Elomar, o Trovador
Aos 21 de dezembro de 1937 nasceu na velha casa da Fazenda Boa Vista, em Conquista, o compositor Elomar Figueira Mello.
Por Guilherme Cobelo
A contragosto, é verdade, pois se fosse pela vontade do bardo ele jamais teria aportado neste mundo: “eu saltei na estação errada”.
Não podendo fazer nada contra isso, aqui desceu e foi ficando, já se vão quase oito décadas. Fascinado em sua infância por figuras próximas como Zé Krau – o menestrel errante, compreendeu cedo o sentido que sua existência haveria de tomar. Devido a um “gen vagabundo” tomou jeito para as artes.
Senhor de estilo único, Elomar tem pelo menos um dia inteiro preenchido por suas incelenças, cantigas, parcelas, antífonas, sinfonias e galopes estradeiros. Sua discografia é significativa: 16 discos, sendo que seu primeiro compacto foi lançado em 1968, com as clássicas “O Violêro” e a “Canção da Catingueira”.
O imaginário trovadoresco e propriamente sertanejo está presente desde então. Cantando, ele é o menestrel errante que desdenha o dinheiro em nome da viola, da alforria e do amor, e que forjou seus valores ao longo de muito estradar, vendo o ser humano do sertão padecer dividido entre a seca e a miséria.
O álbum “Das barrancas do rio Gavião”, lançado em 1973, marca sua entrada definitiva para a história da música brasileira. Uma gravação tosca de voz e violão onde estão simplesmente contidas algumas das pedras fundamentais de seu cancioneiro.
Sua formação musical registra notável herança ibérica: o enlace complexo com o instrumento, o diálogo constante entre canto e toque, a originalidade da estrutura, moldada ao sabor da história que se conta. Essa aproximação com a arte europeia é perceptível também em sua poesia, que traz em muitos de seus versos imagens típicas do universo medieval do ocidente.
Situado no sertão baiano, contudo, as palavras que escorreriam de seus lábios não poderiam ser outras que não as do povo de lá. É o sertanez, uma variante linguística que na boca de Elomar sintetiza a norma e os dialetos, o culto e o prosaico da língua portuguesa.
Desse encontro nasce o arquétipo do “cavandante” enluarado que vaga em um mundo fantástico de profundos sertões, areias de ouro, princesas e castelos, reis loucos. O “príncipe da caatinga”, como escreveu Vinícius de Moraes, com 34 anos já possuía “muitos séculos de cultura musical”.
É o Elomar-rapsodo, o andarilho que, após correr muito trecho ao lado de retirantes e devorar léguas, se demora brevemente nalgum arraial para encantar e comover a plateia com suas histórias e toadas dolentes, trazendo por novidade apenas a fantasia, pois que o mundo real que se descortina em suas canções é sempre o mesmo vale desolado no qual a humanidade luta para sobreviver.
Com o disco-duplo Na Quadrada das Águas Perdidas (1978) – que conta com a presença ilustre de alguns malungos como Xangai, Dércio Marques e Carlos Pita – chega ao ápice um ciclo de amadurecimento formidável. Aos 41 anos, o compositor supera o cancioneiro, sem abandoná-lo, e daí por diante lança-se em novas e ousadas empreitadas.
Em 1981, realiza seu primeiro registro sinfônico, o poema épico Fantasia Leiga para um Rio Seco, executado pela Orquestra Sinfônica da Bahia. Em 1983, surgem as Cartas Catingueiras, disco duplo que apresenta algumas peças para violão solo compostas em sua juventude, e o monumental Auto da Catingueira que, de acordo com sua página pessoal, é a “obra-prima definitiva da poética sertaneza brasileira”.
Os três volumes do renomado projeto Cantoria, os dois primeiros gravados em parceria com Xangai, Vital Farias e Geraldo Azevedo, são de 1984. Sua obra erudita também amadurece bastante nessa época e, a partir de então, sua escrita orquestral enveredará por óperas e antífonas. Formado em Arquitetura, Elomar chegou a projetar um teatro (Domus Operae), em uma de suas fazendas, dedicado à montagem de óperas brasileiras.
O interesse por sua obra expandiu-se para além dos limites continentais. Em 1986, recebe seu primeiro prêmio internacional na Alemanha. Contudo, não lhe é agradável tocar para plateias que não compreendem suas letras, tampouco o estrelato que o inquieta. Recusa os inúmeros convites que lhe chegam desde o estrangeiro.
É notória sua aversão a entrevistas e fotografias. O que lhe importa é ser compreendido através de suas criações. Por isso em 2007 foi criada a Fundação Casa dos Carneiros, em referência à fazenda onde mora, na região das Gameleiras, a 20 km de Vitória da Conquista. Ela é responsável por preservar e divulgar sua obra literária.
“Minha música é fora de moda, é cafona. Não consegui me modernizar”, costuma dizer. Um deleite para os iniciados, cujo desejo é que Elomar Figueira Mello viva muito mais, e que seja lembrado através dos tempos para a glória da catingueira. Apois!
Publicado originalmente em 13 de maio de 2016.