OS FANTASMAS CONTAM A HISTÓRIA

OS FANTASMAS CONTAM A HISTÓRIA

Os fantasmas contam a história

Quando, numa noite clara, contemplamos amorosamente as estrelas, mal sabemos que estamos ao mesmo tempo contemplando fantasmas. É que muitas dessas estrelas contempladas não existem mais, já desapareceram há muito tempo e o que vemos é apenas sua luz que, no momento, após uma longa viagem, está chegando ao Planeta Terra.

Por Altair Sales Barbosa

Isso acontece porque essas estrelas estavam muito distantes da Terra e o clarão de sua explosão, mesmo viajando a uma velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo, que é a velocidade da luz, somente agora se nos revela e significa que algumas das estrelas que vemos no céu são só fantasmas, que morreram antes mesmo de a Terra existir.

Entretanto, mesmo sendo fantasmas, os astrônomos tiram desses espectros informações valiosas sobre a origem do universo. Esse fato é possível porque a Astronomia incorpora nos seus métodos de ver o mundo uma visão sistêmica e um sentido de temporalidade cosmológica.

No mesmo sentido, quando o geólogo contempla uma montanha, não enxerga somente seus picos ou sua base, procura observar os fantasmas do passado que deram origem àquela montanha, os fantasmas da orogenia, de origem tectônica ou vulcânica, que impulsionaram para cima as rochas que formam a montanha. Isso ocorre por que a teoria da tectônica de placas trouxe para a geologia a metodologia sistêmica que permite que os geólogos raciocinem tendo como guia a temporalidade geológica, sem perderem a noção do global.

Quando o zoólogo observa os animais atuais, também tenta desvendar os fantasmas que modelaram as condições genéticas desses sobreviventes e busca atrelá-los aos clados do passado, conhecidos através dos fósseis.

Quando o botânico observa os diferentes tipos de vegetação que cobrem uma alta montanha da sua base até o cume, também contempla os fantasmas do passado que criaram os ecossistemas ideais para a ocorrência de cada tipo vegetacional.

Assim também age um geomorfologista ao tentar entender a arqueologia das paisagens, como também age um geógrafo especialista em hidrologia e hidrografia quando observa um corpo hídrico superficial, e indaga: De onde vem a água? Quem abastece esse rio? Quais os fantasmas do passado que contribuíram para modelar as configurações atuais?

A metodologia sistêmica busca nos fantasmas a compreensão do global e suas projeções futuras, dentro de uma compreensão de tempo às vezes inconcebível na existência de vida humana. Durante toda a minha trajetória de pesquisa, sempre busquei nos fantasmas do passado as respostas para os infindáveis problemas que iam surgindo.

Homem da Serra do Cafezal g1
Foto: G1

Quando descobri o “Homem da Serra do Cafezal”, considerado ainda hoje o esqueleto humano mais antigo das Américas e sabiamente batizado de Homo-cerratensis pelo pesquisador Paulo Bertran, pude durante horas e dias, enquanto me encontrava dentro do buraco estratigráfico, removendo mansamente com pincéis de cerdas finas os sedimentos pleistocênicos que cobriam o esqueleto, dialogar com o fantasma daquele ser humano que viveu há 13 mil anos A.P. e morreu ainda jovem, aos 27 anos.

Observava cada detalhe de seus ossos e tirava conclusões sobre suas locomoções, analisando os desgastes dos dentes e aprendendo muita coisa sobre sua alimentação. Fazia várias indagações, como um louco conversando sozinho, mas esta loucura me proporcionou vários ensinamentos e aquele fantasma junto com os demais que pareciam rodeá-lo me abriram uma janela importante e mostraram muitos segredos da vida dos ancestrais indígenas que povoaram o Planalto Central do Brasil.

A esses fantasmas sou muito grato. Durante várias vezes, à noite, pegava minha rede, deixava a equipe no acampamento e me deslocava sozinho para dormir ou passar a noite dentro das grutas, ali observava a movimentação de intensa fauna noturna incluindo o tatu canastra. Na escuridão das cavernas, ficava a imaginar como seria a vida daquele povo, ancestral dos indígenas atuais, que habitou por muitas gerações estes abrigos.

Os fantasmas da escuridão me fizeram admirar e respeitar ainda mais os indígenas que conseguiram sobreviver ao avanço enfurecido da civilização guiada pelo capital.

Embora os fantasmas tenham me ensinado muito sobre o passado, fato que tem me ajudado a compreender o presente, ainda pairam sobre minha cabeça muitas dúvidas de como será o futuro, isso porque o século XXI está assistindo à mais fantástica revolução da história da humanidade.

Não se trata apenas de uma revolução política, social ou econômica, mas uma revolução global, a revolução do homem, desencadeada pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Esta revolução abrange todas as outras e obriga a uma mudança da nossa concepção de universo e tende cada vez mais a se confundir com o próprio homem e a derramar dúvidas quanto ao destino da humanidade.

Essas dúvidas me fizeram lembrar da feliz comparação de Gaston Berger, expressada por Rose Marie Muraro em 1969, em sua obra “A automação e o futuro do homem”. Assim dizia Berger: “A humanidade assemelha-se a um automóvel correndo a toda velocidade através da noite. Se não possuir possantes faróis certamente acontecerá uma catástrofe”.

Temos muito mais do que necessitamos para viver. Alguns agem, mas sem a visão do todo. A maioria se assemelha a um náufrago sozinho numa ilha isolada esperando que a maré lhe traga a boa nova.

Com os fantasmas, pude aprender algo sobre a felicidade. A impressão que tenho é que a felicidade era para aqueles povos a espinha dorsal da liberdade. E nessa espiral construíram suas sociedades. Para tentar entender esse fato, mergulhei na leitura exaustiva das obras de Teilhard de Chardin.

Num desses escritos existe uma história que relata: “Uma certa vez, um grupo de pessoas, ideologicamente identificadas, fez uma reserva em um resort luxuoso, cercado pelo encanto de uma natureza exuberante, para discutir seus problemas e traçar suas metas. Para tal, foi estabelecida uma rigorosa programação que era repetida todos os dias.

Num dado momento, um dos componentes do grupo sugere quebrar a rotina, através de uma nova programação para o dia seguinte, que consistia em explorar o cume de uma montanha que ficava a alguns poucos quilômetros da sede do resort. Todo o grupo acatou sua ideia. No outro dia, as pessoas do grupo saíram equipadas, deixaram alegres e em cantoria a sede e partiram em direção à montanha. Depois de certo tempo, uma parte do grupo pôs-se a reclamar e retornou ao resort.

Entretanto, a outra parte continuou a jornada. Ao chegar aos pés da montanha, o grupo se depara com uma fonte de água cristalina, um pomar de frutas silvestres e muita sombra. A reunião de todos esses elementos fez com que uma outra parte do grupo relutasse em continuar a caminhada, e por ali fica. Apenas uma pequena parcela resolve caminhar até o objetivo pré-estabelecido, que seria alcançar o alto da montanha”.

Por mais simples que seja essa história, ela é capaz de revelar três atitudes básicas que a sociedade e alguns de nós tomamos em nossas vidas. A atitude de recuar, a atitude de se acomodar e atitude da busca da superação, ou da busca metafísica.

Para Teilhard de Chardin, só pode ser feliz aquele que busca a superação, pois a felicidade reside na liberdade ou na superação de situações obscuras, para aquelas que apontam a claridade.

Em que momento na história da humanidade esse paradigma mudou? É muito difícil de afirmar. Nossa esperança reside no fato de que os fantasmas possam ser aleivosias, que, vira e mexe, acordam de seus sonos profundos e aparecem novamente. Quem sabe, quando aparecerem, poderão nos ensinar os caminhos da eterna coerência.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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