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Entre pássaros, leões e hienas – Literatura Indígena

Entre pássaros, leões e hienas – Literatura Indígena

“Narrar é resistir” (Guimarães Rosa)

Por José Ribamar Bessa Freire/TaquiPraTi

Eram dois mundos diferentes. No planalto, o leão disputava a carniça do poder com a hiena, que nele votara para o posto de rei da floresta e, agora, arrependida estava. Na turva escuridão os dois se digladiavam, auto excluídos – coitados! – do prazer da literatura. Enquanto isso, na planície esvoaçavam pássaros, borboletas, grilos, jabutis e peixes alados, que celebravam alegremente o 16º Encontro de Autores Indígenas realizado na Biblioteca Parque Estadual, lotada de crianças e jovens de escolas do Rio encantadas com as histórias ali narradas. O tema “A Literatura Indígena como esperança: Faz Escuro mas eu canto” homenageava o poeta .
O evento foi aberto na terça (29) com discurso poético do presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, seguido de um ritual de danças e cantos comandado pelo escritor Daniel Munduruku. Após a entrega de certificados aos três vencedores dos Concursos “Curumim” e “Tamoios”, no auditório Darcy Ribeiro, ocorreram debates em várias mesas, a primeira delas – Línguas Indígenas e Literatura: e Resistência – contou com as vozes de Marcos Terena, Denilson Baniwa e deste locutor que vos fala.
Depois, a programação indicava mais duas mesas:  Leituras que alimentam esperanças, com Alcione Pauli (SC), Aline Franca e Aline Pachamama e Vozes que alimentam sonhos com Eliane Potiguara (RJ), Aurita Tabajara (CE) e Julie Dorrico, Makuxi, vencedora do prémio FNLJI 2019. Tudo isto ocorreu no contexto da 21ª edição do Salão do Livro para crianças e jovens organizado de 23 a 31 de outubro pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) que há 51 anos vem promovendo o prazer da leitura. Os abutres, hienas, serpentes e leões ficaram sempre de fora e vão morrer sem saber o que é se deleitar com a poesia.
Preciso desenhar?
O cardápio foi variado com lançamentos de livros, conversa entre leitores e autores – Marina Colasanti estava lá – e performances de ilustradores indígenas e não indígenas, entre os quais Luciana Grether e Denilson Baniwa que mostraram às crianças e jovens como fazer desenhos para livros. “Passei parte da minha vida ouvindo os “brancos” tentando me explicar as coisas e reclamando impacientemente: preciso desenhar? Trocamos os papéis, agora sou eu que pergunto: quer que eu desenhe?” – diz Denilson, autor da arte gráfica da exposição Dja Guatá Porã no Museu de Arte do Rio (MAR).
A programação contemplou ainda o lançamento do Cascudinho – o peixe contador de histórias da Editora do . O autor do texto – este locutor que vos fala e Luciana Grether – que o ilustrou, conversaram com as crianças sobre o livro, que narra uma semana na vida de um bodó, aluno da Escola do Igapó no . Para justificar seus atrasos diários, inventa histórias mirabolantes, mas que fascinam seus colegas de aula, adquirindo fama de mentiroso. Os protagonistas são 61 peixes, quase todos da .
Na conversa, foram mencionados autores que refletiram sobre o ato de narrar. Umberto Eco, com as histórias inacreditáveis de Baudolino, um filho de camponeses que adora inventar histórias e se autodeclara “o maior mentiroso do mundo”. Gabriel Garcia Márquez para quem “a vida não é aquela que uma pessoa viveu, mas a que ela recorda e como recorda para contá-la”. Nabokov que vê “a memória como um músculo da imaginação” e Picasso convencido de que “qualquer obra de arte é uma ‘mentira' que nos aproxima da realidade”.
Existe, portanto, um outro patamar de verdade: o literário. Se uma história criada pela fantasia nos ajuda a compreender o que antes era incompreensível, se ela dá sentidos ao mundo, então ela é verdadeira. Parece que a tal da “escola sem partido” é, na realidade, “a escola sem histórias, sem literatura”, a escola de “quem sonha com o AI-5”, que para eles é um sonho, mas para nós, um pesadelo.
Bunda-baixa
O pesadelo, além da literatura indígena, é registrado nas letras africanas. Há dez anos, o Taquiprati adaptou à realidade daquele momento um conto do escritor Amadou Hampâté Bâ, publicado na França, em 1999, com o título “A Justiça dos Poderosos”. Merece agora uma versão reatualizada, aqui resumida.
O Leão, conhecido como o “Minto”, se candidatou pelo Partido Sem Literatura criado pela Hiena. Foi eleito “Rei da Floresta” com os votos do Burro, do Urubu, da Anta, da Cobra e de outros bichos. A vitória deixou disponível grande quantidade de carniça para o Partido Sem Literatura, gerenciado pela Hiena, que foi agraciada com o título nobiliárquico de “Baronesa de Bunda-Baixa”, de acordo com o AI-5 baixado pelo Leão:
Art. 1 – Fica proibido, sob pena de tortura e morte, exumar um cadáver enterrado para consumir sua carne.
Art. 2 – O consumo da carniça só pode ser feito com autorização do Leão.
Art. 3 – A Hiena, Baronesa de Bunda-Baixa, fiscalizará o cumprimento da lei.
Art. 4 – O presente decreto entra em vigor a partir de hoje.
O Leão acreditou que dessa forma controlava a carniça, mas a Hiena, ambiciosa, entrou de noite no laranjal, desenterrou cadáveres e devorou as carnes putrefatas. Comeu a parte do Leão e da sua cria. O julgamento sumário foi feito de acordo com o tão sonhado AI-5. A meritíssima Anta, juíza do caso, mandou prender e algemar cinco suspeitos, convocando-os para julgamento sumário. Vestida com a toga-casaca de vampiro e com aquele chapéu de bolo-de-noiva, a Anta abriu a sessão do Supremo Tribunal da Floresta. Os cinco suspeitos entraram algemados: o Boi, o Tamanduá, a Onça, o Mutum e o Urubu-Cabeça-de-Piroca.
– Não como carne nem que a vaca tussa – disse o Boi da Cara Preta em sua defesa, alegando que só se alimentava de erva, pasto e capim, não tinha dentes caninos e incisivos superiores para comer carne, além disso a disposição das patas impedia-o de desenterrar um corpo. O juiz o liberou e chamou o segundo suspeito que tinha unhas poderosas.
Amigo da onça
O Tamanduá Abraçador, que efetivamente podia desenterrar um cadáver com suas garras dianteiras, alegou que só eram usadas para cavar formigueiros e cupinzeiros, que se alimentava exclusivamente de formigas e cupins, que não possuía dentes e que seu estômago era mais uma prova de que não podia tragar e engolir carne. Amigo da onça, o Tamanduá sugeriu ao juiz que procurasse o criminoso entre os carnívoros.
O juiz, então, cutucou a com a vara curta da lei. Ela deu um esturro e exibiu atestado médico assinado pelo famoso gastroenterologista José Messias comprovando que felinos se alimentam de carne fresca e bife mal passado, sangrando e não de carniça. “Procure os abutres” – recomendou.
– Que tipo de carne você consome?  – perguntou o juiz ao quarto suspeito, o Mutum-de-penacho que nasceu na mata de Ribeirão Preto. Ele respondeu com sua língua presa:
– “Meretríssimo”, só como borboleta, caramujo, gafanhoto, lagartixa, no máximo perereca, sempre animais pequenos. Cadáver, jamais. Abutre é o urubu – disse em delação premiada.
Entrou o último réu: o Urubu Malandro.
– Você fede, é pestilento, nauseabundo, horroroso. Está acusado de vandalismo e vampirismo, sujeito à pena de morte.
– Se precisa de um culpado, me condene, mas vai ter que explicar como é que com meu bico e minhas patas eu consegui desenterrar o cadáver – argumentou o Urubu.
Foi quando chegou o Macaco-Velho, agente da Polícia Florestal, trazendo algemada a Baronesa de Bunda-Baixa:
– Aqui está a culpada. A coruja viu. As câmeras do cemitério filmaram tudo. Tatu, o coveiro, registrou o número do túmulo que a Hiena visitou. Tem ainda o exame de fezes de quem cometeu o crime e fez cocô sobre a sepultura. Chame o peixe inteligente que ele conta tudo.
A Baronesa contratou, então, advogados famosos – a Raposa Felpuda e o Jacaré-na-lama – regiamente pagos, que exigiram que o processo corresse sob segredo de justiça. A meritíssima Anta deferiu e mandou arquivá-lo porque “as provas foram conseguidas de forma ilegal e a Baronesa de Bunda-Baixa tinha foro especial”. A Anta protegia igualmente o Leão e a Hiena. Várias histórias misturaram os interesses do dois. A única contradição entre ambos é apenas essa: o controle da carniça.
Para achar um culpado, o Morocego tropeçou nas palavras e, na presença de sua “conje”, acusou o coveiro Tatu de ter comido a carniça, da mesma forma que o Leão, de quem era engraxate, já havia atribuído ao Curupira a responsabilidade pelo incêndio da floresta. A luta prossegue no submundo digital com narrativas e fake-news difundidas através do trocano. “Se der rolo, a gente pede desculpas como aquele bicho do Rio Grande do Sul, que comeu carniça na caixa dois e foi perdoado” – disse o filhote de Leão.
– Enquanto pássaros, tatus e peixes envenenados pelo óleo não tiverem seus próprios narradores, as histórias de caça sempre glorificarão o predador. Não podemos esquecer que “narrar é resistir”, como anunciou Guimarães Rosa no entremeio com o vaqueiro Mariano – disse o La Fontaine Baré que assina essa fábula.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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