Fake-News e Resistência Indígena: A que(m) servem as notícias falsas que você recebe

Fake-News e Resistência Indígena: A que(m) servem as notícias falsas que você recebe

Por: Raial Orotu Puri 

 Nos últimos tempos eu estive às voltas com a minha qualificação do Doutorado, rito esse que finalmente foi ultrapassado no último dia 08/02. E o finalmente é aqui colocado em face de todo um percurso pelo qual passei desde que cheguei ao Acre, e que dentre outras coisas envolveu padecimentos físicos, um quadro depressivo, e a necessidade de trabalhar enquanto pesquisava e escrevia, por motivos de: eu não nasci rica e preciso pagar as contas… (Afinal de contas pós-graduação no modo roots não é na base do versículo bíblico!).

Em face de tais circunstâncias, é natural que eu tenha andado meio de fora do circuito de debates da internet, embora, uma vez ou outra eu dê uma olhada no que se conversa, ou seja chamado à parte para discutir uma ou outra coisa. Foi assim que esses dias uma amiga pediu ajuda para embasar uma discussão que ela estava travando com um colega, baseada em uma reportagem.

Eu já tinha visto a matéria em questão, e mandado-a para o limbo das coisas que nem me dou ao trabalho de comentar, de tão toscas que são. Porém, em consideração ao pedido da minha amiga, tirei a coisa do limbo, reli criticamente e encaminhei para ela algumas reflexões do que eu pensava sobre o assunto e acreditei que a coisa acabava por aí.

No entanto, nos dias que se seguiram vi novamente a matéria e variantes dela sendo replicadas ad nauseum, ao mesmo tempo em que vejo crescer no contexto político o movimento para ressuscitar um fantasma que exigiu muita luta dos povos originários para enterrar. Por isso, achei por bem retomar o tema e ampliar um pouco a reflexão em forma de texto.

A matéria em questão tinha o sensacionalista título “GOLPES NA FUNAI E FARRA DE ONGS COMUNISTAS NA AMAZÔNIA ASSUSTAM GENERAL SANTOS CRUZ”. E sim, como eu disse, de cara, só de ler a chamada a gente é levado a pensar: spam, fake, balela, nada a ver. E sim, este pequeno raciocínio está certo. Realmente é spam, fake, balela e nada a ver. Porém, estamos no , aonde coisas como spam, fake, balela e nada a ver decidem eleições, e isso talvez ocorra justamente pelo fato delas terem sido subestimadas em seu poder de formar opiniões.

Este é um exemplo bom de matéria que tenta desinformar e, ao mesmo tempo, conduzir a opinião do leitor. Para tanto, a construção do texto mistura informações até certo ponto verídicas, mas que são apresentadas distorcidas, e, junto disso, uma porção de inverdades. A mistura é clássica e mesmo em circunstâncias em que existe algum ponto de realidade no que é dito – e nessa matéria até há alguns – ela é tão encoberta de camadas de desinformação que acaba formando uma mentira desavergonhada. Só que será vendida como verdade!

Para quem não quiser se dar ao trabalho de procurar no Google e ao desprazer de ler, vai aqui um resumão: A coisa começa dizendo que na Amazônia existem mais de 100 mil ONGs comunistas, que a maioria delas é estrangeira, que servem de disfarce à exploração de minérios, que a maior parte delas foi criada na época do Governo FHC, que foi quem começou a demarcar as terras indígenas, que todas essas ONGs são custeadas pela FUNAI, que gasta 1,6 bilhões com a saúde indígena. Diz também que existem mais de 300 conselhos com diretorias que também são pagas pela FUNAI e que é um absurdo isso num país onde morre mais índio (sic) do que branco.

Bom… Caso, queiram, podemos aqui fazer uma pausa para brincar de “Ache o(s) erro(s) – e são vários!”. Vocês têm 30 segundos…

Ok? Depois me contem sobre o que encontraram.

Prossigamos… Primeiramente, vamos falar das ONG comunistas. E eu confesso que tive de gastar algum tempo pensando para tentar entender do que isso se tratava. Parto do princípio de que essa matéria contém sim várias inverdades, mas tem também algumas verdades deturpadas para tornarem-se feias o bastante para chocar e revoltar a opinião pública, e, a seguir, mobilizá-la para concordar com um objetivo (tenha calma, vamos chegar nisso mais para o fim!).

Cheguei a uma hipótese e vou tratar dela aqui. Mas pode ser que a minha hipótese não tenha nada a ver com o que essa galera tá falando aí, assim como pode ser que não passem de dados tirados do fiofó de alguém e só. O que não seria surpreendente, aliás, mas seja como for, vou aproveitar a oportunidade para prestar algumas informações.

A hipótese que supus possível para interpretar essa coisa de ‘ONGs comunistas’ seriam as organizações indígenas e indigenistas da Amazônia. Se é disso que esse pessoal tá falando, bom, vamos já começar com um fato comprovável em qualquer pesquisa séria: apesar de serem muitas, elas não são 100 mil.

ONG (Organização Não Governamental) é um termo que aglutina qualquer organização da sociedade civil, ou seja, que não tem vinculação com o governo, e que através de seu trabalho complementam os serviços de ordem pública. São organizações voltadas para os mais diversos interesses, desde associações de moradores, de categorias profissionais, religiosas, esportivas, culturais, ambientalistas e, claro, as organizações indígenas e indigenistas.

E existem, de fato, diversas ONG voltadas para a defesa dos interesses e direitos indígenas, sendo que o número delas é superior a 300, mas bastante inferior a 100 mil: Segundo o antropólogo Bruce Albert, que fez um estudo específico sobre o assunto*, o número gira em torno de 350 em toda a Amazônia Brasileira.

E aí precisamos modular um pouco a parte sobre a correlação entre a criação delas e o Governo FHC (curioso, uma matéria que não bota a culpa de todas as coisas no Pêtê…). Mas antes de falar das ONGs, vamos abrir um parêntesis aqui para esclarecer que não foi “FHC que começou a demarcar as Terras Indígenas”. Ele nem sequer foi o que mais demarcou.

Na verdade, esse título vai para Fernando Collor de Melo, e isso não porque ele era bonzinho, mas porque ele foi o primeiro presidente a governar o Brasil após a promulgação da CF, e ele estava executando a determinação da própria Constituição, em suas Disposições Transitórias, segundo a qual que todas as demarcações deveriam ser finalizadas em cinco anos após a promulgação da Constituição. Bom, isso não foi feito, e o Estado Brasileiro está em débito com os povos originários, pois até hoje existem diversas terras indígenas não demarcadas.

Porque tanta demora é uma pergunta meio retórica, mas enfim, é possível citar alguns dos motivos principais: 1º o sucateamento monstruoso que vem sendo sistematicamente feito com a FUNAI, que limita a sua capacidade de atuar (e a cereja do bolo foi a MP de 1º de janeiro, né?!); 2º Contestações e pressão de terceiros a quem a demarcação de terras não é interessante.

Por exemplo, para os ruralistas que querem transformar tudo em campos de soja transgênica, não é nem um pouco interessante que um território seja demarcado. Isso é a realidade do Mato Grosso do Sul, local onde estão localizados a maioria das terras ainda não demarcadas, e também o estado mais violento do país para ser indígena (mais adiante voltarei a isso…). 3º. Além da pressão de ‘civis’, temos também a pressão contrária na esfera pública: existem processos que já estão prontos há décadas, mas a demarcação não avança.

É o caso o da TI Munduruku Sayré Maymbu no Pará, cujo relatório logo terá ter idade para tirar carteira de motorista, mas não houve demarcação até hoje porque existe um projeto tão monumental quanto absurdo de construir um complexo de hidrelétricas em cima do que é o território Munduruku, que seria inundado neste caso. Pela CF, isto não seria permitido, já que em face de experiências desastrosas como Balbina e a construção da BR-174**, começou-se a levar em maior consideração o fato de que não se pode praticamente exterminar um povo só porque você quer fazer uma obra.

Ah, a propósito, quando o texto diz do exército de mercenários estrangeiros dizimando indígenas, eu gostaria de fazer uma observação: embora eu também pessoalmente me incomode com algumas figuras estrangeiras que pintam pelas aldeias as vezes, a maioria dos responsáveis por matar indígenas foi um outro exército; no caso, o brasileiro. (Nisso se inclui a Ditadura Brasileira, e está aí o Relatório Figueiredo para comprovar o que eu digo aqui…)

Fechado o parêntesis, voltemos agora à questão das ONGs… Bom, até podemos dizer que durante o Governo do PSDB houve um número significativo de associações criadas, mas na verdade esse movimento começa bem antes, e se podemos citar um momento de pico, ele deve ser situado nos primeiros anos após a promulgação da Constituição de 1988 e a redemocratização do Estado Brasileiro.

Bom, essa questão é bastante óbvia, suponho: considerando o declínio da Ditadura e o maior espaço para que grupos sociais pudessem se organizar em prol de suas demandas, é natural que o movimento associativo – inclusive o indígena – ganhasse força. Só para citar o exemplo, é exatamente no período que são promulgadas no Brasil leis avançadas e que são diretamente influenciadas pela participação popular: o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor. Ah, e a propósito, a mesma Constituição no Art. 5º, inciso XX define o direito ao livre associativismo como uma Garantia Fundamental a todo cidadão brasileiro, beleza? (E indígenas são cidadãos brasileiros plenos de direitos, por mais que de vez em quando alguém pareça se esquecer desse ‘detalhe’!)

A mesma Constituição Federal tem aquele já tão conhecido quanto pouco respeitado texto em que são assegurados aos indígenas o respeito às suas formas de organização tradicional (art. 231). Acontece que, embora haja esse reconhecimento, para dialogar coletivamente com o Estado Brasileiro precisa-se de um CNPJ, portanto, os coletivos indígenas tiveram de entrar nesse esquema, burocratizando-se. Um bom exemplo disso é a Federação Huni Kuĩ, que foi criada em 2006 para viabilizar a proteção dos grafismos kenê kuĩ, através de seu registro como patrimônio imaterial brasileiro. Para tornar isso possível, foi necessário que ingressassem com um pedido junto ao IPHAN, e, para poder fazer esse pedido, foi preciso criar uma instituição que representasse toda a sua coletividade.

Mas e esse papo de comunistas, Raial? Ah, bom…  Então… para começar, creio que tem o lado de ser um chamariz para leitores que começam a espumar de raiva cada vez que leem a palavra “comunista”. E em segundo lugar, tem aquela distorção marota da realidade. E aonde pode estar a verdade nesse caso?

Bom, vamos lá… O artigo 231 da CF reconheceu aos indígenas o direito às suas formas de organização tradicional, cultura e autodeterminação. Pois bem, a organização tradicional indígena é fundamentalmente coletiva, já que a nossa forma de sociedade é realmente aquela em que há menos indivíduo e mais coletivo, e isso se reflete em certa medida na maneira como as coisas funcionam dentro das suas organizações – que nem por isso deixam de lado questões como hierarquia, chefias e outros aspectos ligados à cultura de cada povo. E daí talvez venha a inspiração para colocar ‘comunistas’ no título…

Porém, ocorre que esse conceito é inadequado para tratar de aspectos da , pois usar nomenclaturas alienígenas para falar sobre sistemas que só podem ser efetivamente explicados em seus próprios termos é impróprio e produz interpretações erradas. Pode-se dizer que, em geral, os povos indígenas têm sociedades voltadas para o coletivo, mas não dá para por isso querer dizer que somos comunistas.

Partamos agora para a questão do quem compõe o quadro geral dessas associações. Pois bem, as organizações indígenas variam quanto à abrangência entre organizações locais, regionais, estaduais, nacionais, podendo envolver apenas um território, ou uma única aldeia indígena; igualmente, há as que agremiam diferentes povos, e as que se voltam para um único povo.

Na maioria dos casos, as diretorias são formadas pelos próprios indígenas, mas há casos que também envolvem não-indígenas, no entanto, nem todos eles são estrangeiros, nem tampouco é verídico dizer que todo o estrangeiro que aparece em uma terra indígena está atrás de pedras preciosas, aliás, isso seria um pouco inviável, já que as jazidas sequer existem em todos os territórios. (Em alguns lugares realmente existe, e existem olhos muito mais próximos voltados gananciosamente para eles, vide o caso Yanomami, por exemplo.)

E, cabe dizer, que existem sim tesouros imensos dentro de Terras, Aldeias e Pessoas Indígenas, mas eles são de outra ordem, e pertencem a um universo de valores distintos do mundo de ganância do rayon. Não raro, aliás, os tesouros são justamente aqueles que se quer matar, por resistirem a essa ganância desenfreada…

Bom, aí partimos para a questão de como elas se sustentam, e encontramos na matéria mais um combo de alguma verdade, várias meias-verdades e algumas mentiras. Só para começar, vamos deixar claro: a ideia de que as Diretorias de todas as Organizações Indígenas são pagas pelo Estado é irmã gêmea daquela outra clássica história que diz que todos os indígenas recebem salários do Governo, ou seja, é tão verdadeira quanto uma nota de 25 reais!

Quando se cria uma ONG, que por sinal também são chamadas de ‘organizações sem fins lucrativos’ (ou seja, o próprio nome já diz, né?) está assentado que não existe previsão de salário para o seu diretor. Inclusive, isso é vedado pelos próprios Estatutos e Regimentos que regulamentam a criação dessas associações, e a não-observância disto resultaria na descaracterização da sua natureza. Mas acontece que o fato de possuir um CNPJ gerou entre as organizações indígenas a possibilidade de concorrer em editais, já que são raríssimos os certames que aceitam que pessoas físicas como proponentes.

E qual é a parada dos Editais? Bom, vamos lá, como eu disse lá em cima, ONGs são entidades da sociedade civil que atuam de forma complementar ao Estado, e isso no Brasil quer dizer que elas muitas vezes precisam fazer o que o Estado não faz – seja por não ter condições, seja por não ter interesse. Por isso, os Editais acabaram ensejando um caminho para conquistar melhorias para as Aldeias.

Um bom exemplo disso é a região do Jordão, município que conta com a segunda maior população indígena do estado, a qual corresponde a quase quatro mil pessoas. Nenhuma das 34 aldeias indígenas ali existentes tinha, até janeiro desse ano um sistema de abastecimento de água, que é um direito básico, e uma obrigação do Estado promover. Eu disse que até janeiro desse ano não havia, porque a primeira aldeia que conseguiu um sistema de abastecimento é a Nii Yuxibu (Altamira), do -Cacique Ixã, e isso foi conseguido através da organização criada por eles, captando recursos através dos eventos realizados na Aldeia e também mediante concorrência em editais.

Existem aqui no Acre diversos outros exemplos assim, em que os próprios indígenas, através de suas organizações e por sua própria iniciativa estão buscando melhorias para as condições de e saúde em suas comunidades. Ou seja, as ONGs nascem por causa do Estado, e não raro atuam para suprir as falhas desse mesmo Estado em atender às necessidades dos cidadãos.

No entanto, quando se fala em ‘convênios’ a coisa é bem mais limitada… Porque são efetivamente pouquíssimas Associações indígenas que conseguiram até hoje celebrar Convênios. No Acre, dá para citar a Apwytxa dos Ashaninka, em 2016, e, mais recentemente, a Federação do Povo Huni Kuĩ do Acre – FEPHAC, que no ano passado iniciou um com a Fundação Banco do Brasil.

Ambas as organizações foram as primeiras do país a conseguir esse feito nessas concorrências, e, também em ambos os casos, os projetos vencedores são propostas de desenvolvimento e sustentabilidade das comunidades representadas por essas organizações. E, no caso desses dois convênios citados, as cifras estão longe de se equiparar aos valores conseguidos no mercado de compra e venda de veículos e cítricos…

Gostaria de citar, a propósito, que trabalhei na FEPHAC como assessora jurídica voluntária por três anos, e por isso posso dizer que sei do que falo quando digo que a maioria das ONGs precisa sambar muito até para pagar as contas de água e luz do mês. E enfatizei o ‘voluntária’ na frase anterior não para me aparecer, mas para mandar a real: salvo raras e louváveis exceções, as coisas rolam na base do voluntariado, da ralação, e de pagar para trabalhar mesmo!

E sim, as vezes até rola um cascalho ou outro derivado de algum projeto, mas isso é incidental e impermanente, e é nessa hora que a gente consegue separar os meninos dos homens: quem quer que pense que vai enricar trabalhando nesta área, eu sugeriria que optasse por algo que é mais líquido e certo, tipo apostar na Mega Sena, porque certamente terá bem mais chances de ter êxito…

Mas Raial, então se não rola dinheiro por que razão tem quem entra nessa? Bom, quanto aos outros não posso dizer, mas nNo meu caso, como alguns sabem, por um lado foi escambo – pesquisa acadêmica em troca de conhecimento – e por outro, convicção pessoal de estar fazendo algo que preste com o que eu sei: usando-o a favor dos parentes.

Existem, porém, ONGs bem maiores e mais profissionais do que estas de que estou falando, e que têm capacidade técnica para poderem concorrer a editais bem maiores e celebrar convênios com grandes cifras. Só tem o pequeno detalhe que faz toda a diferença: aí já não se está falando mais em Associações Indígenas, e nem mesmo das ‘indigenistas’, mas de grandes ONGs, Fundações e instituições que têm cacife para concorrer aos grandes certames. Um exemplo a ser citado é a Missão Evangélica Caiuá, que é uma dentre as grandes Conveniadas da Saúde Indígena na atualidade, empregando através dessas pactuações a força de trabalho dos DSEIs. E sim, há muito tempo, numa galáxia muito distante, houve a UNIR que já chegou a fazer a mesma coisa… mas isso… bom, isso é História.

Ah sim, lá vai mais uma correção à reportagem: A FUNAI não recebe 1,6 bilhão para cuidar da Saúde Indígena, porque há vários anos** não é o Órgão quem trata disso, e sim o Ministério da Saúde, através da SESAI, e sim, o valor global que a SESAI gasta anualmente está em torno 1,6 bilhão aí constante. Mas antes de se espantar e achar que isso é uma dinheirama sem justificativa, seria bom pensar um pouco sobre o que é a Saúde Indígena, vista na prática, e ajudar a melhor esclarecer para onde vão essas cifras.

Existem hoje 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas no país que são as unidades descentralizadas encarregadas de administrar a Saúde Indígena, tendo por missão levar ações de promoção e prevenção à saúde no âmbito da Atenção Básica para dentro dos territórios indígenas. Eles foram criados por força das mobilizações indígenas, visto que anteriormente a eles, não havia uma garantia efetiva de acesso à assistência.

E daí, para que essa atenção funcione, se faz necessário uma força de trabalho capaz de suprí-la. Só para citar o exemplo do DSEI Alto Rio Juruá, que não é nem de longe o maior, mas é o qual posso falar com mais conhecimento de causa, a força de trabalho necessária corresponde a mais de 500 profissionais, entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, farmacêuticos, odontólogos, assistentes sociais, antropólogo, técnicos de , engenheiros, Agentes Indígenas de Saúde, Agentes Indígenas de Saneamento, barqueiros, e por aí vai..

Esse pessoal se divide entre os que atuam no suporte, e as Equipes de Área, que são multidisciplinares, e formadas por aproximadamente 10 profissionais, que fazem entradas mensais que devem cobrir todo o território (o número de equipes e o tempo de permanência nos Territórios varia de acordo com as especificidades da população a ser atendida) fazendo consultas, vacinas, procedimentos e demais atividades que entram no guarda-chuva da ‘Atenção Básica’.

Essa força de trabalho é terceirizada via convênio por não ser possível à SESAI contratar diretamente, pois a forma de contratação básica no serviço público é o concurso, e não existe viabilidade de prover essas vagas via concurso, seja porque seria contrária ao discurso de ‘enxugar a máquina’, seja porque as exigências de trabalho nesta área passam por requisitos bem difíceis de serem verificados apenas mediante provas que se pautam em notas.

E eu sei, nem todos os profissionais da Saúde Indígena serão o Sebastião Melo, há que se esperar que, no mínimo, sejam capazes de atuar com respeito às culturais indígenas, sensibilidade, empatia e proatividade suficiente para garantir uma assistência abrangente e de qualidade, requisitos que, convenhamos, não têm lá muito a ver com a nota que se tira numa prova, mas com um grau de humanidade que falta a uma galera…

Além do mais, apesar de salários maiores serem pagos para várias categorias, não é todo mundo que topa a coisa… Um bom exemplo é o fato de que após a desgraça que foi a saída dos Médicos Cubanos, todos os Distritos Indígenas se encontram com um buraco enorme de vagas que, a depender da vontade dos médicos ‘brasileiros patriotas’ ficarão em aberto.

E cabe assinalar que os recursos humanos não são nem de longe o gasto principal da saúde indígena. Aqui pelas bandas do Juruá o ponto nevrálgico é outro: logística de transporte. O Acre possui o preço do combustível mais caro do país, o qual varia a depender da distância da capital e das dificuldades para que ele chegue até o município em questão.

Por exemplo, no Jordão, um litro de gasolina nos meses do verão amazônico chega a custar 10 reais, e para fazer a cobertura de toda a população, chegando até a última aldeia são necessários 800 litros por mês (façam as contas!). E, bom, isso falando só de Jordão, mas a realidade do Juruá é bem maior: O DSEI-ARJ atende 17 mil indígenas, que habitam em mais de 100 aldeias, a maioria de difícil acesso, e o maior custo que se tem por aqui é com transporte de equipes e pacientes.

Existem territórios dentro do Acre que para se chegar a eles levam-se até 10 dias de viagem de barco, e isto, em gasolina, dá um montante em torno de 600 litros de combustível, isto num município em que o combustível custa R$ 6,20… Haveria uma forma de baratear isso? Em alguns aspectos talvez, mas creio que não no que se refere à logística, uma vez que as aldeias não deixarão de ser distantes, e não há como mudar o calado ou a vazão dos rios. E isso falando só em na parte do combustível, mas é preciso bem mais que isso…

Todo esse dinheiro é gasto em vão? Bom, eu diria que não. Todo esse dinheiro poderia ser melhor empregado? Talvez, sim. Apesar de se gastar essa dinheirama toda, não são vistos resultados? Só para quem é cinicamente cego! Vou citar apenas um também do Juruá: estamos numa região aonde a Malária é endêmica; nos municípios de Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves e Mâncio Lima, no ano passado houve uma hecatombe de casos que suscitou inclusive decretos de ‘calamidade pública’. Ao mesmo tempo, nas TIs dessa mesma região, o setor de Endemias do DSEI-ARJ conseguiu reduzir os casos, deixando-os bem longe da calamidade. Esses e outros dados são públicos para consulta de quem se interessar, e seria de bom tom que jornalistas e políticos se interessassem previamente às suas declarações.

Porém, eu não digo que tudo é perfeito, e eu não digo que não tenha erros e necessidade de melhorar em vários aspectos. E, é claro, existem sim situações péssimas e pontos que precisam ser mudados pra ontem, do mesmo modo que existem dados alarmantes, como a quantidade de indígenas morrendo por males que já deveriam ter sido extirpados, como as diarreias e infecções causadas pela falta de acesso a água de qualidade. E aí voltamos algumas casas naquela conversa lááá em cima: saneamento é direito de todos e dever do Estado, mas se nem na periferia das cidades tem, o que de dirá nas aldeias… (e entra no computo da atuação decisiva de algumas ONGs!)

E também não se pode esquecer que  algumas doenças que têm afetado a população indígena são derivadas da influência avassaladora da cultura branca, como é o caso da contaminação por hepatite e outras ISTs, e ocorrência de males como pressão alta, diabete, e outros, notadamente entre os povos que se encontram dentro das cidades ou em territórios próximos.

Discutir essas questões é importante, assim como também é pensar sobre o que precisa ser feito para a melhoria do sistema como um todo. Isso, aliás, é o que foi feito em todo o Brasil no segundo semestre de 2018, nas Conferências municipais e distritais de Saúde Indígena, e o que se pretende fazer em maio em Brasília na Conferência Nacional, caso os planos de extinguir a Saúde Indígena sejam até lá evitados…

Opa! Muita calma nessa hora, pois chegamos ao cerne da questão. (Desculpem, sei que fui prolixa, mas não tinha como não ser…). Ocorre que já tem um tempo que vem sendo muitas falas sobre a enormidade de gastos que a Saúde Indígena representa, e sobre como, apesar de todo esse gasto, ‘não existe resposta’. Acontece que por trás dessas notícias e cadenciado por elas, há uma intenção de mover a opinião pública no sentido de torna-la favorável a uma medida já realizada e comprovadamente desastrosa, qual seja, a municipalização da saúde indígena.

E até é engraçado que a desculpa da vez seja a suposta falta de resposta do modelo atual, já que quem tem um mínimo de memória – e vergonha na cara – é capaz de lembrar do desastre em números dos tempos da municipalização. Mas acontece que o plano por trás do plano é bem maior: aquela velha ideia de ‘integração’ e ‘emancipação’ dos povos indígenas, ou seja, a liberação total para passarem o trator em geral e terminar de vez esse serviço sujo que começou em 1492.

Pois é. E aí, meu amigo leitor até bem-intencionado que andou compartilhando essa e outras matérias, esteja atento para as entrelinhas, e, na próxima, pense de novo e saia dessa vibe do retuite randômico, porque precisamos de aliados atentos e atuantes, e isso vale inclusive no teu grupo da família no whatsapp!

E, sabe, de tudo o mais dolorido é que essa conversa toda seja baseada no argumento de que ‘apesar de todo o dinheiro gasto’, ‘O índice de mortes entre os índios (sic) chega a ser o dobro dos brasileiros’. Sem comentar o fato de que para o autor do texto não somos brasileiros, é de uma hipocrisia e de uma crueldade tremenda querer justificar essa palhaçada falando sobre nossas mortes! Porque sim, realmente, em alguns seguimentos da população e em alguns lugares, indígenas estão morrendo bem mais do que os brancos. Mas a questão não é saber que estamos morrendo. A questão principal é falar sobre o porquê de estarmos morrendo!

Vou citar aqui uma causa apenas: suicídio. A população indígena tem taxas muito superiores ao da população não-indígena, e, não por acaso, esses índices são mais altos nas regiões aonde existe maior violência – real ou simbólica – contra os povos originários. No Mato Grosso do Sul, lugar que têm disparados os maiores índices, os e Kaiowá vivem fora de seus territórios, na beira das estradas, sem condições de se alimentar adequadamente, sem saneamento básico, com aviões jogando veneno em cima de suas cabeças, sendo ameaçados todos os dias, sendo hostilizados pelo simples fato de serem indígenas, sendo vítimas de assassinatos que simplesmente nunca serão apurados. Entre isso e a Terra Sem Males, acho que não é difícil entender a escolha…

Aqui no Acre o suicídio vem ocorrendo entre os Madijá, povo que vive há cem anos sendo empurrado de um cativeiro para outro: a borracha, a derrubada de madeira, os benefícios, o álcool, as igrejas, o racismo, a desassistência… Mais de 100 anos tendo sua cultura triturada e pressionada de todos os lados, pouca ou nenhuma ajuda que não seja meramente paliativa, pouca ou nenhuma concreta a curto prazo de saída desse quadro. Explica pra você?

E, como eu disse no texto anterior, a verdade é que isso nem deveria ser chamado de suicídio, porque na verdade é só uma forma diferente de homicídio.

E, olha só, embora a SESAI seja uma das entidades corresponsáveis por assistir e assegurar direitos dos povos indígenas, eu aqui já não estou mais falando ‘só’ em ações de saúde, porque as medidas para solucionar tais problemas passam por outras esferas, pois, obviamente, aí a questão é Demarcação e segurança territorial, respeito e dignidade aos povos originários.

Mas aí, né? Isso não tem nada a ver com medidas de extermínio disfarçadas de indignação de um Estado que não liga a mínima para nada disso, que até hoje esteve estreitamente engajado em nos varrer do mapa, e só se lembra agora de falar sobre nossos padecimentos, mas só o faz para usar como argumento para melhor executar seus planos mesquinhos.

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Raial foto pintura jiboia

Notas da Autora:

* Para quem quiser ler mais sobre o associativismo indígena, suas razões de ser e seus números em letras mais acadêmicas que as minhas, indico Bruce Albert (por sinal, um antropólogo que entende muito de voluntariado por escambo e em prol da causa indígena): Acervo Socioambiental 

** Para quem quer conhecer um pouco mais sobre o que de fato aconteceu durante as obras realizadas pelo exército em territórios indígenas – e que, a propósito, se intenta fazer de novo – confira na matéria Guernica Amazônica

*** Para saber mais sobre a história da SESAI e sobre o Subsistema da Saúde Indígena: Pib Socioambiental

Sobre a autora: 

Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua como antropóloga no Distrito Sanitário Indígena do Alto Rio Juruá – DSEI-ARJ.

FonteMatéria originalmente publicada no blog e na página do Crônicas Indigenistas no Facebook (clique aqui). Lá encontrará, além de nossos textos, várias e diversificadas informações. Também temo o canal do YouTube: Crônicas Indigenistas – Música Indígena (clique aqui).


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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