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DICA: SANTA, ILUMINADA OU BRUXA?

DICA: SANTA, ILUMINADA OU BRUXA?

Dica: Santa, iluminada ou bruxa?

Baluarte no empoderamento da mulher na política e precursora do feminismo em Goiás, Dica fascina, sempre!

Por Iêda Vilas-Boas

À mulher sempre foi destinado um papel social com valores visivelmente inferiores aos papéis desempenhados pelo homem. Temos alguns relativos avanços, embora sejamos, ainda, portadoras de uma bagagem construída à sombra do machismo e do patriarcalismo.

Sob essa égide, destaca-se a mítica figura de Santa Dica, mulher de vanguarda, a serviço do messianismo1  e do povo humilde de Goiás no início do século XX.

Benedicta Cypriano Gomes, a Dica, nasceu em 17 de janeiro de 1903 na Fazenda Mozondó, a 40 km de Pirenópolis. Por volta dos 7 anos de idade, caiu gravemente enferma, chegando a ser considerada morta, pois não possuía os sinais vitais.

Durante a preparação do corpo para apresentação ao velório, familiares perceberam que Dica suava frio. Por receio de que fosse enterrada viva, o velório foi alongado, e o enterro suspenso. Muito choro contínuo e, após três longos e penosos dias, Dica ressurgiu da morte.

Desperta do torpor mortal, a menina tornou-se possuidora de sabedorias secretas e de intimidades com o outro lado da vida, transformando-se em curandeira e, posteriormente, em profetisa. Seus feitos tinham a força de verdadeiros milagres.

A notícia correu pelos confins goianos e se espalhou pela região como isca de fogo em tempo de seca. Para os nativos, suas curas, profecias e milagres eram mesmo obra de Santa. Não tardaram a chegar fervorosos romeiros, gente roceira humilde, doentes desenganados, em busca das graças de Santa Dica.

De seus milagres à atuação política foi consequência natural. A mocinha Dica se indignava com a vida sofrida dos que estavam perto dela e, num ato de extrema lucidez política, comandou uma legião de oprimidos pelo sistema de governo, na tentativa de livrar seu povo que era massacrado, escravizado e sujeito às vontades oligárquicas das famílias endinheiradas patriarcais.

Seu chamado à luta deu-se pelas palavras da fé. Essa foi sua rebelião ao sistema. Santa Dica era acompanhada com fidelidade e devoção. Os sofridos vinham, se acampavam em torno de sua casa e, ali, foi nascendo um povoado.

De forma totalmente igualitária, a iluminada implantou um sistema comunitário de uso da terra e do dinheiro entre seu séquito. Para Dica, a terra era bem doado pelo Criador aos habitantes do planeta. Não conseguia entender cercas e arames farpados a impedir seu povo de desfrutar e cuidar do que era seu, por direito Divino.

Santa Dica possuía posses e não era pobre, mas o desejo de justiça e igualdade social eram temas recorrentes em suas pregações. Sua fazenda foi o primeiro cenário de compartilhamento de recursos, bens, oferendas e colheitas. Assim prosseguia, fazendo curas, milagres, rezando suas orações, ocupando lugar de Conselheira do pequeno povoado e pregando a valorização da mulher, a não violência, a justa distribuição de bens, e cultuando o coletivismo.

Com essas ações religiosas e de caráter político-social chegou a reunir uma legião de 15 mil almas, havendo em suas fileiras cerca de 1,5 mil homens trabalhadores acostumados com o uso das armas para suas atividades diárias de caça. Também estavam reunidos mais de 4 mil eleitores em torno dela. Essa soma foi o bastante para incomodar os coronéis goianos.

A fama de Santa Dica se alastrou, os fiéis se multiplicaram. Não demorou que percebessem que Dica encarnava a reprodução do episódio de Canudos. Perigo certeiro, nas mãos de uma mulher forte de espírito e de corpo franzino. Dos latifúndios fugiam os subjugados, ditos “diqueiros”. A imprensa local e do vizinho estado de Minas Gerais, inclusive com atuação do clero, cobrava providências governamentais contra os “fanáticos”.

Dica foi além no empoderamento do feminino e na promoção de igualdade de gêneros e classes. Para reforçar sua liderança popular e política editou um jornal manuscrito: “A Estrela do Jordão Órgão dos Anjos, da Corte de Santa Dica”. A líder criou em suas fileiras várias frentes, inclusive a de alfabetização, para que todos tivessem acesso aos documentos escritos.

E veio a represália. De um lado o exército “pé de palha”, tática usada pela Iluminada para que seus seguidores aprendessem a marchar. De forma que era amarrada uma palha no pé esquerdo do seu soldado para acompanhar o ritmo direito-esquerdo peculiar das tropas.

Entretanto, a força policial militar do governo estadual goiano, em 1925, juntamente com as autoridades civis e militares da cidade de Pirenópolis, envia um destacamento, sitia o povoado e prende Dica. O lugar foi palco de um massacre psicológico, ideológico e de pouca baixa do exército “pé de palha”.

Contam que as balas não feriam Santa Dica. As poucas que lhe chegavam enrolavam em seus cabelos e encontravam seu corpo fechado. Neste episódio, Dica foi presa, puxada pelos cabelos, ao tentar atravessar o Rio do Peixe.

Reza a lenda que, no momento da peleja, Santa Dica amarrou uma sucuri no poção que havia no fundo de sua casa, impedindo que os soldados do governo atravessassem o rio. Por crendice, ainda hoje, ninguém se aventura a nadar no local com medo da sucuri da Santa Dica.

Com provas inconsistentes e pressionado pela população, o governo liberou Dica, após seis meses de prisão. Daí ela tomou gosto pelo embate e ingressou na política. Exercia um poder extremo junto aos seus seguidores que votavam no candidato indicado por ela.

Pela formação de seu exército “pé de palha – pé sem palha”, por suas estratégias de combate e liderança, foi patenteada com a insígnia de Cabo do Exército Brasileiro.

Seu exército participou da Revolução Constitucionalista de 1932 com 150 homens, em São Paulo. O pelotão “pé de palha” regressou sem nenhuma baixa. Mais um milagre atribuído à Santa. Conta-se que as balas destinadas aos seus soldados caíam no chão transformadas em caroços de milho.

Dica casou-se em 1928 com Mario Mendes, um jornalista carioca que mais tarde tornou-se prefeito de Pirenópolis. Tiveram cinco filhos e adotaram mais dois. Morreu em 9 de novembro de 1970, em Goiânia, sendo sepultada, de acordo com seu desejo, debaixo da frondosa gameleira da sua casa em Lagolândia.

Foi velada por sua legião por três dias, em ato de profundo amor e devoção à linda moça da Fazenda Mozondó que foi guerreira e santa. Pilar na valorização dos direitos humanos em Goiás, na representação do feminismo e no empoderamento da mulher.

Referência bibliográfica: Vasconcellos, Lauro. Santa Dica: encantamento do mundo ou coisa do povo. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1991.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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