DEMOCRACIA EM COLAPSO, POVOS EM EXTINÇÃO: O RETRATO YANOMAMI NO BRASIL
O colapso humanitário na Terra Yanomami durante o retrocesso civilizatório,entre 2019 e 2022, expõe a falência moral e política de uma democracia que ainda não aprendeu a chegar à floresta
Por Amanda Nascimento
A democracia brasileira sangrou em silêncio. Enquanto discursos de poder ecoavam em Brasília, corpos Yanomami definhavam em meio ao ouro, à fumaça e ao mercúrio. O que parecia uma pauta distante, “crise humanitária”, “garimpo ilegal”, “falência institucional”, escancarava uma verdade mais dura: a democracia, quando não chega às florestas, não é democracia.
Entre 2019 e 2022, o país viveu um retrocesso civilizatório. Sob Jair Bolsonaro, leis ambientais foram flexibilizadas, órgãos como Funai e Ibama desmontados, e a proteção territorial dos povos originários tornou-se letra morta. A “boiada” passou, levando consigo rios contaminados, aldeias desnutridas e vidas perdidas.
QUANDO O ESTADO OMITE, O GARIMPO GOVERNA
A Terra Indígena Yanomami, entre Roraima e Amazonas, é lar de mais de 30 mil pessoas. Mesmo assim, foi invadida por cerca de 20 mil garimpeiros, com a conivência explícita do Estado. O som das aeronaves clandestinas e das dragas substituiu o canto dos xapiri, os espíritos protetores da floresta.
“Os brancos matam o céu e a terra”, escreveu Davi Kopenawa em A Queda do Céu. Ele não falava em metáforas. Falava da morte concreta: dos rios cobertos de mercúrio, das crianças sem comida, das doenças trazidas por quem só conhece o ouro.
A omissão foi tamanha que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) precisou acionar o Supremo Tribunal Federal na ADPF 709, exigindo que o governo cumprisse o básico: proteger vidas. Mesmo assim, as medidas ficaram no papel. A floresta gritou, e ninguém escutou.
O RACISMO QUE CONTAMINA OS RIOS
O que matou os Yanomami não foi apenas o garimpo. Foi o racismo institucional que decide, de forma sistemática, quem merece viver e quem pode morrer. O chamado “racismo ambiental” é, na prática, uma política de extermínio travestida de descaso.
Permitir que comunidades racializadas sejam contaminadas, violentadas e esquecidas é escolher o lado da morte. E o Estado brasileiro, por quatro anos, escolheu. Eunice Paiva, em O Estado contra o Índio, já denunciava há décadas essa engrenagem: o Brasil protege o lucro e expropria a vida.
Sob Bolsonaro, essa lógica atingiu o paroxismo – a terra virou mercadoria, e os povos originários, obstáculos ao progresso. Mas o que chamam de progresso é apenas o nome moderno de um velho genocídio.
DEMOCRACIA DE SUPERFÍCIE
A Constituição de 1988 prometeu um país plural, livre e soberano. Prometeu o direito à terra, à saúde, à vida digna. Mas entre a promessa e a prática abriu-se um abismo. O Estado que deveria garantir direitos tornou-se cúmplice da destruição.
A democracia, como ensina a teoria da democracia defensiva, precisa se proteger dos que a corroem por dentro. E foi exatamente o que falhou: os instrumentos democráticos foram usados para atacar os mais vulneráveis.
Entre as ruínas institucionais, restaram corpos indígenas, rios envenenados e o eco de uma pergunta: que valor tem uma democracia que não protege os que chegaram primeiro?
O GRITO YANOMAMI COMO ESPELHO DO BRASIL
O caso Yanomami é mais que um desastre humanitário: é o retrato de uma democracia capturada por interesses privados, onde o silêncio institucional se transforma em arma. Quando o governo cala, o garimpo fala, e fala com tiros, com febre, com fome.
REERGUER O QUE FOI DEVASTADO
Reconstruir o Brasil exige mais do que restaurar ministérios e Conselhos. É preciso refundar o pacto democrático sobre bases plurais e vivas, onde os povos indígenas não sejam “assistidos”, mas protagonistas. Onde a floresta não seja “recurso”, mas território sagrado. Onde o conhecimento de Davi Kopenawa valha tanto quanto o de qualquer ministro.
“Os brancos não sabem parar”, diz o xamã. Talvez, então, o desafio da nossa democracia seja aprender a parar, ouvir, respeitar e proteger.
Enquanto o ouro continuar valendo mais do que a vida, o Brasil continuará doente. E enquanto a democracia não chegar aos rios e aldeias, continuará incompleta.
O FUTURO QUE AINDA PODE NASCER
A Terra Yanomami é um espelho, e nele o Brasil vê sua própria ferida. A democracia não pode ser apenas um sistema político; precisa ser um modo de existência. Democracia é o direito de existir com dignidade, cultura e floresta. O grito Yanomami é o grito da própria terra pedindo cura. E talvez seja desse grito que renasça um novo país.
Amanda Nascimento – De origem do povo Tabajara, jornalista socioambiental e pesquisadora em Comunicação e Democracia, escreve a partir da fronteira entre palavra e território. Sua escrita busca dar voz à floresta, às mulheres e aos povos que sustentam o país invisível.






