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Filme revela como o Elis e Tom quase não existiu

Filme revela como o Elis e Tom quase não existiu

Difícil imaginar que as gargalhadas de Águas de Março tenham sido precedidas de muita tensão em estúdio. Filme de Roberto de Oliveira resgata drama e suspense por trás da gravação em Los Angeles, em 1974

Por Cezar Xavier/Portal Vermelho

Nunca vacilei em dizer que Águas de Março é a canção da minha vida, algo que continua surpreendendo quem me pergunta. A canção é agradável para uns, mas pouco compreendida por quem não consegue “sacar” sua estrutura melódica e harmonia nada convencional, além de sua poesia (quase) sem verbos de ação e métrica sem estrofes e refrões. 

Muito antes de ter uma aula com o professor Arthur Nestrovsky, no curso de Semiótica da PUC-SP, com a partitura de Águas de Março nas mãos, meu amor pela canção já era sensível e intuitivo. Minha admiração já era absoluta pelo minimalismo melódico de intervalos estreitos e poucas notas, a letra que remete à passagem do tempo, ao fluxo da natureza e seus detalhes, à capacidade de imprimir emoção em algo tão sintético e concreto como a descrição de um mês de chuvas em que tudo pode acontecer, até a solidão da morte. Texto mínimo que parece um haikai.

Sempre ouvi a música como quem lê o texto de Guimarães Rosa. Parece que fazem parte da mesma família. Sou aficcionado pela prosa sonora, inventiva e enraizada na natureza sertaneja de Rosa. Dois artistas ecologistas em sua paixão pela terra, a mata, os rios, os animais, a paisagem. A febre que sobe os rios e atravessa as matas, tomando o corpo dos personagens de Rosa, é o mesmo cansaço que toma conta do “corpo na cama” do compositor, que entra em fluxo de consciência, numa enxurrada de imagens, enquanto a chuva cai.

Apesar das pessoas acharem a música alegre, especialmente na versão com Elis Regina, em 1992, Tom declarou que escreveu a canção “em um período em que estava muito na fossa” por ouvir do médico que ia morrer de tanto beber. Edu Lobo conta que Tom ressentia-se de que “ninguém ouvia seus discos”. Helena Jobim também relata que o irmão brincava naquele período que temia encerrar a carreira “aos 80 anos, cantando ‘Garota de Ipanema’, num circo do interior e sendo vaiado”. O sucesso internacional já existia, mas a delicadeza e luminosidade da bossa nova dera lugar às canções funestas de protesto contra a ditadura. 

Pois foi por aí, que surgiu o projeto Elis e Tom, o disco que faria o encontro de dois deuses da música brasileira, que pouca intimidade tinham um com o outro. O tímido e obsessivo Tom Jobim e a nervosa e insegura Elis Regina foram se encontrar em Los Angeles, para um projeto cuja iniciativa era do cineasta Roberto de Oliveira. Ele sentia que precisava registrar as imagens deste encontro épico, que deu zebra e quase não vingou. Os mal-entendidos foram se acumulando ao ponto de Elis arrumar as malas para voltar ao Brasil antes de Oliveira chegar a L.A. capa filme elis e tom 1

Eu já havia acompanhado o relato de Julio Maria, em Elis Regina – Nada Será Como Antes, biografia em que as tensões do encontro já estavam amplamente relatados. Mas vendo o filme Elis e Tom – Só tinha de ser com você, tudo parece mais constrangedor e engraçado, ao mesmo tempo. Porque quando duas pessoas tensas se encontram para fazer música, tudo se resolve numa explosão de felicidade e graça. É o que está sintetizado na gravação de Águas de Março.

Roberto abandonou o projeto, sem que ninguém entendesse muito. Ele acredita que ninguém entenderia o sentido do filme se ele tivesse sido lançado na época. Agora, ele resgata as imagens numa montagem que contou com ajuda de inteligência artificial e toda a tecnologia disponível para dar vida à película e profundidade ao áudio. Assistir o filme num bom cinema faz toda a diferença e se justifica, mesmo sendo um documentário.

Os contratempos da história preenchem o documentário de dramaturgia, num suspense que culmina no sucesso que representa o álbum, considerado por críticos do mundo todo como um dos maiores de todos os tempos. Para o diretor, a saga dos dias tortuosos que renderam o álbum Elis e Tom fazem mais sentido agora, para se compreender com quantas tábuas se faz uma obra prima.

A resistência de Tom em aceitar que o arranjador seria Cesar Camargo Mariano, com seus meros 27 anos, também se revelou um desgaste desnecessário. Afinal, como o namorado de Elis ousava discutir com o homem que era mestre em arranjar os seus próprios discos e de tantos outros?

César consegue ser tão sofisticado e delicado quanto Tom na confecção dos arranjos, dando um ar de atualidade e modernidade ainda maior às canções. Afe Maria, como Tom brigou para não entrar guitarra nos arranjos! Pois a guitarra enriquece imensamente o inferno de acordes dissonantes e ritmo sincopado, fazendo a dificuldade parecer leveza e luminosidade. E quando César disse que ia usar o piano elétrico, em vez do “piano de pau”?!… Tom caiu duro com as duas pernas pra cima.

Tom devia imaginar que ia gravar mais um de seus discos, com seus arranjos de “piano de pau” e orquestra, preenchendo sucessos conhecidos na voz de mais uma cantora. Em vez disso, Elis chega de braço dado com César, querendo cantar apenas canções pouco conhecidas, algumas antigas. E até de outros compositores, veja bem…

Mas o que saiu foi o disco definitivo, que ninguém cansa de ouvir e perceber novidades a cada audição. O disco que músicos de todo o mundo precisa ouvir na escola para ter dimensão da excelência da composição, do arranjo, do canto, da interpretação, da gravação, da composição e da poesia. As harmonias complexas e infinitas dos acordes de Tom Jobim continuam espantando geração a geração de novos músicos.

Esse será o efeito deste filme. Trazer a maestria de Elis e Tom para novas gerações, que não imaginam que era possível fazer coisas assim, “antigamente”. O filme estreou em Los Angeles, seu berço, e pretexto para disputar uma vaga no Oscar. 

Pensando aqui com meus zíperes, Águas de Março foi composta no ano do meu aniversário e fala do mês quente e molhado em que nasci. Não há melhor escolha que essa para embalar o moto-perpétuo dos meus dias.

Fonte: Portal Vermelho Capa: Reprodução/Portal Vermelho 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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