Direitos Autorais Coletivos e Individuais: O que isso tem a ver com a cultura indígena?

Direitos Autorais Coletivos e Individuais: O que isso tem a ver com a cultura indígena?

Por Jairo Lima

Na semana que passou, enquanto apreciava o sabor marcante do matxu* e admirava as belas peças de artes indígenas, trazidas do Festival Shanenawa, da Terra Indígena Katukina/, um pedido de esclarecimento sobre procedimentos de registro de canções me alertaram para uma situação que vem ocorrendo bastante, e que, certamente trará problemas para este , no . O interessante é que não se pode dizer ser uma situação exclusiva deste povo, pois já vi situações semelhantes ocorrendo, ainda que em menor grau, nos demais.

Trata-se da questão de registro das músicas tradicionais, cantadas por txana** e das canções de autoria dos diversos ‘cancioneiros indígenas’ dentro e fora do Brasil.

Com o aumento de jovens indígenas que, com o violão embaixo do braço, e munidos das chamadas ‘medicinas indígenas’ excursionam por esse mundão de carência espiritual um novo mercado vem crescendo bastante: o de registro, em CD e demais mídias, de canções indígenas.

Não sei se isso ocorre em outras fora da Ocidental, onde o uso da ayahuasca, aliada às canções indígenas trazem todo um interesse pela mística musical desse ‘universo encantado’, que só entende quem já adentrou nele.

No entanto, tem uma questão preocupante nisso tudo: em muitos casos, as canções tradicionais gravadas por alguns ‘cancioneiros’ não são de sua autoria, muito menos de ‘domínio público’, ao contrário, pertencem, sim, de algum modo, a um ‘recebedor’ (aquele que recebeu o mistério).

Cito isso pois, após essa consulta realizada a mim, por uma amiga ligada a uma organização indígena, quanto a um projeto de parceiros de uma das comunidades ligadas a esta organização, resolvi dar um ‘rolé’ virtual, em busca de alguns cancioneiros indígenas, a fim de observar algumas coisas, como, por exemplo, a abordagem que estes fazem da cultura tradicional em suas canções. Fiz isso mais por curiosidade musical mesmo, pois a música é um hobby que faz parte também de meu cotidiano.

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E nessa busca eis que, para minha surpresa e desencanto, me deparo com um jovem indígena apresentado sua ‘canção’, conforme descrita nas letrinhas iniciais do vídeo no youtube onde lê-se, também, que a gravação e o registro do txana ‘fulano de tal’ foi feito em parceria com um certo grupo, que possui um ‘nome de fantasia’ bem distinto que, por razões de respeito aos txai que são parceiros desse grupo, não citarei.

Então… no tal vídeo do txana este cantava uma canção em que foi apresentada como sendo dele, cantada na língua indígena, tendo sua primeira parte executada somente com a voz e, em seguida, acompanhada decentemente por este ao violão. Bem, a questão aí é que a canção tradicional não é dele, pois sei exatamente de quem é: do Romão Sales, o Tuin Kaxinawá, pai do grande txana e artista Isaías Ibã Kaxinawá.

Que doido isso. O pior é que está se tornando contumaz coisas do tipo. Já que cada vez mais vemos jovens com seu violão viajando e divulgando a cultura mundo afora. E, nisso, sempre tem algum ‘parceiro’ interessado em gravar o indígena, transformando essa divulgação da cultura em ‘produto de mercado’.

Bom, de cara cito logo que não vejo nisso uma má fé ou mau-caratismo do indígena que estava executando a canção, muito menos dos parceiros que realizaram a gravação. A meu ver, o problema aí está no amadorismo da coisa toda. Pois, caberia ao parceiro realizar uma pesquisa e consulta junto aos órgãos de proteção e registro, bem como aos órgãos indigenistas e indígenas de referência, para saber se tal canção é tradicional de uso coletivo, ou se ‘pertence’ a algum dos velhos pajés deste povo.

É preciso destrinchar e discutir bem essa questão do ‘direito autoral’ de determinada canção, principalmente no que se refere às chamadas ‘canções tradicionais’, de uso ritualístico do ou mesmo das festividades tradicionais. Assim, quando cito ‘pertencerem’ a determinado txai, me refiro ao fato de que foi este o instrumento de recebimento deste mistério, em forma poética de canção.

Em alguns casos, no Acre, é facilmente rastreável essa ‘autoria’, graças ao de registro e publicação de livros com canções, que vêm sendo feito há mais de trinta anos por organizações indigenistas e indígenas locais. Em outros casos, a ‘autoria’ perdeu-se nas brumas dos tempos passados, sendo repassados oralmente de geração em geração em diferentes comunidades.

Lembro que, no início dos anos 2000, eu mesmo participei de um movimento para divulgar e fomentar o uso das canções de nixi pae (ayahuasca), nas aldeias Huni Kuin da região do Tarauacá e Jordão. Assim, de posse de um excelente gravador digital,  fiz uma série de gravações do Isaías Ibã Kaxinawá, em alguns rituais de cipó que eu participei nos disputados e saudosos rituais no sítio da CPI/AC (Comissão Pró-Índio do Acre), durante os cursos de formação de professores indígenas no início do século XXI. A partir destas gravações, fiz uma série de cópias em K7, e, com este material todo, durante minhas viagens por esta região, distribuía aos professores e alunos cópias das fitas para que ouvissem e aprendessem.

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Teve vezes do próprio professor Isaías Ibã ir comigo em algumas dessas viagens, como as que realizamos nas Terras Indígenas Igarapé do Caucho, Praia do Carapanã e Alto Jordão, entre 2003 e 2005.

Aliado a este movimento, também houve uma série de publicações de livros didáticos e paradidáticos voltados aos rituais do ‘cipó’ (ayahuasca). No caso do Povo Huni Kuin, podemos citar os livros Nuku Mimawa Xarabu, que participei diretamente, no início dos anos 2000 e o Huni Meka – Cantos do Cipó, material lido e ricamente ilustrado, acompanhado de um CD, que contou com a organização da indigenista Dedê Maia. Isso sem contar outros tantos materiais escritos, de áudio e vídeo voltadas às diferentes festas das comunidades.

Como resultado nítido, vejo estas canções sendo replicadas em muitas festividades, principalmente nas Huni Kui, pois habitam doze terras aqui no Aquiry. Já ouvi versões das mais variadas, de canções do Isaías Ibã e do velho Inkamuru Huni Kuin.

Essa difusão toda é muito legal e importante para a manutenção desta rica tradição musical, mas, também, abre espaço para toda uma discussão sobre direitos autorais coletivos e individual (e de propriedade intelectual ?) que, a meu ver, é importantíssima e, que, caso não seja feita ou monitorada, poderão trazer consequências negativas no futuro.

Vale citar que eu já conversei com o Ibã sobre a necessidade dele registrar suas canções, dentro dos procedimentos formais dos nawá (não-índio), para evitar que outros a usem para ganhos próprios, sejam estes indígenas ou não.

O pior é quando nos deparamos com casos dos próprios nawá gravando suas versões e divulgando estas canções, como pude infelizmente constatar ao me deparar com algumas figuras, como um recentemente divulgando canções Yawanawá executadas e gravadas por ele e de outro, lançando seu novo trabalho de palco onde executa sua versão de algumas canções Huni Kuin.

Um outro ponto que quero aqui citar, para que fique claro para os leitores e sirva de orientação até para que possam utilizar de maneira correta: cantores tradicionais de rituais de cipó não é a mesma coisa que cancioneiro de músicas, entre estas as de cipó (artistas).

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Vamos lá, explico.

Pego como exemplo o txana, termo Huni Kuin para aquele que sabe cantar os mistérios do huni (ayahuasca). Esta figura não se refere a quem sabe uma ou duas canções de cipó na língua materna (o huni meka, nos rituais de nixi pae) , ao contrário, é uma pessoa que domina o conhecimento sobre as canções e suas técnicas de uso, de acordo com o tipo de cipó que se ingere (lembrando que entre os Huni Kuin e, geral são quatro tipos de preparo) e que trazem os mistérios de milhares de anos de seu povo.

Assim, não se pode ir chamando (em alguns casos se autodeclarando) txana em qualquer situação, só porque o indígena costuma estar cantando com seu violão mundo afora canções em rituais de ayahuasca. Entre estes txana não é difícil encontrar bons curadores e mestres da tradição, assim  como pajés (no termo geral da coisa).

O outro caso é o que vou chamar aqui de ‘cancioneiro’ – pelo menos até achar um termo mais correto, pois acho o termo ‘artista’ bem furreca. Este é uma pessoa que sabe cantar, tocar violão e compor (ou receber a canção dos espíritos sagrados) canções em português (muito raramente em língua indígena, mas igualmente lindas) que trazem, em diferentes níveis de percepção, aspectos específicos da cultura tradicional mais ‘antiga’ e, também, de aspectos desse novo ciclo cultural, onde diferentes simbologias sagradas da civilização nawá, como santos, seres da natureza (como sereias), ícones orientais, etc,  foram incorporadas pelas culturas originais. Nada de errado nisso, deixo claro.

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Também acontece de que em alguns pouquíssimos casos, este domina, canções tradicionais dos velhos pajés de seu povo, sendo também, curadores, pois estes possuem bastante conhecimentos da mística – das medicinas tradicionais –  quanto das canções tradicionais de seus , tanto de ‘autoria’ individual quanto de conhecimento coletivo.

Para quem costuma assistir as festas nas comunidades poderá ver que, em muitos casos, as canções executadas na língua indígena nos rituais do cipó, não são executadas em outras atividades, como as danças durante os festivais. No entanto, em muitos casos, as canções em língua portuguesa, de autoria dos cancioneiros, acabam sendo executadas nestes dois momentos.

Citei tudo isso, até para valorizar essa figura, o cantor tradicional, munido somente de sua voz e conhecimentos profundos da cultura ‘dos antigos’, que quase poderia estar na lista de funções em extinção em algumas comunidades aqui do Aquiry, devido a grande popularidade e aceitação do ‘público’, cada vez maior, dentro e fora das comunidades de seguidores dessa tendência mais contemporânea de apresentar a cultura indígena.

Aí voltamos ao ponto de partida do texto: a necessidade de se resguardar os direitos autorais coletivos, individuais, e até mesmo, se for o caso, a propriedade intelectual desta expressão da tradição – e porque não das demais expressões -, pois, da maneira como vem sendo feito, os que menos são beneficiados com essa prática são os povos indígenas e seus membros, detentores desse conhecimento. Afinal, a ‘roseira’ tá cheia de ‘parceiro’ se dando bem e conseguindo holofotes por causa desses conhecimentos. Por isso creio que tá na hora de ‘balançar a roseira’.

Tá na hora de haver uma reflexão e discussão séria sobre essa situação.

Encerro este texto com pesar no coração, e uma grande revolta também, ao ver as tristes notícias de mortes de índios isolados, por garimpeiros que, tomados da gana insaciável do demônio dourado, matam o que existe de mais precioso para essa nossa civilização ocidental ambiciosa e egoísta, mostrando que algo de bom ainda existe nesse mundo de sangue, lágrimas e alegrias artificiais: os povos em isolamento voluntário (ou não), que ainda resistem em se misturar com a podridão de nossa .

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Notas do Autor:

* Bebida fermentada à base de macaxeira ou batata doce;

** Txana é o termo Huni Kuin usado para designar a pessoa que domina o conhecimento sobre as canções de cipó e de outros rituais do seu povo, sendo um termo mais específico, no entendimento atual, para canções de cipó;

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.

Imagens utilizadas no texto:

Imagem 1 (Capa): Obra de Edilene Sales Huni Kuin; Imagem 2: Capa do Livro “Yuxin – Alma”, de Ana Miranda; Imagem 3: Obra de Isaías Sales Ibã Huni Kuin; Imagem 4: Capa do Livro Nuku Mimawa Xarabu, Acervo CPI/AC; Imagem 5: Livro Huni Meka – Cantos do Nixi Pae, acervo, CPI/AC; Imagem 6: Obra de Diana “Yaka” Paris.

 

 

 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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