Dona Flor: Cerratense, Raizeira e Parteira do Moinho
Ao avançar pela GO-118, sentido Brasília-Alto Paraíso, é marcante a presença de chapadões e formações rochosas que descortinam a beleza cênica do bioma Cerrado na região
Por Eliana Feitosa
Em Alto Paraíso, muitos são os lugares intocados, com pouca ou nenhuma interferência humana, santuários ainda preservados. Dentre eles encontra-se o Povoado do Moinho.
Situado a 12 km da cidadezinha de Alto Paraíso, entre nativos e chegantes, no Moinho vivem pouco mais de 200 pessoas, em sua maioria afrodescendentes (maior concentração do município) que preservam seus modos de vida e tradição desde os tempos em que fugiram da escravidão.
O Moinho está localizado no coração da Chapada dos Veadeiros, às margens do Rio São Bartolomeu, afluente do Rio Paranã, na bacia do Rio Tocantins. Perto dele passa o Rio Preto, afluente do São Bartolomeu, que alimenta a cachoeira Anjos e Arcanjos, principal atração turística local.
O historiador Luiz Lima, profundo conhecedor da geografia e história da Chapada dos Veadeiros, descreve o lugar com riqueza de detalhes:
“Na grande curva que custeia a serra, descortina-se, a norte, o grande e profundo Vale do Moinho, com vila minúscula e escondida no arvoredo de quintais frondosos. Lá em baixo, já na cota mil, os sítios com singelas casinhas de adobe, evocam sutis encantamentos. Nesta panela férica e temperada, o rio São Bartolomeu, pra lá e pra cá, vai intercruzando as pontes do caminho, banhando como Nilo benfazejo, as terras que outrora vicejou pepitas de ouro, e depois dourados trigais. ”
DONA FLOR
Dona Flor do Moinho, 78 anos, mãe de 18 filhos paridos, e de outros criados, conta que já realizou mais de 300 partos.
Aos nove anos de idade, já preparava chás e efusões sob a orientação da mãe. Teve todos os seus filhos de parto normal, em casa, e cuidou de si mesma e de outras mães com os preparados de ervas e plantas do Cerrado.
Sobre esse conhecimento, dona Flor explica: “Aprendi tudo olhando, sempre fui muito curiosa, queria saber o que acontecia quando a mãe ia ganhar a criança, logo me ofereci para ajudar, era tudo muito normal. Tive meus filhos só, logo, uso muito o barbatimão, é a planta da mulher, não pode tomar muito não, mas antes de engravidar ele limpa tudo e depois do parto cicatriza. ”
Descendente de negros que se estabeleceram há muitas décadas na região, onde encontraram refúgio e condições de vida no Cerrado, dona Flor faz parte dos Quilombola que vivem Moinho, descendentes de escravos e de índios do tronco Macro-Jê.
Segundo dona Flor, a grande herança de seus ancestrais é o conhecimento tradicional, fruto da união dos povos indígenas e negros, oriundos da escravidão, muitos deles servidores dos garimpos durante a corrida pelo ouro que ocorreu na região.
AS FONTES DE CURA DE DONA FLOR
A economia no Povoado do Moinho está diretamente ligada às belezas do lugar e à comercialização de produtos como artesanato, verduras orgânicas e preparados como xaropes e garrafadas da medicina tradicional, objeto de procura de pessoas vindas de diversas partes do Brasil e o mundo que visitam o povoado.
O Cerrado é alimento e cura, fonte de renda e lazer. Nessas comunidades cada indivíduo desempenha um papel importante para o grupo, sempre respeitando as lideranças, os mais velhos, traço dos costumes repassados pela ancestralidade e pelo harmonioso convívio que estabelecem.
A qualidade da água que alimenta rios, córregos e cachoeiras do Moinho alimentam também uma fração de Cerrado com características medicinais peculiares. O Rio Pretinho que alimenta a horta e os cultivos nos quintais nutre espécies de várias potencialidades terapêuticas.
O conhecimento tradicional em meio a uma sociedade que considera a natureza elemento comercial, subjugada e cuja finalidade é o lucro, tende a desaparecer caso não haja intervenções de manutenção da comunidade tradicional no campo e valorização da sabedoria ancestral.
A origem das plantas medicinais utilizadas nas preparações de remédios caseiros é muito diversificada: elas são cultivadas ou coletadas no Cerrado, doadas por pessoas conhecidas, adquiridas através de troca por remédios caseiros, ou ainda compradas em mercados ou raizeiros.
Todos possuem indicação, modo de usar e composição, mas é na cuidadosa orientação de Dona Flor que os adoentados mais confiam. Entre os remédios manipulados da farmácia instruções e receitas de diversos chás, emplastos, efusões que tem as plantas do Cerrado como princípio ativo.
AS CIÊNCIAS DE DONA FLOR
A coleta das ervas, plantas do Cerrado revela o ritual de respeito e reverência à natureza, representa o conhecimento indígena que foi repassado aos negros africanos que se refugiaram no lugar, sobre a forma de coletar plantas “do mato” para fazer os remédios.
Dona Flor explica: “Para buscar as plantas primeiro você prepara o coração e o espírito para trabalhar a natureza. Você não pode retirar uma folha, casca ou flor da floresta se você estiver com mal humor ou raiva senão a planta morre.”
Proteger comunidades tradicionais é perpetuar o bioma e as espécies que nele vivem. O Cerrado, berço das águas, necessita de uma legislação que valorize o “preservar” acima do desmatar para desenvolver, cultura implantada na década de setenta no Centro Oeste.
As comunidades tradicionais remanescentes de quilombola que vivem na região da Chapada dos Veadeiros são o exemplo da convivência harmônica do homem com o Cerrado. O Cerrado é alimento, é cura e é vida. Assim pensa a cerratense dona Flor.
Eliana Feitosa – Mestranda em Geografia pela Universidade de Brasília. Licenciada em Geografia pela UEG – Formosa. Pedagoga e Teóloga. Pesquisadora de Comunidades Tradicionais. Este artigo é fruto das pesquisas de campo para a Dissertação de Mestrado – Identidade e Cultura: estudo etnogeográfico da comunidade tradicional do Moinho em Alto Paraíso/GO, ocorrida entre 2015 e 2016.