só era possível porque o Centro dos Trabalhadores da Amazônia – CTA custeava o aluguel e o telefone da casa onde eu morava, que funcionava como escritório da entidade. Dada sua insistência, respondi: – Vou dar uma volta pela cidade para ver se eu encontro os caras, porque eu estou muito preocupado.
Tá bom, enquanto isso eu vou tomar um banho e te espero para jantar, mas vem mesmo.
Tá bom.
Eu saí, montei na moto, circulei por Xapuri, passei em frente a todos os bares que os pistoleiros costumavam frequentar Estava tudo às moscas… Alguma coisa me apertava o peito, era uma indescritível angústia que já me acompanhava desde o dia 13 de dezembro, quando retornei da viagem que fiz ao Rio de Janeiro, onde no dia 7 de dezembro, substituindo Chico Mendes, proferi palestra na ABI (Associação Brasileira de Imprensa), promovida pela Campanha Nacional em Defesa e pelo Desenvolvimento da Amazônia – CNDDA.
Quando retornei da viagem alguma coisa havia mudado: todos os dias, quando eu abria a janela da minha casa, havia dois pistoleiros postados na praça em frente, desde abril de 1988. Também costumavam ficar dois em frente ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais e dois circulando pela cidade. Quando voltei os pistoleiros haviam sumido de Xapuri. Isso era estranho, muito estranho…
Após o rápido diálogo com Chico Mendes, saí de moto… levei entre cinco e dez minutos para retornar à casa de Chico. Quando fui chegando, sua esposa saiu gritando: “Guma, atiraram no Chico!”
Olhei para trás… Na calçada da Delegacia de Polícia, a cerca de 50 (isso mesmo, cinquenta
) metros, vários policiais parados. Gritei: – seus filhos da puta, não vão fazer nada não?
Nesse momento o Pedro Rocha, compadre do Chico gritou: – a gente precisa de um carro que ele está ferido!
Na esperança de que ele pudesse ser salvo, funcionei a moto, da qual eu nem descera, e dirigi-me à agência do Banco da Amazônia, onde eu passara pouco antes e vira que o pessoal estava trabalhando. Cheguei lá e gritei da janela: – Andrias, a gente precisa de um carro, porque atiraram no Chico!
O Andrias, gerente do banco, saiu correndo, pegou o seu “Escort” e foi direto à casa do Chico. Quando chegamos lá, ele já estava sendo embarcado num caminhãozinho que passava. Perguntei ao Pedro Rocha: “- como ele está? ” O compadre do Chico respondeu:
– Ah…
tá morto… Mas não afirmou “
tá morto! ” Deixou no ar, fez pensar que ele não estava morto, que havia uma esperança. Fui ao hospital. Como eu estava de bermuda não me deixaram entrar.
Pensei: – mas que adianta, eu não sou médico. Aqui eu não ajudo nada. Vou fazer alguma coisa onde eu posso ajudar. Fui pra casa. Comecei a telefonar. Liguei para alguns amigos em Rio Branco, Brasília, Rio de Janeiro…
A primeira reação era de incredulidade, todos diziam que não se podia brincar com uma coisa séria e, quando sentiam que era sério, porque eu estava chorando ao telefone, perguntavam se ele estava morto. Eu respondia que era “de muito grave para morto”, pois eu não tinha a informação definitiva.
Entre os primeiros telefonemas que fiz, um foi para uma pessoa que não era amiga: o superintendente da Polícia Federal no Acre naquela época, o Delegado Mauro Spósito. Ele não estava. Deixei recado em meu nome e pedi que lhe dissessem que tinham conseguido pegar Chico Mendes.
Fiz isso porque tinha, como tenho até hoje, enorme suspeita de que o delegado sabia de “algo mais” a respeito dessa morte. O que eu não consegui até agora foi qualquer prova disso. Aliás, depois desse telefonema para a Polícia Federal, coincidentemente, o meu telefone ficou mudo. Passei a fazer as ligações do posto telefônico da TELEACRE em Xapuri.
Fui, novamente ao hospital… Entrei … vi o Chico Mendes estendido sobre uma maca… Ele estava morto… Voltei, fiz novas ligações, confirmando a morte … Começamos a tratar da questão da necropsia, embalsamamento etc.
Uma raiva surda me consumia. Peguei o revólver (um 22, sete tiros) que eu raramente usara. Na cidade, portara-o apenas uma vez: quando mataram o Ivair Igino, dia 18 de junho de 1988, seis meses antes.
Naquele dia eu o portei e estava armado quando dois dos pistoleiros do Darli, entre eles o Darci, que depois atiraria no Chico Mendes, entrou no Salão Paroquial, onde o corpo do Ivair estava sendo velado. Eles entraram, acho que para mostrar que eram “machos”, mas não tiveram coragem de descobrir o corpo do companheiro.
Depois da
morte de Chico Mendes, por algum tempo, quando a situação de tensão extrema ainda permaneceu, andei armado, com porte de arma. Então, descobri que isso era uma grande ilusão, pois a gente nunca tem tempo de usar uma arma quando é atacado numa tocaia ou de surpresa e, ademais, eu não sou um pistoleiro. Hoje sou defensor convicto e ferrenho do desarmamento e da proibição da fabricação e comercialização de armas.
Naquele fatídico dia 22 de dezembro, quando vi o corpo de Chico Mendes, peguei o revólver, coloquei-o numa bolsa a tiracolo com mais duas cargas de balas e, confesso, torci para encontrar qualquer um dos pistoleiros do Darli. Acho que eu poderia morrer, mas não tenho dúvidas de que dispararia quantos tiros me fosse possível no pistoleiro (talvez nenhum!) Mas eles não estavam na cidade. Tudo fora adredemente planejado.
Enquanto aguardávamos resolver as “questões legais”, eu estava em frente à casa de Chico Mendes quando, por volta das 20:30 horas, chegou um veículo Gol branco, desceu uma pessoa e começou a fotografar a casa. Perguntei quem era, respondeu-me que era jornalista, do jornal “O Rio Branco”. Mesmo sem raciocinar muito, perguntei: “-já? ”.
Neste ponto, é importante informar, para quem não sabe, que Xapuri está distante de Rio Branco 188 Km e, naquela época, apenas parte da rodovia era asfaltada, mas, neste trecho, extremamente esburacada. Outra parte era em estrada de terra que, com o “inverno amazônico” (época das chuvas na região) ficava com tráfego muito difícil.
Era a situação naquela noite: a parte de terra estava com muita lama e o tempo médio que se gastava para ir de Rio Branco a Xapuri, de dia, era em torno de três horas e meia a quatro horas, quando era possível trafegar e, muitas vezes, somente com veículo com tração nas quatro rodas. À noite, o tempo gasto era, normalmente, muito maior…
Assim, essa história – a da “rapidez” do jornal “O Rio Branco” – não está explicada até hoje… E quanto mais tentam explicá-la, mais ela fica confusa para o dito jornal e seus proprietários… Estranhamente o fato nunca foi devidamente investigado por quem de direito, embora o crime não esteja prescrito.
Por volta das 22 horas, fomos informados de que os médicos do Instituto Médico Legal não iriam de Rio Branco para Xapuri. Se quiséssemos que o corpo fosse necropsiado e embalsamado pelo pessoal do IML, deveríamos providenciar o deslocamento do corpo para Rio Branco. Eu fiquei em Xapuri.
Foi a noite mais longa da minha vida, pois eu não consegui “pregar o olho” e por volta das 5 horas da manhã do dia 23 o telefone começou a tocar. Eram ligações de Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, por causa do fuso horário (duas horas para mais, em relação ao Acre), querendo maiores informações. O corpo saiu de lá na ambulância do Hospital por volta da meia-noite.
Gomercindo Rodrigues – Advogado e amigo de
Chico Mendes. Este texto faz parte do E-Book “Caminhando na Floresta”, disponível na Loja Solidária da Xapuri Socioambiental. O livro relata a experiência do autor com luta dos seringueiros do Acre nos tempos de Chico Mendes.