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“É O AMAZONAS, A PÁTRIA DA ÁGUA”

É o , a Pátria da Água

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A meu lado, de pé na proa do barco, vento no peito, o menino olha silencioso a imensidão do rio. Acabamos de deixar a boca, cheia de garças,  da floresta Paraná do Limão, que se abre no Amazonas, pertinho de Parintins.

Pela margem direita, diviso distante o perfil da cidade na firme da ilha de Tupinambarana. Noto que o menino se volta para o lado oposto, olhar fixo no rio, cuja pele fulgura, coberta de escamas de prata.

Por tanta que seja a luz, a vista não dá com a outra margem. Num tom de quem duvida, o menino me pergunta:

– Tudo isso é água?

– Tudo, lhe respondo. Tudo é água.

– Água, mais água.

– Ela está indo pra onde? Onde ela acaba?

– Água de rio termina no mar.

– E onde acaba o mar, que também é água?

– É água, só que salgada. O rio deixa de ser doce e vira mar. Mas ninguém sabe onde termina o mar.

O menino permanece calado por um , o pensamento derramado  no rastro de espumas que o barco grava e o vento vai apagando. Logo vem de pergunta nova:

_ E onde a água começa? De onde é que o rio vem?

– Vou lhe contar.

Da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água se desprende e traça um risco trêmulo na face antiga da pedra: o Amazonas acaba de nascer.

A cada instante, ele nasce.

Descende devagar, sinuosa luz, para crescer no chão. Varando verdes, inventa um caminho e se acrescenta. Águas subterrâneas afloram para abraçar-se com a água que desceu dos Andes.

Do bojo das nuvens alvíssimas, tangidas pelo vento, desce a água celeste. Reunidas, elas avançam, multiplicadas em infinitos caminhos, banhando a imensa planície verde, cortada pela linha do Equador.

Planície que ocupa a vigésima parte deste lugar chamado Terra, onde moramos. Verde universo equatorial que abrange nove países da América Latina e que ocupa quase metade do chão brasileiro.

Aqui está a maior reserva de água doce, ramificada em milhares de caminhos líquidos, mágico labirinto que de si mesmo se recria incessante, atravessando milhões de quilômetros quadrados de território verde.

É o Amazonas, a pátria da água.

Thiago de Mello – Poeta maior da Amazônia e do Brasil, encantado em 14 de janeiro de 2022, aos 95 anos, em  Amazonas: Águas, Pássaros, Seres e Milagres – Editora Salamandra, 1998.

 
É O AMAZONAS, A PÁTRIA DA ÁGUA
Prefeitura de Manaus
 

“Me despeço para permanecer”: morre o poeta Thiago de Mello

Por Gabriela Moncau/Brasil de Fato 

Como quem reparte pão, como quem reparte estrelas, como quem reparte flores, eu reparto meu canto de . Com uma estrofe apenas, eu me despeço – para permanecer com vocês. Me despeço para permanecer”. 

A fala do poeta, escritor, jornalista e tradutor Thiago de Mello foi pronunciada em um evento na Biblioteca Mário de Andrade, em , em comemoração aos seus então 90 anos. Na sexta-feira, 14 de janeiro de 2022, aos 95, morre o gigante da . Mas permanece. 
A causa de sua morte ainda não foi divulgada. De acordo com a Folha de S. Paulo, familiares informaram que ele partiu dormindo.  
A vasta obra de Thiago de Mello já foi traduzida para cerca de 30 idiomas. O seu mais recente – um texto antigo mas até então inédito – foi publicado em 2020 pela editora Valer, sob o título Notícias da visitação que fiz no verão de 1953 ao e seus barrancos.  
Entre seus muitos livros de poesia estão A lenda da rosaPoesia comprometida com a minha e a tua vidaMormaço na florestaVento geral e Num campo de margaridas

Faz escuro, mas eu canto 

Nascido em 1926 em Barreirinha, no interior do Amazonas, Mello cursava medicina no Rio de Janeiro na década de 1950 quando resolveu levar alguns de seus versos para Carlos Drummond de Andrade. Disse que pensava em abandonar a faculdade e se dedicar às letras. O já consagrado escritor desaconselhou o jovem: viver de poesia não é coisa fácil. Mello o desobedeceu.   
Chegou a trabalhar como adido cultural na Bolívia, no Peru e no Chile, mas em curto tempo teve a carreira diplomática interrompida pelo golpe militar brasileiro, em 1964. Quando deflagrado, Mello estava a trabalho na capital chilena e recebeu a notícia de Salvador Allende que, dali a nove anos, sofreria um golpe ele próprio. 
:: “Nem sob a ditadura a cultura foi tão chutada como agora”, avalia Juarez Fonseca ::
Nesse momento Thiago de Mello começou a escrever o que se tornaria um dos seus mais conhecidos poemas: Os estatutos do homem.  
Nele, o poeta decreta: “Fica proibido o uso da palavra liberdade / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio / e a sua morada será sempre o coração do homem”. 
O texto compôs o livro Faz escuro, mas eu canto: porque a manhã vai chegar, publicado em 1965 e cujo título – trecho do poema Madrugada Camponesa – foi tema da mais recente Bienal de São Paulo, realizada em setembro de 2021.  
Uma versão musical de Faz escuro, mas eu canto foi feita em parceria com o sambista Monsueto Menezes e gravada por Nara Leão.  
Por sua luta contra a ditadura militar, Thiago foi preso por cerca de um mês e meio. Em 1965 participou de um protesto no Rio de Janeiro feito por intelectuais e artistas, em frente ao hotel Glória. Na ocasião, ele foi um dos detidos que ficaram conhecidos como os “oito da Glória”. Entre eles, estavam Carlos Heitor Cony, Antonio Callado e
Em 1969, o poeta partiu para o exílio. Viveu na Argentina, em Portugal e no Chile.  
Conviveu com alguns dos maiores escritores latino-americanos, tais como Mario Benedetti, Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez e Pablo Neruda. Este último, por quem nutriu amizade, teve livros traduzidos ao português por Thiago de Mello.  

Em defesa das florestas

Desde que retornou do exílio nos anos finais da ditadura militar, Mello viveu, até seus últimos dias, no Amazonas.  
A terra onde nasceu foi homenageada em seus versos, suas lutas e também nas suas publicações em prosa, como nos livros Manaus Amor e MemóriaAmazonas, pátria da Água e Amazônia – a menina dos olhos do mundo
:: “Pretos de Peleia me obrigou a me reinventar como poeta”, conta Renato de Mattos Motta ::
Em entrevista concedida à Revista Princípios em 2014, Thiago de Mello já alertava para os impactos negativos do aquecimento global na vida da floresta amazônica.  
“Eu busquei contribuir para o conhecimento da floresta com meus livros. São seis ou sete livros só sobre a vida na floresta: suas lendas, seus mitos, seus milagres, suas grandezas, suas misérias também…”, relata o poeta amazonense.  

 

Na mesma entrevista, o escritor afirma que “quando parcela de um povo se conscientiza, sabe as razões por que esse povo está sendo oprimido, a primeira coisa que faz é querer organizar-se, organizar-se para lutar”. E completa: “Esse povo conscientizado vai crescer e vai ser invencível”.

Edição: Ednilson Valia e Vinícius Segalla

É O AMAZONAS, A PÁTRIA DA ÁGUA
Portal do Amazonas
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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