Falsídias babélicas
Mal-entendidos derivados das traições dos tradutores são tão antigos quanto o pomo de Adão, um vacilo de São Jerônimo, autor da Vulgata, que verteu a fruta da árvore do bem e do mal, malum, em maçã, maalum, para a glória dos nova-iorquinos e do Steve Jobs.
Por Antônio Carlos Queiroz (ACQ)
Antes dele, o pessoal da Septuaginta, que transladou o Antigo Testamento do hebraico para o grego entre os séculos III a.C. e I a.C., em Alexandria, já havia operado o milagre da concepção da Virgem Maria. Como assim? Os caras reduziram o termo ha-almah em hebraico, menina moça, para o grego párthenos, virgem.
A torta tradução dessa palavra na profecia de Isaías (7:14) sobre o futuro Filho do Homem foi transposta talequale para o Evangelho de Mateus, e, como o equívoco era muito conveniente, os Padres da Igreja deixaram por isso mesmo. “O Senhor fez em mim maravilhas!”
Até hoje a malícia babélica de Javé produz arte ou tragédias e draminhas.
No primeiro caso, a armação serviu de inspiração para gente como o Joyce e o Umberto Eco, que transformou o Silicon Valley em Vale do Silicone. Facécia versus facécia.
Do exemplo do segundo caso eu tive notícia faz alguns anos.
Os personagens: Ariovaldo e Daniel, colegas no Instituto Goethe, e Daphne, uma moça do Guará I por quem o Ariovaldo andava arrastando as asinhas, provocando, sem saber, ciúmes vulcânicos no Daniel.
Um dia o Ariovaldo convidou o Daniel e seu violão para acompanhá-lo numa serenata à moda antiga debaixo da janela de Daphne. Aluno aplicado, o Ariovaldo iniciou o sarau com a Ständchen D 957 (4), uma serenata do Schubert, melosa e açucarada que nem a Rosa do Pixinguinha:
Leise flehen meine Lieder
Durch die Nacht zu Dir;
In den stillen Hain hernieder,
Liebchen, komm’ zu mir!
Minhas canções carinhosas
Te chamam à noitinha;
No bosque tranquilo e mimoso,
Vem cá, queridinha!
A Daphne ficou tão derretida que desceu de pijama e língua e tudo pra beijar o Ariovaldo, e ainda sobrou uma bitoca pro Daniel. Todos foram dormir com os anjos, aparentemente.
Nos dias seguintes, um, dois, três, estranhamente, a Daphne deixou de atender às chamadas do Ariovaldo. No quarto dia ele deu um pulo no Guará para falar com ela. Nada, ninguém atendeu.
A próxima semana chegou e o Ariovaldo já estava esperando o pior. Acidente? Doença aguda? A Daphne simplesmente havia desaparecido. Para piorar a situação, o Daniel também escafedeu na sequência. Na secretaria do Goethe, disseram que ele havia trancado a matrícula.
Passaram semanas, passaram meses, o Ariovaldo já estava quase esquecendo o drama, quando, não mais que de repente, no meio de um corredor do Park Shopping, viu uma cena que o deixou catatônico: a Daphne e o Daniel empurrando um carrinho de bebê. Engoliu em seco, fez o pelo-sinal, contou até 73, e abordou o casal:
– Que porra é essa?
Os dois ficaram vermelhos, baixaram a cabeça, mas a única coisa que o Ariovaldo ouviu foi um “sinto muito” da Daphne, que tratou de dar um solavanco no carrinho pra escapulir dali a toda.
Muito tempo depois, o Ariovaldo encontrou uma prima da Daphne e puxou conversa, ainda tentando entender o que havia acontecido. A prima revelou que o Daniel já vinha procurando a Daphne muito antes da serenata, ocasião perfeita para ele dar o último bote.
“Sabendo que a prima estava dividida entre vocês, o Daniel disse que você estava de gozação, que nunca levaria o namoro a sério, ao contrário dele, disposto a se casar o quanto antes”.
– E ela acreditou, sem mais?
– O Daniel apresentou uma “prova”! Mostrou à Daphne a tradução feita pelo Google de uma frase informando que a tal Ständchen do Schubert era uma “mentira”. Disse que “mentiras” eram composições que o Schubert fazia às pencas por dinheiro, por encomenda de rapazes românticos interessados em seduzir mocinhas ainda mais românticas.
– Não entendi!
– Faça você mesmo o teste! Bote lá no Google Translate a frase em inglês “Ständchen is a Lied for solo voice and piano by Franz Schubert…” O Google vai traduzir a palavra Lied, canção em alemão, como mentira.
– Puta merda, essa aí é pra acabar com os pequis de Goiás e os bosques de Viena ao mesmo tempo!
Com um tapinha nas costas, a prima da Daphne foi saindo de fininho, deixando o Ariovaldo em pandarecos.
Ver aquilo dava até dó. Dó menor!
Os links para os dois vídeos da música:
http://xapuri.info/como-o-estado-impede-a-reforma-agraria/