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Educação como prática de resistência

Educação como prática de resistência

Aqui, o patrão não deixava o filho do seringueiro ir pra escola, [era] radicalmente proibido escola em seringais…

Por Chico Mendes 

Eu, por exemplo, comecei com nove anos, engatinhando, aprendendo a andar na mata pra cortar seringa pra ajudar meu pai, porque eu tinha que contribuir para o aumento de produção do patrão. Se eu fosse pra escola, se fosse criada uma escola, o que que acontecia, a produção ia diminuir porque os filhos dos seringueiros iam ter que ir pra escola (perfeito), iam perder tempo, então o patrão não deixava. 

O que acontece, 99% dos seringueiros, dos filhos dos seringueiros, [eram] todos [eles] analfabetos. (Você estudou, né Chico, como é que [vo]cê estudou?] Bom, eu… o meu professor(porque você fala muito bem, você estudou… como que você estudou, sozinho?)

Olha, a minha história… (você leu o que, como é que a sua história de conhecimento). A minha história do meu estudo parece até subversão. Eu vivia, nessa época nós, muito jovens, juntos, que não sabíamos de nada. Eu tive a sorte, meu pai sabia um pouquinho, o ABC. 

A minha sorte foi que, no seringal que eu trabalhava, na região que  eu morava naquela época, tava a 5, 6 quilômetros da fronteira da Bolívia, [lá] eu descobri  um exilado político, companheiro de [Luiz Carlos] Prestes, que foi da Intentona  [Comunista] de 35 (riso), foi preso na Ilha de Fernando de Noronha, conseguiu fugir, veio  para o Pará, fugiu de Belém também num navio, de calção, foi pra Bolívia, envolveu-se nos  movimentos de resistência dos operários bolivianos, e também foi o tempo de repressão  na Bolívia, ele não teve como escapulir, ficou encurralado, ele preferiu a opção pela mata,  pela floresta. 

Então ele tinha um barraco (em que local, na fronteira com a Bolívia?)

Aproximadamente 7 quilômetros da fronteira com a Bolívia. Então um dia, uma tarde, quando a gente chegava do mato, esse companheiro chegou na nossa casa, a gente tava defumando, ele se agradou de mim, fez um pacto com meu pai para, nos finais de semana, eu caminhar 3 horas de pés numa varação, na selva, pra chegar no barraco dele, que ele interessava em me ensinar a ler. 

Bom, minhas aulas foram feitas através de recortes de jornais que eu não sei como é que ele recebia. Ele também tinha um rádio e as minhas aulas, parte das aulas, era o seguinte: uma noite, se ouvia os comentários em português da Voz da América, eu não tinha conhecimento com os noticiários internacionais até essa época

Eu não entendia, igual aos outros meus companheiros também. Aí, ele começou a me explicar aquela ideia. Ele começava a me explicar o que que significava aquela ideologia dos americanos e tal. No outro dia, ele me fazia ouvir os comentários da BBC de Londres (no rádio?) era o rádio, minhas aulas eram essas. No outro dia, ele ouvia o comentário da Rádio Central de Moscou. 

Na Rádio Central de Moscou, era na época de 64, tempo do golpe militar, dizia o seguinte: olha, tantas lideranças sindicais no Brasil tão sendo torturadas, a nossa solidariedade internacional aos patriotas brasileiros, que tão sendo torturados, vítima da repressão, da ditadura militar que foi articulada pela CIA, (você pode falar pra gente o nome desse companheiro que ensinou a você ler?) Eu posso, no final eu vou falar. 

Aí, então, ele me ensinava. A Voz da América dizia, olha, a Revolução Democrática e Popular no Brasil (as duas versões) o perigo do comunismo. Aí ele tirava uma noite pra me explicar… a situação, a posição desse aqui, a posição desse (nessa época você tinha nove anos, dez anos?) Não, nessa época eu tinha 19, quase 20 anos já. Mas a gente começou 62, 63. 

A BBC de Londres fazia um paralelo, ela dava a notícia de um lado e outro, então ele dizia, ó: A BBC de Londres é uma rádio mais ampla, ela não defende a ideologia dos ingleses, do governo, ela divulga o que acontece no mundo, então ele me orientava a ficar mais sintonizado com a BBC. 

Aí ele me explicou que  durante aquele período que a gente tava enfrentando, ele me explicou o que tava  acontecendo, apesar de tá isolado, mas que, “quem sabe, Chico, daqui a cinco, dez, oito  anos, o movimento de resistência dos trabalhadores vai começar a surgir, vão criar novos  sindicatos, a ditadura vai ter que aceitar, agora, vai ser controlado pela ideologia militar,  todos esses sindicatos vão ter intervenção” (e foi o que houve, mesmo). 

“Agora é o seguinte, você não pode deixar de entrar nesse sindicato, vai chegar, mais hoje, mais amanhã, chegará o sindicato para os seringueiros e você entra, você não pode deixar de entrar no sindicato porque é lá que você vai montar suas raízes, que vai enraizar e eu lhe garanto que, um dia, se eles não te matarem, você vai conseguir ser uma grande força para os seus companheiros”. Eu fiquei com aquilo na cabeça, será que isso vai acontecer… 

O nome dele era Euclides Fernandes Távora. 

Chico Mendes Depoimento histórico, gravado em áudio (em fita cassete) por Lucélia Santos, em sua primeira visita ao Acre, a convite de Chico Mendes, em maio de 1988. Transcrição feita por Zezé Weiss e Agamenon Torres para a peça Vozes da Floresta, de Zezé Weiss, produzida e apresentada por Lucélia Santos no SESC Ipiranga, em São Paulo, nos meses de outubro e novembro de 2022. As marcações em itálico são questionamentos de Lucélia durante o diálogo da entrevista. Título do texto criado por Zezé Weiss, para a edição 98 da Revista Xapuri.

 

https://xapuri.info/elizabeth-teixeira-resistente-da-luta-camponesa/

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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