CLÓVIS BUENO MONTEIRO: ACIMA DE TUDO, UM PRESTISTA

Clóvis Bueno Monteiro, acima de tudo um prestista

Abissínia Monteiro casou-se com o agrimensor Clóvis Bueno no ano da graça de 1943, sem saber que Clóvis era codinome.

Por Zezé Weiss

Abissínia tampouco soube, por muitos e muitos anos, que o rapaz bonito com quem constituiu família era viúvo, suboficial expulso do Exército Brasileiro, e que Clóvis parou na cidadezinha goiana de Corumbaíba, onde se encontraram, não em busca de , mas fugido da repressão.

Sem saber, Abissínia casou-se com um comunista.

Dali pra frente dona Abissínia passou a viver a aventura de uma convivência de mais de 70 anos com o camarada Clóvis, que na verdade era César Carlos de Almeida, nascido em 1907, em Maranguape, no Ceará.

Foi uma vida de muito mistério. Os segredos dele eu fui descobrindo aos poucos, mexendo nos papéis que ele guardava. O nome Carlos foram os meninos que descobriram, pouco tempo antes dele morrer, nos escritos dele,” conta dona Abissínia.

Clóvis nunca contou, nem para Abissínia, que entrou para o Exército Brasileiro ainda César Carlos, nos anos 20, onde alcançou a patente de sargento. Nem que fez parte do grupo de jovens militares socialistas que se juntaram a , a quem foi fiel a vida inteira.

Meu pai foi militante do Partidão, foi fundador do PT, mas no fundo era um prestista. Acima de tudo, um prestista”, diz a filha Leni Bueno, formada engenheira civil com especialização em hidráulica na Rússia comunista.

Também nunca disse nada sobre sua participação na Intentona Comunista de 1935, que pretendia derrubar Getúlio Vargas do Poder, nem sobre os duros tempos de prisão no quartel do Realengo por conta disso, de onde saiu ex-sargento liberto no ano de 1937.

Nem que do Rio mudou-se para , aonde já chegou Clóvis, militou com Carlos Marighela, e casou-se com a espanhola Marlene, com quem teve duas filhas. Das filhas, guardou uma foto antiga, entre papéis esparsos, sem mais ter notícias.

As perseguições do Estado Novo (1937-1945) moveram Clóvis para o Triângulo Mineiro, e de lá para Corumbaíba, onde se casou com Abissínia, mãe de seus três filhos goianos: Lenine, Leni e Belloyanes.

A profissão de agrimensor, adquirida no Rio de Janeiro, facilitava as constantes mudanças de Clóvis que, depois do casamento, passou a assinar Clóvis Bueno Monteiro. “O costume era o contrário, da pegar o nome do marido, mas ele ficou com o meu e assim foi, sem nada de conversa”, conta Abissínia.

Em 1945, a família muda-se para Pires do Rio, onde Clóvis funda o PCB. Em 1948, eles chegam a Anápolis, “uma cidade de progresso” onde, enquanto Clóvis fundava o Partido, Abissínia “dava uma mão” no sustento da casa trabalhando como costureira e, no tempo que lhe restava, organizava as mulheres do Partidão.

A gente fazia reuniões nos bairros, e eu produzia o jornal O Movimento Feminino, para distribuir nas reuniões de mobilização e de conscientização para a defesa de direitos”.

Dona Abissínia conta que zanzaram muito por Anápolis até se mudarem, no ano de 1954, para a casa simples com jardim na frente e horta no quintal do Conjunto Residencial IAPC “que o Clóvis amava porque o bairro era calmo e ele podia receber os amigos”, gente nada mais, nada menos do que o dirigente comunista Gregório Bezerra, ou Zé Porfírio, o líder de Trombas, e um montão de “tios” que chegavam e saíam do nada, de repente.

Foi ali que muitos “tios” se juntaram nas madrugadas para organizar a participação nas lutas históricas do Partidão como a Campanha “O Petróleo é Nosso”, em 1953; a ao regime militar de 1964; o Movimento pela Anistia nos anos 70;  a fundação do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

E foi ali que aconteceram as várias prisões e os maiores sustos. “Em 1964 foi terrível, queimei muitos ”, disse Clóvis certa vez.

Em 1973, mais uma prisão. Foi torturado e condenado a três anos de cadeia, mas teve a pena reduzida, por causa da idade. Ficou preso um ano, entre Brasília e Goiás. Ao sair, intensificou sua participação no Comitê Goiano pela Anistia.

Trabalhou muito para trazer de volta os exilados brasileiros, dentre eles seu filho Lenine, exilado na Bélgica por sete anos e meio. “O Clóvis sempre ia e vinha. E quando voltava de lá [dona Abissínia nunca fala a palavra cadeia], parece que voltava mais forte, com mais vontade de lutar”.

Conquistada a Anistia, em 1979, o militante Clóvis, já em seus 70 anos, resolveu que era hora de entrar na luta pela fundação do PT. Questionado por Abissínia: “Mas você não é do PCB, como é que vai entrar em outro Partido?”

Clóvis respondeu: “Sou comunista, mas acho esse partido necessário. E não quero ficar de fora dele”. Não queria e não ficou. Além de fundador, foi o primeiro presidente do PT de Anápolis.

O PT não lhe faltou. Ao completar 100 anos, recebeu das mãos de Antônio Gomide, então prefeito de Anápolis pelo Partido dos Trabalhadores, a Medalha do Mérito da Cidadania. Recebeu, em vida, muitas outras homenagens.

A última, aos 106 anos, em julho de 2014, veio do Partido Comunista Brasileiro, ao qual morreu filiado. Ao camarada Clóvis foi concedida a Medalha Dinarco Reis, a mais alta condecoração do velho PCB. Aos 100 anos, Clovis fez discurso. Aos 106, quase 107, apenas ouviu atento e agradeceu.

Com a medalha Dinarco Reis em mãos, Clóvis voltou pra mesma casa cheia de memórias do IAPC. E não mais saiu. “Os últimos meses foram serenos e plenos de histórias, mas nunca sobre a vida dele”, conta a cuidadora Ednaci Ferreira, a Edna.

Seu Clóvis gostava de viver, era fã das marchinhas de carnaval, e amava falar de e do único neto, Luiz Ernesto, filho da Leni. Só não gostava quando a gente tocava no passado dele, antes de casar com a dona Abissínia”.

Edna relata uma das poucas vezes em que conseguiu arrancar do camarada um comentário bem humorado sobre o assunto: “Pouco antes do fim, cerca de um mês antes, com ele já bem fraco, cheguei bem cedo e provoquei:

Bom dia, bora pro banho de sol, seu César Carlos Peixoto. E ele, com aquele olhar matreiro, me respondeu: – Bora, mas não é Peixoto. É César Carlos de Almeida”.

Da morte, dona Abissínia diz que Clóvis não gostava muito de falar. Quando lhe contaram sobre a morte de seu amigo e camarada Oscar Niemeyer, também centenário, soltou um muxoxo e comentou: “Nossa, como esse povo morre fácil!”.

Era sempre assim, com o mesmo comentário, que recebia a notícia da morte dos amigos. Quando era um daqueles mais de perto, às vezes comentava que faria falta nas prosas da casa rosa do IAPC.

Com o tempo, a casa precisou passar por reformas. O jardim da frente ganhou grade. Entre a sala de estar, onde Clóvis passava as tardes lendo ou recebendo amigos, e a sala de jantar, na parte de baixo, a escada foi substituída por uma rampa, para a cadeira de rodas.

Mexeu-se em tudo, menos na decoração. Na parede da sala de estar, sobre a TV, Lênin preside. Sobre o sofá, na parede lateral, continua o quadro do 1900, de Bertolucci.

CLÓVIS BUENO MONTEIRO: ACIMA DE TUDO, UM PRESTISTA
Imagem: FFLCH

Mas é na sala de dentro, onde ainda se servem broas e biscoitos, que os tesouros mais queridos do camarada são mantidos. De um lado, a foto do Che, trazida de Cuba pela filha Leni. E, na soleira da porta da cozinha, a puída bandeira de Cuba, também presente de Leni. 

Agora mais pro final da vida, meu pai deixava a gente mexer em tudo, até mesmo nos manuscritos do que deixou escrito, ‘Nos Caminhos da Vida’,  menos nessa bandeira”, diz Leni.

Clóvis partiu desse em novembro de 2014. O caixão, coberto com as bandeiras do PCB e do PT, foi reverenciado por camaradas, companheiros, amigos, familiares e populares. Para agradecer, o filho Belloyanes, ambientalista radicado em São Paulo, postou no Facebook os versos de Bertold Brecht:

A Los que Luchan:
Hay hombres que luchan un dia y son buenos;
Hay otros que luchan un año y son mejores;
Hay quienes luchan muchos años y son muy buenos;
Pero hay los que luchan toda la vida, Esos son los imprescindibles.

Clóvis Bueno Monteiro está entre os imprescindíveis.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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