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COM CUPIM E COM AFETO

COM CUPIM E COM AFETO

COM CUPIM E COM AFETO

É possível a cura de uma broncopneumonia com cupim e com afeto, usando um lambedor de cupim vivo, ciência da medicina natural e tradicional das florestas do Acre? O jornalista e escritor Elson Martins diz que sim!

Por Elson Martins

Em maio passei maus momentos no Hospital Santa Juliana, de Rio Branco, internado numa enfermaria com broncopneumonia.

Fiquei pendurado num frasco de soro durante uma semana, durante a qual foram injetados antibióticos e outros remédios numa veia do braço direito. Apesar do atendimento médico correto, ao receber alta saí cambaleando, sem força e sem apetite; e demorei mais de 15 dias para me sentir vivo novamente.

A ressurreição completa só aconteceu com a ajuda de um lambedor de “cupim vivo”, receita acreana contra pneumonia que eu desconhecia. Do cupim, o que sabia até então é que destrói livros, fotografias e filmes de celulose com assustadora eficácia. Há três décadas, pelo menos, sofro com seus ataques ao acervo que cultivo desde 1975 sobre os conflitos socioambientais do Acre.

Por um acaso feliz, no local onde trabalho tem uma jovem jornalista que se preocupou com minha saúde. E por outro acaso, também feliz, ela tem uma avó que me ofereceu o lambedor milagroso. Elas se tornaram minhas amigas salvadoras.

Márcia, a neta, tem 22 anos; a vó, Maria de Nazaré Moreira Nunes, Bia para os íntimos, tem 64. Em comum, possuem olhos asiáticos, são afáveis e valorizam as tradições provindas da floresta. Domingo passado nos encontramos num almoço patrocinado pela Andrea Zílio, secretária de comunicação [no governo Tião Viana], e mantivemos uma conversa sobre cupins. Bia não se fez de rogada para ensinar a preparar o lambedor:

– É simples: basta ferver por meia hora, com água, um bom pedaço da casa do cupim com os insetos dentro, vivos. Em seguida, coar a mistura em pano leve (morim); e no líquido coado, adicionar meio quilo de açúcar voltando a ferver até o ponto de mel grosso. Pronto: toma-se três colheres das pequenas (de chá) ao dia.

Bia descende de família tradicional de Sena Madureira, município onde nasceu e permaneceu até os 18 anos. O pai, Raimundo Moreira Cavalcante, morou em vários seringais dos rios Caetés e Iaco; já a mãe, cujo nome Porcina lembra personagem de novela, admirava as habilidades do marido e repassava aos filhos parte do seu conhecimento.

“Meu pai gostava muito do mato, conhecia tudo quanto era planta e raízes; foi seringalista, mateiro e curandeiro” – informa Bia.

Ao se transferir para Rio Branco, Bia fez curso de enfermagem e passou a trabalhar na Fundação Hospitalar do Estado, onde ficou 30 anos como auxiliar de operações cirúrgicas até se aposentar.

Na relação entre Márcia e a avó transparece a existência de algo excepcional na história dessa família: a diferença de quase meio século na idade das duas, por exemplo, não as impediu de olhar na mesma direção com solidariedade e afeto. Bia, aliás, vê a neta como “um presente que Deus me deu”!

Dúvida – Bia não explicou, mas presumo que na segunda fervura do lambedor colocou alguma pitada do cupim vivo! Digo isso porque percebi, de um dia para o outro, no copo de plástico com a porção recebida, a presença de alguns bichinhos se arrastando pelas paredes internas. Claro que fiquei intrigado: como sobreviveram a tanta fervura? Não sei, mas isso me convenceu de que os cupins possuem alguma propriedade resistente e medicamentosa.

Ao vê-los misturados ao mel, num esperneio sobrenatural, apelei para a abstração para não os repugnar. Primeiro, porque o risco maior era a pneumonia. Mas tinha também algum sentimento de vingança: afinal, eles não estavam comendo meu acervo? Pois agora eu…

Brincadeira à parte, o que vale mesmo é valorizar os remédios advindos de uma vivência secular na floresta.

No caso, um produto da tradição acreana que precisa ser explicado pela ciência. Nos dias atuais, 80% da população do mundo utiliza produtos que se originam de plantas medicinais como tratamento e prevenção de doenças.

Cerca de 25 mil espécies são usadas por tribos indígenas e comunidades amazônicas. Mas a ciência conhece menos de 1%, ainda, da riqueza que existe na natureza.

Meu pai, como o pai da Bia, viveu meio século nas matas do rio Iaco, e também conhecia lambedores e unguentos com os quais socorria os filhos na hora das doenças graves do seringal.

Lembro que em noite de lua cheia ele colocava no quintal, ainda cedo, uma bacia de gomos de cana-caiana descascados, e nos acordava à meia-noite para chupá-los. Era remédio contra a Coqueluche.

Na cozinha, junto ao pote de água de beber, tinha um copo de osso aproveitado do gogó do Capelão (o maior macaco da Amazônia), pra gente usar sem cerimônia contra a tosse de um modo geral.

Valeu, Bia e Márcia! Estou alardeando a história do lambedor na esperança de que mais pessoas se sintam estimuladas a falar de suas ricas experiências de vida nas entranhas da floresta.

 

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Elson Martins – Jornalista. Matéria publicada em seu blog almanacre no ano de 2015.

 

 
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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